🎙️ Podcast Saber Animal #007 – Pangolim

Uma mãe e filhote de pangolim saem para um passeio no centro de resgate no Zimbábue. Em cima, o filhote aprende comportamentos importantes com a mãe, como encontrar formigas.
Uma mãe e filhote de pangolim saem para um passeio no centro de resgate no Zimbábue. Em cima, o filhote aprende comportamentos importantes com a mãe, como encontrar formigas. (Foto: Elyane And Cedric Jacquet / National Geographic)

No episódio de hoje, falarei sobre o pangolim, o animal silvestre mais traficado do mundo e que foi apontado por alguns pesquisadores como sendo o possível hospedeiro intermediário do novo coronavírus ou de uma versão do vírus que agora vem causando a pandemia da Covid-19.

Apresentação e Roteiro: Vanice Cestari / Edição de áudio: Fabio Montarroios.


COVID-19

Os estudos sobre a relação do novo coronavírus com o pangolim ainda não são conclusivos, não sendo descartada a hipótese de contato com animal de outra espécie.

Saiba mais: O ASSASSINATO E A EXPLORAÇÃO DE ANIMAIS NOS COLOCARÁ DIANTE DE NOVAS PANDEMIAS, por Vanice Cestari

O que se sabe é que a propagação e disseminação da doença se deve à transmissão de humano para humano. Em meio ao obscurantismo que também se faz presente nas questões relativas à defesa animal e ambiental nunca é demais esclarecer que o pangolim, o morcego ou qualquer outra espécie de animal não humano que possa vir a ser relacionada com o novo coronavírus não são os responsáveis ou culpados pela atual pandemia. Os únicos responsáveis somos nós, seres humanos absolutamente capazes. No jornal El País Brasil, há um artigo digno de nota escrito pela jornalista Eliane Brum: o vírus somos nós ou uma parte de nós.

Os animais não humanos são as primeiras vítimas da nossa humanidade insaciável que se comporta de modo praticamente suicida e que nos levou a esse estado calamitoso atual. Para termos um futuro possível, não podemos voltar à “normalidade”.

Não existe “vírus chinês” e nem mesmo o novo coronavírus é o vilão dessa história, já que apenas segue o propósito biológico de sua existência: hospedar-se no corpo de um ser vivo e multiplicar-se, sem qualquer poder de escolha, diferentemente do “vírus homo sapiens sapiens”.

Para não pularmos de pandemia em pandemia, quiçá até mais graves do que a Covid-19, é necessário encararmos os fatos como eles são, a realidade como ela é. Precisamos escancarar as portas da verdade para que mais pessoas a conheçam a fim de que possamos aprender com os erros já consumados para então seguirmos outros caminhos em benefício de todos os seres vivos deste magnífico planeta, dos quais somos absoluta e humildemente dependentes.

Ocupar-se de nossas ações como se fossem isoladas do todo, ou ocupar-se do exclusivo destino da humanidade, é persistir no caos, na desordem da involução contrariando o fluxo vital, o qual precisa emergir cada vez mais neste nosso tempo.

Finalmente a atividade pecuária vem chamando a atenção de alguns cientistas mais empenhados em decifrar a enorme quantidade de doenças zoonóticas surgidas nas últimas décadas, por vezes ocasionando doenças mais letais nos humanos do que a Covid-19 e não só na China, mas em todo o mundo.

No site Saber Animal nós abordamos o tema em três artigos e um deles é uma crítica sobre o filme Contágio, de Steven Soderbergh, que vale assistir de novo ou pela primeira vez, caso não viu, que no nosso entendimento é a ficção virando realidade, guardadas as pontuais diferenças da trama.

Saiba mais: CINEMA: CONTÁGIO (2011), por Fabio Montarroios

Mais do que nunca a ética se impõe como um valor essencial a ser concretizado nas sociedades humanas, onde nossas ações individuais devem sempre considerar a existência e o respeito às vidas alheias, aos demais seres vivos, um dos fundamentais aprendizados trazidos pela atual pandemia. A importância de nossos atos individuais amplificados no corpo coletivo. Que essas valiosas lições de respeito às vidas alheias, que inclui os demais animais e a natureza sejam aprendidas para o bem de todos.

