⚖️ Queremos leis abolicionistas!

Edificações do Congresso Nacional em Brasília. A imagem dos prédios está refletida no espelho d'água enquanto o sol se põe.
Fachada do Congresso Nacional, a sede das duas Casas do Poder Legislativo brasileiro, durante o amanhecer. As cúpulas abrigam os plenários do Senado Federal (convexa) e da Câmara dos Deputados (côncava), enquanto que nas duas torres - as mais altas de Brasília, com 100 metros - funcionam as áreas administrativas e técnicas que dão suporte ao trabalho legislativo diário das duas instituições. Obra do arquiteto Oscar Niemeyer. Foto: Pedro França/Agência Senado

A vigente Constituição da República reconheceu que a fauna (os animais, sem distinção de espécie) são sujeitos do direito ao meio ambiente sadio, dentre outros direitos fundamentais, assim como também houve o entendimento – doutrinário e jurisprudencial – de que os seres humanos também possuem o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. “Todos têm direito”.

Ainda que este não fosse o entendimento consolidado à época, esta percepção foi sendo desenvolvida e especialmente compreendida ao longo das últimas décadas: o ser humano está inserido em um sistema ecológico que se desenvolve em simbiose, sendo dependente de outros seres vivos (biota) e de fatores abióticos (água, temperatura adequada, solo etc) para a sua própria existência e manutenção da vida. Este entendimento (direito fundamental) aos ecossistemas saudáveis pode ser facilmente estendido para os animais não-humanos por força do dispositivo constitucional.

A Constituição da República, lei maior do Estado, também reconheceu os animais como sujeitos do direito de não serem submetidos à crueldade, de modo que podemos facilmente concluir que, pelo menos desde 1988, se faz implícito e lógico o reconhecimento de que os animais são seres sensíveis ou sencientes. Neste ponto é importante notar que, caso a intenção do legislador fosse a exclusiva proteção ecológica ou ambiental (e/ou ainda a mera preservação da dignidade humana) a redação do inciso VII não iria tão longe. Veja abaixo o trecho da Constituição Federal de 1988 em seu artigo 225, § 1º e inciso VII:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público: (…). Inciso VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.

A lei não contém palavras inúteis é uma expressão jurídica que alude a um princípio básico de hermenêutica (interpretação) e aqui a citamos porque a Constituição da República, em sua redação original, dispôs clara e taxativamente sobre a proibição de práticas que submetam os animais à crueldade.

Isto significa que a nossa Lei Fundamental reconhece que os animais não são “coisas” e que possuem direitos (ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao exercício da função ecológica, à perpetuação da sua espécie e a não submissão à crueldade), muito embora o Código Civil de 2002 (de hierarquia menor no sistema jurídico pátrio, ainda reproduza a ideia central patrimonialista do Código de 1916 que disciplinava animais como “coisas” na mesma categoria das “pedras, conchas e outras substâncias minerais e vegetais”) dispondo atualmente em seu artigo 82: “são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio” sem citar, no entanto, a palavra “animal” ou “animais” neste artigo.

De “coisas” a “bens móveis” (?), nada mudou para os animais no campo privado do direito civil por um motivo central: “coisa”, para o direito, tem significado diverso do uso popular do emprego dessa palavra. Se no atual Código Civil não há artigo que afirme que “animal é coisa”, como um projeto de lei poderia alterar o inexistente proibindo o tratamento de animais como coisas?

Juridicamente, entende-se que o conceito de coisas e bens nem sempre são convergentes, ou seja, algo pode deixar de ser coisa mas não necessariamente deixará de ser bem ou vice-versa. Essa relação gira, fundamentalmente, em torno da possibilidade ou não de apropriação e, principalmente da existência ou não de interesse econômico. Daí porque começa a fazer mais sentido o fato de diversos dispositivos esparsos no Código Civil se referirem a animais como objetos de penhor, animais de serviço, animais utilizados na indústria, venda de animais… nada disso seria alterado por um PL que diga “animal não é coisa”, por exemplo. Como é sabido, a estrutura socioeconômica do país sustenta suas bases na utilização e instrumentalização dos animais, sistema inalterável por uma eventual “lei simbólica” para inglês ver.

