Quando se fala em posse de animais silvestres, sobretudo a ilegal ou ilícita (aquela realizada em desacordo com as normas que, em tese, protegem e preservam a fauna), pensamos em maus-tratos, em sofrimento e crueldade com os animais e também pedimos maior rigor no tratamento desses casos com punição do agente infrator e aumento da pena do crime ambiental como formas de auferir maior proteção aos animais, bem como preservar o meio ambiente.
De fato, o tratamento predominante que o Estado dispensa aos animais está muito aquém do ideal na medida em que ainda legisla e atua em suas políticas com a visão de mundo antropocêntrica e até mesmo com pouca consideração com o meio ambiente natural.
Mas e se soubéssemos que a União ou o governo federal, por meio de seu Ministério do Meio Ambiente, além de ignorar o direito animal (no caso, do animal silvestre) de não ser submetido à tratamento cruel, também resolveu abandoná-los à própria sorte (especialmente os psitacídeos), ao excluí-los do amparo estatal?
No grupo dos psitacídeos se inserem os papagaios, as araras, os periquitos, as jandaias, as calopsitas, as cacatuas, dentre outras espécies, o que significa dizer que inúmeros indivíduos estão agora mais desamparados do que nunca, eis que desprotegidos da tutela estatal em caso de vida em cativeiro, sendo incalculável o impacto ambiental dessa nova política que despreza a vida animal.
Foi isto o que o atual (des)governo fez, mas não sozinho, diga-se, já que o descaso com as questões ambientais é prática corriqueira que, infelizmente, vem se prolongando desde governos anteriores, a exemplo da Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente de nº 457 de 2013 que, contrariando a lei ambiental, possibilitou às pessoas físicas a guarda de animais silvestres apreendidos (e que dirá políticas públicas para a efetiva proteção dos animais enquanto seres titulares de direitos – sequer existentes para “serem desmontadas”), inclusive o assumido golpista Michel Temer tendo aberto mais portas para o absurdo se perpetuar.
TODO ANIMAL SILVESTRE É INDOMESTICÁVEL
Em novembro passado foi noticiado na imprensa que “para legalizar papagaio de ministro do STJ, presidente do Ibama flexibiliza lei ambiental”.
Procurando entender melhor essa decisão sob o aspecto legal (além da escancarada parcialidade do ministro), vemos o cúmulo do absurdo se formando sorrateiramente entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, em uma espécie de sincronia perigosa capaz de viabilizar rápidos retrocessos e potencializar a perda de direitos individuais e coletivos, já que vivemos em meio à governos autoritários e à mercê de decisões judiciais mais políticas do que jurídicas, especialmente quando lutamos pela garantia dos direitos das minorias, a exemplo da defesa dos direitos animais.
Como estamos falando de papagaios e preservação (ou destruição) ambiental, o assunto não é interessante para grande parte da sociedade e provavelmente também passou desapercebido por muitos profissionais do Direito – entre àqueles comprometidos com os valores democráticos e com a defesa da Constituição – que uma das principais leis abaixo da Constituição Federal, a qual rege e informa as demais normas do ordenamento jurídico brasileiro foi modificada para pior em 2018, possivelmente para viabilizar (sob o manto da legalidade, é óbvio) retrocessos já consumados e outros porvir.
Trata-se da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) que disciplina a aplicação das normas jurídicas de um modo geral, mas que sofreu alterações significativas durante o governo Temer, tendo o atual presidente do Ibama Sr. Eduardo Fortunato Bim, com base em uma dessas alterações, deixado todos os psitacídeos do país desassistidos juridicamente (como se não bastasse o “papagaio do ministro” do STJ) quando estiverem na posse (ilegal) de alguém, em total oposição ao que supostamente pretendia-se com a alteração legislativa, isto é, gerar “segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”. O que de fato aconteceu foi uma interpretação deturpada da citada legislação pelo Ibama levando à ingerência de um poder no outro, em clara afronta ao princípio da separação de poderes além de outras ilegalidades em prejuízo das aves silvestres, tendo, ainda, o Ibama (órgão do poder executivo que é vinculado ao Ministério do Meio Ambiente) aderido a um posicionamento jurisprudencial equivocado e, por incrível que pareça, ilegal, bem como fazendo “mal uso” de um novo, esdrúxulo e desnecessário instrumento chamado “orientação geral” (vale lembrar que o gestor público só pode fazer o que a lei expressamente determina, enquanto que ao particular compete tudo aquilo que a lei não proíbe).