Saiba mais: O VEGANISMO PODE NOS AJUDAR CONTRA O CORONAVÍRUS?, por Vanice Cestari

A partir de agora eu vou contar um pouco sobre o pangolim e sobre o que humanos não veganos fazem com ele.


PANGOLIM

Com essa pandemia, muitos no Ocidente ouviram falar pela primeira vez do pangolim. O que não se ouve falar e, consequentemente, muita gente não sabe, é que os pangolins são as maiores vítimas do tráfico de animais silvestres e estão à beira da extinção já que o interesse da humanidade nos demais animais é puramente econômico, gastronômico, exploratório. Daí porque agora temos a Covid-19.

Se no passado a caça de pangolins se restringia entre a população mais pobre por uma questão de sobrevivência, agora os pangolins são covardemente capturados em seu habitat e assassinados por motivos fúteis em suposto benefício humano. Os seus corpos mortos são vendidos e servidos como iguaria e suas escamas são extraídas para a produção de fármacos e medicamentos que prometem o impossível: aumento do tônus muscular, aumento da libido e outras tantas promessas inverossímeis, inverídicas.

Os pangolins são mamíferos nativos de regiões tropicais da Ásia e da África e muito embora sejam fisicamente parecidos com o tatu-bola e com o tamanduá, na realidade são parentes mais próximos dos cães e dos ursos, eles são do tamanho de um filhote de cão da raça golden retriever. 

A vida do pangolim vem sendo dizimada por conta da cobiça de suas escamas, da gula insaciável que reduz a vida de dóceis animais a um prato culinário. E não tem nenhuma diferença entre comer a carne de um pangolim ou de um boi, frango ou peixe, todas essas práticas promovem devastador desequilíbrio ambiental, doenças e evidentemente sofrimento animal. A vida do pangolim não tem valia para os humanos que tem levado esses indivíduos ao extermínio. Matar os animais não humanos é destruir uma parte essencial de nós mesmos, os sapiens, os animais humanos.

Segundo reportagem da National Geographic Brasil publicada na edição de junho do ano passado, o ex-vice-reitor da escola americana de medicina tradicional chinesa em São Francisco afirma que na prática não há nenhuma situação em que seja indispensável o uso das escamas do pangolim, especialmente porque são compostas de queratina (o mesmo material das unhas e fios de cabelo humano). E mesmo que fosse indispensável, seria a expressão da arrogância e egoísmo humano em seu ponto alto dar causa à matança de outros seres vivos para gerar algum “conforto e bem-estar à saúde humana”, para um prazer fugaz, seja ele qual for, como geralmente acontece, sobretudo quando existem inúmeras alternativas que respeitam a vida do outro.

A reportagem da National Geographic cita que existe mais de uma centena de terapias alternativas para tratamento da saúde humana à base de ervas e minerais, mas a estupidez e ignorância continuam fazendo vítimas, continua-se violentando e abusando dos animais. Por que tanto desprezo e indiferença pela vida do outro? Nós chamamos isso de especismo. Isso também é autoextermínio. O especismo precisa ser questionado por todos nós, especialmente pelos defensores dos direitos humanos e dos valores de justiça. Como podemos atribuir aos indivíduos vulneráveis e indefesos tamanha responsabilidade em servir à nossa espécie com seus corpos, suas vidas numa autêntica escravidão e ainda hastearmos a bandeira da justiça? Por que picotar e comer animais, os corpos dos animais, silvestres ou não, quando já está mais do que demonstrado que é plenamente possível vivermos à base de uma dieta saudável, livre de crueldade e que tem potencial de regeneração planetária? Não tem como passarmos incólumes a tanto sofrimento que a nossa humanidade cria e despeja no mundo, a tanta devastação ambiental. A pandemia da vez está aí esfregando na nossa cara o tanto de coisas que há muito temos ignorado.