Hipoteticamente, uma nova lei que venha declarar “é vedado o tratamento de animal como coisa”, o qual passará a ter “natureza jurídica sui generis”, sendo reconhecido como ente “despersonalizado”, terá força suficiente para alterar essas mesmas bases estruturais? Evidentemente que não, pois não produzirá eficácia alguma tendente a abolir a instrumentalização e o uso mercantil / econômico desses animais. Inovação legislativa e revolucionária seria reconhecer os animais como pessoas não humanas.

Deixando o Código Civil de lado que, definitivamente, em nada contribui na defesa animal, o Decreto de nº 24.645 de 1934 recepcionado pela Constituição de 1988 com força de lei (nos artigos que com esta é compatível), dispõe sobre a tutela dos animais pelo Estado, dispõe sobre a cooperação entre poder público e organizações da sociedade civil para a proteção dos animais, exemplifica hipóteses de maus-tratos aos animais, trata da representação dos animais em juízo, ou seja, é uma das primeiras leis em defesa dos animais, sendo insofismável o reconhecimento lógico de que os animais já são reconhecidos como seres sencientes e não como “coisas” há muito tempo em nosso sistema jurídico.

Em uma simples interpretação jurídica na análise de um caso concreto, as leis de proteção animal (existentes até mesmo em alguns municípios) e as leis ambientais estão “em pé de igualdade” com o Código Civil (especialmente se forem leis federais), quero dizer, em todo caso estão hierarquicamente abaixo da Constituição, devendo sempre serem interpretadas à luz da Constituição Federal (e/ou de Constituições Estaduais mais benéficas). A Constituição da República de 1988 nunca tratou os animais como “coisas”, pelo contrário, inseriu um artigo em clara defesa dos interesses e direitos dos animais não humanos.

Nesse cenário, o problema não é a ausência de leis que protejam os animais, mas a falta de aplicação ou eficácia da legislação protetiva, a falta de leis abolicionistas, já que muitas estão em descompasso com a Constituição Federal, além da dificuldade de universalização dos direitos animais fundamentais já reconhecidos na nossa Magna Carta. Também podem ser apontados outros fatores como: a necessidade de extensão das decisões judiciais favoráveis, ultrapassando as barreiras de espécie e, não menos importante, a efetiva fiscalização dos órgãos governamentais.

Outro problema gravíssimo é a ausência de políticas públicas para a proteção dos animais conforme é constitucionalmente assegurado, políticas emancipatórias evidentemente.

Por ora, compete aos pioneiros ativistas e defensores dos direitos animais, bem como aos profissionais do direito que apregoam a justiça social e ambiental, a ampla difusão do conhecimento sobre os interesses e direitos animais, a importância ética de respeitá-los, assim como a conscientização da total desnecessidade de instrumentalização dos animais nos tempos modernos.

Diz-se que o Direito evolui quando a sociedade evolui, mas o contrário também pode acontecer, isto é, a sociedade evoluir com um ideal progressista e factível no horizonte, estabelecido no sistema jurídico. Talvez a continuidade da civilização humana neste planeta dependa de uma iniciativa mais “ousada” do tipo.

Em tese, a lei pode traçar um paradigma a ser alcançado, como é o caso de alguns dispositivos da Constituição Federal Brasileira. Por outro lado, a prática jurídica atual tem mostrado que a lei também costuma ser o resultado de uma correlação de forças diversas que reflete os anseios sociais de sua época (especialmente os das classes dominantes) e assim sendo não tem o condão de mudar a realidade, mas de garantir a manutenção desses interesses e privilégios. De todo modo, o Direito é mais do que um amontoado de leis.

O Projeto de Lei nº 27/2018, apelidado de “animal não é coisa”, se aprovado conforme a sua atual redação, não conferirá nenhum direito instantâneo a animais de quaisquer espécies. Isto porque está a afirmar que os animais não são pessoas. Não se trata de uma lei inovadora como vem sendo alardeada, tampouco abolicionista. Os animais não humanos permanecerão explorados e violentados sem leis abolicionistas. Se e quando vier à aprovação, por certo será apenas mais uma lei sem qualquer eficácia para fins protetivos, muito pelo contrário. Na mais provável hipótese, servirá de amparo à continuidade de práticas utilitaristas, bem-estaristas que objetificam animais. Se assim não fosse, alguns direitos minimamente libertários deveriam ser expressamente reconhecidos aos animais, sem mais delongas. Ao invés disso, reconhece que animais não são pessoas (conforme a redação do projeto de lei, são sujeitos de “direitos despersonificados” [sic]). Ao que parece buscou-se afirmar que são titulares de direitos mas sem personalidade jurídica, não sendo alçados à inseparável proteção legal como acontece com todo ser humano quando nasce com vida e até mesmo com as “pessoas” jurídicas. Nenhuma inovação no melhor sentido da palavra, apenas continuidade da exploração.