Esdrúxulo porque não se presta à suposta finalidade para a qual foi criado e desnecessário porque a própria Lei de Introdução já é uma norma orientadora do direito brasileiro, o que certamente torna esse novo instituto da “orientação geral” absolutamente questionável do ponto de vista da sua constitucionalidade e que coloca nas mãos do agente público a escusa ou desculpa pelo não cumprimento da lei, bastando que alegue a existência de “obstáculos, dificuldades reais do gestor e exigências das políticas públicas a seu cargo”, cujo texto de lei ainda foi alvo de decreto do governo Bolsonaro deixando tudo mais bizarro juridicamente.
É evidente que não se vê, automaticamente, a correta aplicação do direito com meras alterações legislativas, muito menos quando estas são provenientes de governos antidemocráticos, ainda mais se tratando da desafiante garantia de proteção constitucional dos animais, sempre uma tarefa extraordinária em qualquer governo. Aliás, a prática mostra o exato oposto: a decisão do presidente do Ibama, com base nessa tal orientação geral, viola a lei ambiental que confere uma proteção mínima aos animais silvestres apreendidos, em especial a parte inicial do parágrafo 1º do artigo 25 da Lei 9.605/98, a saber: “os animais serão prioritariamente libertados em seu habitat”.
Ora, sejamos compreensíveis! É que está difícil pro Ibama cumprir a lei (!), ou seja, cumprir suas funções e fazer valer o direito das aves silvestres serem livres porque juízes de direito também descumprem a lei (!), porque ministro do STJ (aquele mesmo que também tem o “seu papagaio particular”) decidiu em caso similar que não há problema nenhum em manter um animal silvestre em domicílio, ainda que de origem ilegal! O Ibama (e quem sabe até o Ministro do Meio Ambiente) agora se mostra muito sensível ao “princípio isonômico” argumentando que não pode “assegurar direitos à parcela da população que logra acesso ao Judiciário, deixando à deriva todos os demais cidadãos que compartilham a mesma situação jurídica por não acessar a via judicial”. Que tocante! Desconhecem ou não compreenderam os ensinamentos de Rui Barbosa sobre o duplo sentido da isonomia, que pressupõe tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. E eu que pensei que a assistência judiciária das pessoas hipossuficientes ainda competia à Defensoria Pública, que ao Ibama competia a defesa do meio ambiente…
O Ibama ainda enfatiza (para “justificar” o descumprimento da lei ambiental) que os centros de triagem de animais silvestres (Cetas) estão lotados de animais, de papagaios e araras e que “quase a metade nunca mais volta para a natureza”, apesar de reconhecer que mais de 50% conseguem reintrodução na natureza quando oriundos dos Cetas!
Mas esqueçam os dados, as estatísticas, as políticas públicas e “o montão de amontoado de muita coisa escrita” nos livros de direito e nas leis. Que mal tem em liberar geral a posse ilegal de aves silvestres para os pobres cidadãos brasileiros? São só papagaios, é só a natureza, é só destruição ambiental… (é só uma gripezinha…), afinal de contas, o presidente da República também segue as suas próprias leis e então, Levandowisck, o ministro do STF, também resolveu apiedar-se de quem viola ecossistemas, afinal, são só animais marinhos e natureza – questão abordada mais adiante.
Desde governos exploratórios e permissivos com a ideologia utilitarista dos animais e do meio ambiente natural à consumidores ignorantes da natureza indomável dos silvestres, ou conhecedores, porém indiferentes, passando pelo Judiciário conservador que não raras as vezes perpetua a injustiça e por aqueles que lucram com o comércio e uso desses animais para companhia, “estima” ou entretenimento humano até a complexa rede do tráfico: todas essas figuras e situações compõem diversos aspectos do mesmo e perverso sistema antropocêntrico, o que de certo modo ameniza as aparentes diferenças existentes entre elas.
A retirada ou captura de animais silvestres da natureza, como a dos psitacídeos, demais aves e pássaros; a criação, reprodução e/ou manutenção desses animais em cativeiro com a autorização do Estado para os diversos fins exploratórios precisa ter fim, uma vez que se reveste da mais absoluta crueldade e resulta em incalculável e grave impacto ambiental, onde o lícito enseja o ilícito e vice-versa em uma mistura de identidades criminosas com a consequente perda de legitimidade na eventual hipótese de punição estatal.
Os animais silvestres não passaram pelo processo de domesticação, de modo que até mesmo aqueles que nascem em cativeiro conservam as mesmas necessidades biológicas e comportamentais dos selvagens que são impossíveis de serem atendidas em estado de privação de liberdade.