Reclamamos dos governantes mas seguimos apegados às tradições, costumes e crendices que prejudicam outras vidas. Enquanto a mudança individual é incipiente e assim a transformação coletiva não se concretiza, os governantes são espelhos da sociedade e assim seguem atendendo exclusiva e incessantemente os interesses do capital e da sociedade do consumo, exatamente à semelhança de nossas atitudes do cotidiano que exploram vidas alheias, causam dor, violência e sofrimento.

No Zimbábue existe um centro de resgate para pangolins, resgatados das mãos de mercadores que os caçam para contrabandear suas escamas e abastecerem o mercado chinês, isto porque o extermínio dos pangolins não está restrito ao continente asiático. Nessa Fundação, além dos tratadores humanos assumirem um papel maternal, eles conseguem ajudar muitos pangolins a se recuperarem para que possam ser devolvidos aos seus ambientes naturais, daí a importância da educação ambiental abranger, de modo adequado e eficaz, a conscientização sobre a importância da vida do indivíduo animal no seu habitat.

O corpo morto do pangolim também é consumido nas regiões oeste e central da África, além do consumo de pangolins ser realizado por grupos autóctones do sul e do sudeste asiático. Em regiões da África subsaariana, as escamas do pangolim também são usadas para “tratamentos de saúde”. Essa Fundação também abriga animais resgatados de outras espécies: um antílope, algumas vacas, uma cabra e dois asnos.

Em outro canto da África, uma jovem camaronesa veste roupas e acessórios da moda segurando uma faca afiada em uma das mãos e na outra um pangolim pelo rabo que, no alto de sua inocência e vulnerabilidade fareja a terra sem ao menos perceber o iminente golpe mortal. A jovem com um sorriso no rosto está prestes a cometer um ato covarde: matará o pangolim para vender a sua carne na barraca de sua propriedade, embora o comércio na República dos Camarões tenha sido proibido, informa a reportagem.

Clique aqui para ver as fotos da reportagem, com legenda à direita no idioma inglês.

Os pangolins são vendidos na República dos Camarões em feiras livres de carne silvestre, ao lado de macacos e pítons sobre tabuleiros improvisados e na beira de estradas. Há denúncias de que são consumidos e exportados ilegalmente tanto nos Camarões como em outros países africanos em quantidades alarmantes. Em locais onde se concentram estrangeiros, é comum encontrar a carne do pangolim, de antílopes e do porco-espinho-africano à venda em restaurantes onde constam nos cardápios antes mesmo dos pratos de cuscuz, banana-da-terra e feijão. Logo se vê que a Covid-19 se iniciou na China, mas poderia ter se originado em qualquer outro país, inclusive no continente africano.

A carne dos animais silvestres é bastante apreciada nos Camarões e segundo a reportagem muitos a preferem mais do que a carne de animais domesticados. A repórter e o fotógrafo encontraram com uma sul-africana que estava se preparando para abrir o primeiro centro de resgate de pangolins no país. A moça tem um filho de 8 anos que contou pra equipe da National Geographic o quanto ele gosta dos pangolins e o quão entusiasmado está com a possibilidade de poder ajudá-los.

A grande demanda pela carne do pangolim também fomenta o contrabando das suas escamas, o que significa que não dá pra abordar apenas o tráfico dos animais ou o consumo da carne, isoladamente.

Os investigadores de uma organização não governamental que ajudam os governos a aplicarem as leis de proteção à fauna silvestre afirmam que é cada vez mais comum verem o transporte de escamas partindo da África Central e passando pelos Camarões à caminho da Nigéria, onde os traficantes acreditam que a repressão ao tráfico seja mais branda.

As rotas de contrabando da África para a Ásia de partes de outros animais já são consolidadas, tais como dentes de elefantes e hipopótamos e assim os criminosos delas se beneficiam, alerta a reportagem. O massacre dos animais se insere em uma cadeia gigantesca, pois os governos atuam pela perpetuação do extermínio dos pangolins em benefício dos poderosos e nesse cenário leis protetivas não servem pra proteção animal, mas apenas legitimam as práticas de violência contra os animais e a destruição do ambiente natural.