Ao longo de quase 50 anos, ambientalistas gradativamente foram conquistando espaço público para a pauta ambiental na proteção e defesa do meio ambiente global e hoje é bastante presente o entendimento de que o meio ambiente sadio é também um direito de todos, além de ser um direito humano fundamental conforme citei anteriormente, muito embora a sua concretude esbarra nos planos políticos de países extrativistas, dentre outros desafios. Um exemplo de que a luta por direitos é permanente e incessante.

Acreditar que a aprovação de uma lei federal não abolicionista vai melhorar a situação dos animais não-humanos neste momento que estamos vivendo no país é, no mínimo, ingenuidade. Além do mais, a sua redação é tão vaga e imprecisa, atécnica, que não parece exagero dizer que vai ao encontro (converge) até mesmo das ideias (!?) do atual governo federal. “Afirma-se os direitos dos animais”. Quais direitos? “Animais possuem natureza biológica e emocional”. Dentre outras divagações e obviedades. Clique aqui para ler o texto do projeto de lei em questão.

Para ilustrar meu raciocínio, faço aqui algumas provocações:

  • Zoológicos serão fechados para visitação e transformados em centros de reabilitação?
  • Haverá proibição de construção de novos aquários e fechamento dos já existentes?
  • Animais domésticos e/ou silvestres não serão mais comercializados?
  • Parques temáticos serão proibidos de funcionamento, proibidos de adquirirem novos animais?
  • Centros de pesquisa, universidades e laboratórios serão proibidos de usar e testar seus experimentos e/ou produtos em animais?
  • O uso de cobaias ficará no passado sombrio da humanidade?
  • A ciência vai, finalmente, se aliar à ética?
  • Veículos de tração animal serão finalmente abolidos do sistema de trânsito? (Aliás, melhor seria uma lei revogando artigos que dispõem sobre tração animal no Código de Trânsito Brasileiro!).
  • A indústria alimentícia vai liberar os animais não-humanos e suas secreções fisiológicas da cadeia produtiva? E a indústria de peles? De cosméticos? De produtos de limpeza? E a farmacêutica? Quais direitos, afinal, terão efetivamente os animais?
  • Governos farão campanhas educacionais em massa para informar a sociedade civil sobre a instrumentalização “desnecessária” dos animais não humanos, para além de cães e gatos?

Se pensarmos em toda a cadeia exploratória, mais perguntas surgirão. Há resposta para, pelo menos, alguma delas? Possivelmente, o Projeto de Lei apelidado “animal não é coisa” servirá para continuar fundamentando o tratamento de animais como coisas!

A crueldade e os maus-tratos, já sabemos, são práticas vedadas por leis há décadas e décadas, portanto não basta culpar o responsável pela redação do Código Civil de 2002 (que já não define animal como “coisa”, frise-se). Não é devido a redação do Código Civil que muitas pessoas não respeitam os animais não humanos. Aliás, na atual redação do Projeto de Lei em questão (antigo Projeto de Lei nº 6.799/2013), o Código Civil não será alterado, mas outra lei federal, a de nº 9.605/98 (legislação penal especial) para dispor que não se aplica a definição de bens móveis aos “sujeitos de direitos despersonificados”.