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A FARRA DOS TRÊS PODERES EM PREJUÍZO DOS ANIMAIS
Não só juristas, advogadas(os) e estudiosos(as) do direito participam ativamente do processo de criação / construção jurídica no tocante à implementação de novos entendimentos sociais com vieses progressistas, mesmo porque a sua ampla maioria é composta de pessoas com visões conservadoras ou no máximo reformistas. Cada um de nós pode e deve fazer parte deste processo sendo corresponsável pela efetivação de direitos em nossas relações humanas e sociais e, no caso de animalistas (veganas, veganos) abolicionistas, ser corresponsável pela garantia das liberdades dos animais, não sendo imprescindível a ninguém acionar o Judiciário para fazer valer um direito que pode ser respeitado em nosso cotidiano ou ainda em decorrência de nossas funções ou ocupações profissionais.
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Tampouco precisamos dispor de mandato eletivo ou de representante nos parlamentos, já que existem problemas estruturais em todas as esferas de poder que acabam anulando qualquer possibilidade emancipatória.
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Cada um de nós contribui agora mesmo através de nossas constantes escolhas para a concretização do futuro que queremos. Que ninguém aposte na inclusão legal de uma ou duas espécies (e não necessariamente inclusão na moralidade humana) porque ouviu falar que esse é o caminho para a libertação animal, descartando a possibilidade surpreendente de um salto quântico na consciência humana que nos leve para um outro patamar de compreensão acerca do mundo à nossa volta.
No campo jurídico, a magistratura diz o Direito (daí o termo jurisdição – do latim juris dicto – “dizer o direito”), pelo menos na teoria. Na prática, muitas vezes o judiciário desdiz o direito (como é o caso da desproteção dos psitacídeos) e os Tribunais também não cumprem com suas funções constitucionais. Por isso, a garantia de direitos não pode se resumir ao acesso ao judiciário (como alega o Ibama já ter feito, usando desse argumento exatamente para também descumprir com a sua função de proteção da fauna), mesmo porque geralmente não é esse o caminho para a efetivação do valor moral da Justiça (cujo conceito também é variável), pois inúmeros são os juristas, magistrados(as), promotores públicos, professores(as) e outros profissionais que ainda seguem apegados(as) a uma das teorias tradicionais mais difundidas nos cursos de direito que, na prática, descola o conhecimento jurídico da realidade mundana, da sociologia, da filosofia, enfim, que sustenta ser a Justiça um valor constituído por uma norma jurídica, de tal sorte que é justa a conduta que corresponde a essa norma e injusta a que a contraria.
Nesse sentido, não me interessa a pura e cega defesa de leis e normas jurídicas quando estas já nascem repletas de comandos que fatalmente se voltarão contra os mais vulneráveis e desassistidos em seus direitos mais básicos. As leis, decisões administrativas e/ou judiciais que permitem a posse de animais silvestres ou a sua permanência em cativeiro para o proveito humano, por exemplo, se encaixam perfeitamente nesse contexto ultrapassado de justiça que despreza valores morais, sociais, ideológicos, filosóficos, sobretudo quando essa “justiça” foi e é manejada por humanos na satisfação de seus interesses pessoais, econômicos, turísticos, etc.
O citado artifício jurídico empregado pelo Ibama no governo Bolsonaro, no afã de regulamentar o notável e ilegal favorecimento ao ministro do STJ, acabou prejudicando ainda mais a situação dos demais papagaios e psitacídeos no país ao estender uma conduta arbitrária em benefício dos cidadãos brasileiros desrespeitosos com os animais silvestres e com o meio ambiente, fazendo uso indevido de uma alteração legislativa que nasceu repleta de instabilidade jurídica.
“Em suma, é maciça a jurisprudência formada admitindo a tese de guarda em cativeiro doméstico de animais silvestres desde que em posse prolongada e bem tratados, não sendo aconselhável que o Ibama ignore tal entendimento, gerando judicializações desnecessárias e desgastantes para o cidadão, a sociedade, o Judiciário e a própria Autarquia”. (Item 41 do relatório do Ibama).
Agora o Ibama também está preocupado com o direito de ação, como se este fosse um abuso de direito daquele que escolhe defender direito próprio ou de terceiro!