A captura ou caça legalizada (que também alimenta o tráfico dos pangolins) é incentivada pelas províncias chinesas que emitem licenças, todos os anos, para que as empresas utilizem, em média, 26,6 toneladas de escamas, retiradas de cerca de 73 mil pangolins.

As escamas do pangolim são secas, moídas em pó, colocadas em cápsulas e vendidas como medicamentos variados, facilmente encontrados em feiras de remédios populares por toda a Ásia, incluindo Vietnã, Tailândia, Laos e Mianmar. Há persistência da demanda, o que faz a China contar com a produção de mais de 200 empresas autorizadas pelo governo para fabricação de cerca de 60 tipos de remédios contendo escamas do pobre pangolim.

A reportagem denuncia que o estoque de escamas menor do que a demanda e a falta de fiscalização das empresas farmacêuticas são motivos suficientes para desconfiar de que é o tráfico que alimenta o comércio legalizado. Essa dinâmica confirma o que eu já abordei no Saber Animal sobre a questão da legalidade versus ilegalidade em práticas exploratórias e aqui mais especificamente, na retirada dos animais silvestres da natureza.

As espécies asiáticas de pangolins já estão à beira da extinção, o que levou a intensificação do tráfico das espécies africanas, haja vista a pulsão destrutiva humana. Na Costa do Marfim 3,6 toneladas de escamas de pangolim foram apreendidas entre 2017 e 2018. Quantos animais foram chacinados na Ásia e na África? Já parou pra pensar? Essa altíssima quantidade de apreensão de escamas dá uma vaga ideia da barbárie sem precedentes, tanto de quem trafica quanto de quem demanda, de quem consome. Percebe que pouco importa se o comércio é legal ou ilegal?

Segundo a reportagem, estima-se que 1 milhão de pangolins tenham sido ilegalmente capturados entre 2000 e 2013. Quantas famílias de pangolins foram dizimadas? Qual é o impacto ambiental dessa aniquilação em massa? Estão à beira da extinção e continuam sendo consumidos, seus corpos traficados, suas escamas arrancadas.

Importante reafirmar, ainda que seja uma captura legalizada, não há dúvida de que esse ato se reveste da mesma crueldade, do mesmo desequilíbrio ambiental, já que a natureza não é regida por leis e normas jurídicas que comumente servem aos poderosos interesses econômicos.

Existem oito espécies de pangolim, quatro na Ásia e quatro na África, e todas elas estão em risco de extinção devido ao comércio (legal ou ilegal) das escamas e dos cadáveres desses dóceis animais que agradam os consumidores humanos e enchem os bolsos dos comerciantes.

Fazendo uma observação sobre a situação dos animais silvestres no Brasil, como já mencionei no último artigo publicado pro Saber Animal de minha autoria, os animais silvestres também são tratados como recursos naturais pelo Estado, sendo legalmente permitida a sua retirada da natureza desde que atendidos determinados requisitos, sendo igualmente permitida a sua reprodução em cativeiro e também a sua comercialização como “pet” ou animal de estimação.

Estudando um pouco o assunto e ouvindo especialistas que se ocupam, de fato, do bem-estar desses animais, não há dúvida que a simples retirada dos silvestres da natureza e sua tentativa de domesticação se revestem da mais absoluta crueldade com esses indivíduos, embora nem sempre proposital, além, evidentemente, do incalculável impacto ambiental.

E do mesmo modo que acontece na China e em outros países, essa cadeia de exploração (e de violência absurda) legalizada também favorece o tráfico desses animais, que se dá dentro do país e também fora dele. Segundo a ONG brasileira Renctas, os animais são traficados para abastecer zoológicos e colecionadores particulares, para fins científicos (ou seja, para usá-los como cobaias e experimentos) e para o comércio em petshop’s. Portanto, o combate ao tráfico de animais silvestres, assim como outras questões que envolvem a efetividade da proteção animal, é uma questão muito mais complexa do que simplesmente aumentar a punição do agente infrator, especialmente quando se pretende proteger os animais.