Outra pergunta inquietante: com a aprovação do Projeto de Lei nº 27/2018, como fica a Política Nacional do Meio Ambiente (lei federal nº 6.938 de 1981) especificamente em seu artigo 3º, inciso V que trata a fauna como recurso ambiental? Pela sistemática jurídica, lei posterior revoga lei anterior. Se animais deixarem a categoria jurídica de bens com a aprovação do Projeto de Lei nº 27/2018, o IBAMA está proibido de conceder licença, renovação ou registro para uso da fauna e de suas partes, produtos e derivados para os mais diversos fins (criadouros científicos, criadouros comerciais, zoológicos, circos, indústria de peles, importação e exportação de animais vivos e abatidos etc). Que maravilha, o sonho de qualquer animalista abolicionista! Alguém imagina para já estas possibilidades e, ainda por cima, com esse bizarro projeto de lei? Ricardo Salles e Jair Bolsonaro acharão genial, não é mesmo? Afinal, a natureza jurídica sui generis aliada a “despersonificação” dos animais não-humanos pode dar margem para situações jurídicas bastante inusitadas e esdrúxulas, aliás, a cara desse desgoverno. Se sancionado o projeto, talvez seja lembrada como mais uma “lei que não pegou” (na melhor hipótese!).

A Lei Áurea que aboliu a escravatura no Brasil em 13 de maio 1888 foi promulgada em dois artigos, o primeiro declarando extinta a escravidão, o segundo revogando as disposições em contrário. Direto ao ponto. Objetiva. É fato que ela foi precedida por duas leis anteriores, a Lei do Ventre Livre em 1871 e a Lei dos Sexagenários em 1885, ambas abolicionistas. Alguém imagina os defensores do abolicionismo se conformando com leis vagas, genéricas e não abolicionistas? Os movimentos de luta abolicionista antiescravista conquistaram a abolição da escravidão depois de profundas mudanças nas estruturas sociais, políticas e econômicas numa correlação de forças externa e interna, não foi uma bondosa e simples canetada do poder imperial que libertou os escravos negros, aliás, o governo os libertou formalmente mas virou as costas desde então para a inclusão e justiça social dos povos negros até os dias atuais.

A legislação de alguns países vem refletindo, paulatinamente, a questão da senciência e da não crueldade com os animais não humanos e não descarto certa relevância simbólica de alguns atos legislativos, porém acredito que como civilização humana neste século XXI podemos mais. Nenhum homem público contribuirá com uma “sociedade mais consciente e solidária” escrevendo isso num papel para fazer bonito… Que desperdício legislativo, francamente! A solidariedade já é um objetivo fundamental da República, não carece ser reproduzido em escritos, tampouco em novas leis, precisa ser aplicado!

A defesa dos interesses ou direitos dos animais já vem de longa data e essa discussão precisa avançar em toda a sociedade, inclusive obter apoio de ambientalistas e ecologistas, de estudantes, de pesquisadores de diferentes áreas, de educadores, de profissionais do direito, de biólogos, de outros movimentos sociais, de setores progressistas. De toda gente. Isso não acontece com a sanção de uma nova lei que sequer concede direitos, tampouco liberdade.

Algumas universidades estrangeiras já oferecem cada vez mais em seus currículos a chamada disciplina do Direito Animal e arrisco dizer que com o propósito maior de implantação e aperfeiçoamento de medidas bem-estaristas para maior regulação do mercado. Aqui, ao que me parece, caminha-se com o mesmo propósito. Desde o início do século XIX surgiram as primeiras organizações protetoras dos animais e leis condenando a crueldade praticada contra eles (a exemplo da Inglaterra, Alemanha, França) no entanto ainda carecemos de leis abolicionistas a nível nacional e internacional, talvez porque nem sempre o real interesse seja, de fato, o bem estar animal propriamente dito (fim da exploração animal).

Ir além desse corpo legislativo e pôr em ação medidas abolicionistas, por exemplo, seria mais eficaz para evitarmos o sofrimento dos animais devido a violência que dirigimos contra eles, porém manter a exploração animal é também interesse de muitos Estados e setores sociais.

A Índia, em decisão judicial histórica, proibiu o confinamento de pássaros em gaiolas e não precisou de uma lei que declarasse que pássaros tem asas para voar, dentre outras decisões abolicionistas garantidas pela Suprema Corte Indiana.

A neutralidade em certos momentos parece ser a melhor opção, mesmo porque numa sociedade violenta, a afirmação de preceitos éticos tem lá a sua importância pedagógica. Aqui não parece ser o caso, pois a “neutralidade” muitas vezes também indica um posicionamento. Acredito que o verdadeiro abolicionista é um ser rebelde por natureza que tem o dever primeiro de indagar a ordem vigente e tudo aquilo que não possui princípios libertários. Às vezes é preciso mexer nas coisas para que se aparente um falso progresso e então simplesmente permaneçam como estão.