Em outra questão ambiental, decisão semelhante voltou a ocorrer recentemente conforme divulgado na imprensa, quando Lewandowski decidiu absolver um homem do crime de pesca ilegal, afirmando que “seria injustiça negar a um cidadão pobre o que foi dado ao hoje presidente Jair Bolsonaro”. Enquanto advogada que tem por hábito colocar os olhos em um “montão de amontoado de coisa escrita” há mais de década, eu vou pro Judiciário e já não sei mais qual é o meu papel nesse sistema do faz-de-conta que as instituições estão funcionando.
Quando falamos de maus-tratos, abuso, crueldade e exploração animal, como exigir do Estado maior rigor e punição do particular quando esse mesmo Estado promove e facilita a ilegalidade sob diversos aspectos por meio de suas escolhas políticas ao anistiar a posse ilegal de ave silvestre, desconsiderando que ao assim agir está incentivando o tráfico, notadamente o dos psitacídeos e portanto, a prática de maus-tratos e crueldade com esses animais, a prática de crime contra a fauna, contra a ecologia? Se o Estado deve punir o particular (e no caso dos psitacídeos, não pune mais – se é que punia antes) quem punirá o Estado enquanto chancelador da má conduta e do ilícito?
O órgão ambiental passou a atuar em defesa de interesses privados em prejuízo da proteção animal e, consequentemente, do próprio interesse da coletividade já que os psitacídeos também exercem funções ecológicas essenciais na natureza.
O Ibama agravou a situação dos psitacídeos que foram e que são injustamente privados da vida livre ao emitir a chamada orientação geral em desacordo com a lei ambiental, com total amparo do Legislativo e do Judiciário, em meio aos desmandos de um governo golpista e outro de legitimidade duvidosa, comprometendo até mesmo a preservação da espécie que possivelmente já está em risco de extinção, assim revelando que a eventual repressão do ilícito sempre tem destinatários escolhidos a dedo e, seguramente, estes não ocupam as mais altas cortes do Judiciário ou de Poder equivalente, com o agravante de que agora o malfeito torna-se regra em benefício dos “pobres” cidadãos, ou não tão pobres assim (afinal, nesse sistema tudo se torna prioritário quando tentamos garantir os direitos dos animais e da natureza – talvez as únicas situações onde a pobreza de fato parece capaz de comover diferentes divisões político-ideológicas…).
O perdão generalizado pela posse ou guarda ilegal de aves silvestres pelo próprio Estado acaba por incentivar ainda mais a cobiça do particular por esses belíssimos animais e consequentemente o próprio tráfico, a própria criminalidade, atitude esta adotada por aqueles que tem a competência constitucional e legal para agir em defesa dos animais e do meio ambiente. Ativistas mais vingativos, incentivados por políticos populistas, pedem “cadeia para maus-tratos”, mas na questão animal onde está a legitimidade do poder punitivo do Estado?
A VIDA CATIVA DE ANIMAL SILVESTRE SE REVESTE DE CRUELDADE
Já dizia Rui Barbosa que “a pior ditadura é a do Judiciário”, pois “contra ela não há a quem recorrer”. Sem nenhum critério técnico e em desrespeito à mínima proteção legal dos animais silvestres, o Ibama reconheceu não o direito animal à liberdade (nem mesmo o direito ambiental), mas sim o “direito” humano à guarda doméstica de psitacídeos de origem ilegal, sempre que a ave estiver em posse prolongada de pelo menos oito anos e houver inexistência de maus-tratos.
Na prática, isso significa que estão desautorizadas as apreensões de psitacídeos (ainda que de origem ilícita) em todo o país, pois segundo reportagem da Folha de São Paulo, fiscais alegam não haver como determinar o tempo da posse, sendo um requisito impossível de ser cumprido, além da verificação da ausência de maus-tratos.
Pode ser intuitivamente percebido até mesmo por uma criança que animais alados estão em sofrimento quando vivem aprisionados, mas no mundo dos adultos que, convenientemente, fecham os olhos para a realidade, esta também pode ser percebida aguçando-se os ouvidos para receber importantes aprendizados que elucidam de modo didático a presença de inegável sofrimento e crueldade com os animais silvestres em decorrência da vida em cativeiro e portanto a insofismável situação de maus-tratos.
Mas há quem também tampe os ouvidos! Então tudo o que resta é inventar justificativas estapafúrdias para não fazer o que precisa ser feito, a exemplo da nova orientação do governo em não apreender papagaio ou outro psitacídeo sem qualquer embasamento técnico-científico. Então a orientação do governo federal e do Judiciário é ignorar sumariamente o que dizem especialistas acerca do sofrimento animal, ignorar a existência de uma discussão jurídica sobre o que vem a ser crueldade, abuso ou maus-tratos a animais, ignorar que o nascimento e/ou crescimento em cativeiro não anula a natureza selvagem dessas aves e ignorar até mesmo muitos casos de sucesso na soltura de animais para reintrodução na natureza, a exemplo de um papagaio que viveu aprisionado ou domiciliado por mais de décadas, tendo recebido a chance da tão sonhada liberdade.