Todo o discurso populista que aposta apenas na criminalização e punição, no aumento de penas, é falacioso, discriminatório e oportunista e claro, muitos políticos se aproveitam disso e se elegem com a bandeira da causa animal, já que encontram amplo apoio no público leigo, desinformado e essencialmente punitivista.

Voltando à reportagem da National Geographic, mais de 4 mil carcaças congeladas de pangolins (além de escamas e indivíduos ainda vivos) foram descobertas em abril de 2015 na Indonésia em um contêiner marítimo que supostamente levava peixe congelado. Indiretamente, a demanda em consumir peixe também acabou contribuindo com o extermínio dos pangolins nesse caso.

Quem se alimenta de animais interfere negativamente em inúmeras outras espécies que sequer faz ideia, colaborando com o desequilíbrio ambiental, disseminação de doenças etc. além de financiar a dor e o sofrimento de seres vivos conscientes e sencientes, é claro.

O predador natural do pangolim é o leão e, para o desconforto daqueles que preferem fechar os olhos e ouvidos para a realidade, este sim pode ser considerado o topo da cadeia alimentar terrestre, mas a captura de um pangolim por um ser humano é especialmente covarde e evidencia aquela parte da nossa humanidade que em nada nos orgulha. A reportagem conta que quando uma mamãe pangolim sente medo, ela se enrola toda no formato de uma bola e assim protege o próprio ventre e também o seu filhote com sua penugem macia sob a armadura formada por suas escamas. Essa posição protege mãe e filho eficazmente de um leão, mas é a pior posição possível frente a um predador humano, que assim consegue os agarrar facilmente com as mãos, sem necessidade de qualquer artefato.

Tamuda é mais uma vítima do tráfico de animais silvestres e foi resgatado ainda bebê. Com um pouco de sorte, talvez o Tamuda ainda esteja à salvo e sob os cuidados desse centro de resgate que citei há pouco, no Zimbábue. É que esses centros de resgaste e acolhimento invariavelmente se tornam alvos de inescrupulosos criminosos que tentam reaver esses animais. Talvez o Tamuda tenha sido reintegrado na natureza e esteja ainda vivo, infelizmente isso tem se tornado cada vez mais difícil.

Os pangolins são animais muito sensíveis e criam laços estreitos com seus cuidadores, que os ensinam a se alimentar de formigas e cupins. Os exploradores, caçadores, consumidores gananciosos, tiram tudo deles e quando não os matam covardemente, o que por si só é um pleonasmo já que todo assassinato de um animal não humano por um humano ambicioso é revestido da mais pura covardia, os privam dos aprendizados mais caros para a sobrevivência digna deles, uma vez impedidos de observar os comportamentos e ensinamentos de suas mães. Ora, qual criança se sentiria segura, amparada e confortável sem a sua mãe?

A repórter registra um pouco do que presencia. Depois de se alimentar por alguns minutos, Tamuda “move-se desajeitadamente e o tratador mostra outro formigueiro ao animal. Este tomba para o lado como se fosse um bebê prestes a ter um acesso de birra. Tamuda enrola então o corpo na bota do tratador, que se curva e, com todo cuidado, tenta afastá-lo. Sem conseguir, porém: é óbvio que Tamuda quer atenção. Ele levanta as patas dianteiras, implorando para ser carregado. O tratador tenta se manter firme – afinal, a ideia é que mostre ao pangolim como se virar sozinho -, mas o apelo é forte demais para ser resistido. Como faria qualquer mãe pangolim, ele acomoda Tamuda em seus braços e o embala”. Era no dorso da mãe que Tamuda devia estar e esse direito lhe foi retirado, assim como o direito de sua mãe ao desfrute da própria vida e maternidade.

Há 20 anos o comércio internacional das quatro espécies asiáticas foi proibido e mais recentemente, desde 2017, entrou em vigor a proibição do comércio internacional de todas as oito espécies por meio de uma convenção coletiva firmada por 183 países. No entanto, o tráfico não foi interrompido e os carregamentos com as maiores quantidades de escamas são originários de Camarões, da Nigéria, de Serra Leoa e de Uganda, quase sempre com destino à China.

Nesse cenário, podemos imaginar que o que é confiscado pelas autoridades chinesas não mostra a verdadeira realidade do tráfico, mas na realidade serve como cortina de fumaça, já que é interesse do governo chinês a continuidade desse negócio nefasto. Em 2017, por exemplo, 11,9 toneladas de escamas de pangolim, retiradas de aproximadamente 30 mil animais foi considerada uma das maiores apreensões realizadas. Em 2018, um único carregamento de mais 7 toneladas foi apreendido.

Mais adiante, a reportagem conclui: “segundo estimativas conservadoras, as apreensões representam um quarto de todo o tráfico”.

Estamos falando de centenas de milhares de animais assassinados todos os anos por motivos fúteis, em nome da riqueza financeira de poucos e mediante a impossibilidade de defesa dessas vítimas, estamos falando de conduta hedionda, de holocausto animal, de desastre ambiental e sanitário, de desigualdade e injustiça social.

E a barbárie não para por aí. Esforços foram ajustados entre chineses e africanos para a criação intensiva de pangolins a fim de extraírem constantemente as suas escamas, vindo a matá-los, portanto, em larga escala e embora os pangolins sejam extremamente sensíveis e não consigam sobreviver muitos dias em cativeiro, nada impediu os envolvidos de fundarem, a partir de 2013, duas empresas chinesas que passaram a operar em Uganda.

Segundo a reportagem da National Geographic, em 2016 e 2017, ambas empresas foram alvo de buscas pelas autoridades ugandenses sob a suspeita de serem instalações de fachada para operar o tráfico de pangolins capturados na natureza, inclusive uma filial em Moçambique.

É até difícil imaginar o sofrimento a que são submetidos esses animais em cativeiro antes do seu covarde assassinato. Por estarem presos a um ambiente antinatural, já que são animais silvestres, os dóceis pangolins ficam propensos a úlceras estomacais e a pneumonia, em geral provocadas pelo grande estresse do confinamento.

O desrespeito pela vida animal é levado até as últimas consequências, até a extinção das espécies e causando irreversível desequilíbrio ambiental, colocando todos nós em risco. Poucos tem essa compreensão, poucos questionam recomendações de autoridades e assim seguem repetindo sistemas de crenças perigosas, como por exemplo a busca de alívio para seus males em fontes de origem animal.

A repórter da National Geographic acredita que a quantidade de gente interessada na medicina tradicional chinesa tende a aumentar porque a escola chinesa está prestes a ser incorporada aos tratamentos recomendados pela Organização Mundial da Saúde.

A ativista sul-africana que estava nos preparativos para montar um centro de resgate de pangolins convidou a repórter e o fotógrafo a acompanharem uma viagem por uma estradinha de terra, para a soltura de três pangolins resgatados na República dos Camarões. A jornalista relata a frustração que foi ver aqueles animais sendo soltos perto de um campo gramado, depois que avistou no caminho da ida uma barraca de carne de animais silvestres à venda ao lado de um punhado de escamas de pangolim que secavam próximo dali. Sem nenhum apoio dos órgãos governamentais, aliás, eles fomentam esse comércio, como garantir a sobrevivência desses animais?

Mais do que libertar os animais, devolvê-los à natureza e à sua própria vida, devemos entender que nenhum animal é recurso ambiental à serviço humano. A natureza também não é nosso recurso, mas nossa fonte de vida. Nós somos todos animais. Evocando a cultura indígena, nós somos a natureza. É nosso dever humano não participar dessa exploração e destruição.

Que a nova pandemia que aflige humanos e a possível relação com o animal mais traficado do mundo, seja para o consumo, seja para o comércio de suas escamas, sirva de muitas reflexões sobre o nosso comportamento com os demais seres vivos, sobre o nosso papel na natureza e nossa relação com esse planeta maravilhoso que é dos que aqui estavam antes de nós, o qual tomamos provisoriamente emprestado.


Músicas:

Luteous pangolin, Ben Monder

Virus (Björk Guðmundsdóttir e Sjon), Björk

O sal da terra (Beto Guedes e Ronaldo Bastos), Beto Guedes