O sofrimento do silvestre em cativeiro decorre em grande parte de sua tentativa frustrada de domesticação, sendo a crueldade ou maltrato inerente ao seu aprisionamento que se prolonga durante todo o tempo de sua vida enquanto perdurar essa condição domiciliar e suas implicâncias nocivas e, ainda que seja criado solto em domicílio, a prisão não deixa de existir, se manifestando de várias formas nesse espaço antinatural para esses seres.
Muito embora não sejam relevantes ou primordiais as particularidades individuais dos animais não humanos para a consideração deles como seres sujeitos de direitos (assim como ocorre na garantia dos direitos humanos), é interessante sabermos que os psitacídeos são aves que possuem o cérebro mais desenvolvido. Há quem afirme que os papagaios, por exemplo, podem ser considerados os “seres humanos do mundo das aves” devido a sua grande inteligência (o que não me deixa dúvidas de que, na realidade, são mais inteligentes do que muitos humanos). Felizmente e, para o nosso alívio, a inteligência não é um pré-requisito para sermos titulares de direitos.
Os papagaios são aves que necessitam viver em bando, são seres sociáveis com os de sua espécie, escolhem um(a) parceiro(a) para toda a vida, voam centenas de quilômetros diariamente à procura de alimentos, constroem ninhos, vocalizam com o seu grupo para troca de informações… (é… humanos não são as únicas criaturas incríveis do universo). Portanto, diferentemente do que muitos pensam, a inteligência do papagaio não está no fato dele repetir palavras humanas e sons, sendo essa condição um indicativo de estresse e sofrimento em cativeiro ante a falta de comunicação com os de sua espécie. Os animais não humanos “falam” entre si, possuem a sua linguagem e comunicação e como já disse Millôr Fernandes “se os animais falassem não seria conosco que iriam bater papo”, pelo menos não com a maioria dos indivíduos da nossa espécie…
A falta de investimento em políticas de proteção animal, ambiental e da fauna silvestre não pode ser justificativa para decisões arbitrárias e tampouco ilegais, aliás, o entendimento do gestor público deve ser exatamente o contrário: a carência de estrutura para recebimento de animais vitimados deveria incentivar alternativas que efetivamente protejam os animais conforme o mandamento constitucional, levando as autoridades a mudarem a forma de percepção e socorro dos animais na nossa sociedade, deixando de tratá-los como propriedade ou recursos ambientais em benefício humano, e assim dando efetividade na defesa animal e preservação ambiental, o que refletiria positivamente na proteção da saúde pública, na justiça socioambiental, na diminuição da criminalidade etc.
Agora que estamos nós, humanos, em isolamento social, recolhidos em nossos domicílios por força das circunstâncias, acaba sendo uma situação um tanto irônica se lembrarmos o que fazemos com os animais de outras espécies… mas também bastante oportuna para refletirmos e nos conscientizarmos sobre as reiteradas escolhas humanas em aprisionar pássaros e demais aves, animais que nasceram “mais livres” do que nós porque biologicamente equipados para voar e ganhar o céu e que, mesmo confinados pela nossa mesquinhez, jamais perdem o seu espírito libertário.
Isto sem falar nos outros animais domesticados que também escravizamos e seguimos insistindo na manutenção de práticas igualmente violentas e temerárias em nome de tradições e desejos egoísticos que, honestamente, já não mais se encaixam no presente e no futuro. Sairemos seres humanos melhores desse isolamento ou correremos atrás de novas pandemias?
A mim não resta dúvida de que o Estado deve investir, urgentemente, em educação ambiental em todos os níveis de ensino que inclua o respeito aos indivíduos do reino animal das mais diversas espécies e observância aos seus direitos fundamentais de gozo da vida livre, da integridade física e mental e da sua dignidade e, claro, em políticas públicas que ofereçam estrutura e suporte adequado em centros de recebimento, reabilitação e reintrodução de animais silvestres na natureza, ao mesmo tempo em que elabora e coloca em ação um plano nacional para abolir o comércio legalizado dos psitacídeos, demais aves e animais silvestres, pondo fim a essa perigosa e cruel atividade como forma eficaz de combate ao tráfico desses animais, investindo na verdadeira proteção animal e preservação ambiental.