🌎 Veganismo libertário 

Protesto de grupo ativista pelos direitos animais em Lisboa (PT).
Protesto de grupo ativista pelos direitos animais em Lisboa (PT).

Em breve completará uma década que exclui da minha alimentação a carne dos animais. Em decorrência disso, outros hábitos de consumo também foram mudando, com atenção na escolha de produtos de higiene, cosméticos, itens de moda… 

Quando adolescente me sugeriram de montar em um cavalo num sítio da família e percebi que aquilo não fazia sentido pra mim, mal subi e já desci com o cavalo sem sair do lugar. Entretenimento com o uso / exploração de animais nunca me agradou, salvo enquanto criança quando gostava de ir ao zoológico por gostar de animais (pois é…), sem entender o que fui perceber anos depois: a condição de aprisionamento deles, a tristeza dos animais pela privação da sua liberdade, o comportamento antinatural fora da natureza e outras questões que, agora, não vem ao caso. Gostava muito mais do simba safari e depois entendi o porquê: lá os animais ficavam, aparentemente, livres.

Mas agora para mim, pouco importa se você come ou não come carne e quais são seus outros hábitos de consumo. Simplesmente não é da minha conta. Continuo discordando de tudo aquilo que envolve a exploração dos animais na sociedade e a destruição sistemática da natureza, mas hoje entendo muito bem porque isso acontece. O que realmente me importa e me diz respeito é sobre quem sou nessa história, o que faço, e a partir disso como eu influencio, através de meu exemplo, o mundo ao meu redor.

No mundo de hoje a informação está por toda a parte e apesar do acesso à internet ter crescido nos últimos anos no país, ainda há dificuldades para o uso, haja vista a realidade do povo brasileiro, mas o conhecimento sempre pode chegar através de outros meios como livros, televisão, rádio, familiares, amigos, pessoas próximas etc. Mas nem por isso “é fácil ser vegan@” como muitos “influencers” ou o empresariado vegano gostam de dizer.

Depois de sete anos praticando à risca o que muitos ativistas entendem por veganismo, fui mudando meu modo de pensar em alguns aspectos (ainda bem – aliás, mudanças são importantes), passei a perceber melhor os reais obstáculos que dificultam a adoção desse estilo de vida pelas pessoas, principalmente por pessoas da classe média ou mais pobres. 

Se você não possui uma condição financeira muito favorável ou habita uma região onde não há comércio de produtos veganos (ou quando há, são monetariamente inacessíveis) e ainda assim se priva de consumir determinados itens de origem animal porque quer, ok, escolha sua. Seja lá qual for a motivação, se pelos animais, pelo que se acredita (crença individual) ou se entende por compaixão, quando alguém decide não consumir (ou consumir) algo, está sempre fazendo uma escolha de ordem pessoal. Ninguém tem a verdade sobre o outro e assim não pode dizer o que é melhor ou pior ao outro ser humano que também faz parte do todo, não somente os animais.

Não são todas as pessoas de condição financeira similar ou circunstâncias de vida similares que farão as mesmas escolhas que as nossas. Pessoas diferentes, universos diferentes, realidades diferentes… grande possibilidade de fazerem escolhas diferentes. Podemos entender isso?

Uma pessoa da classe média (ou pobre, que é a mesma coisa) ou mais pobre ainda, que não consome nada de origem animal não é necessariamente mais consciente do que outra que consome. A que não consome pode estar indo contra a sua verdade interna apenas para se encaixar em um modelo que funciona para outros mas não para si e isso não é consciência.

As pessoas com maior disponibilidade financeira possuem maiores facilidades nas questões de consumo por uma série de fatores, inclusive por estarem inseridas ou muito próximas de regiões onde se concentram estabelecimentos exclusivos nos quais também se concentram comércios de produtos veganos.

Mas não é somente a classe social que conta, há também diferentes condições ou circunstâncias de vida, tenham as pessoas mais ou menos disponibilidade financeira, há uma variedade de realidades diferentes (inclusive num mesmo grupo social) onde não há como encontrar iguais padrões de comportamento ou consumo. Cada indivíduo é um, é único (a redundância aqui ajuda a esclarecer o que estou escrevendo) e cada um sabe o que é melhor ou mais adequado para si.

Esse discurso que atribui toda a responsabilidade pela exploração animal existente na sociedade ao público consumidor é raso e oculta parte importante da verdade. Onde está a responsabilidade de governos, industriais, empresários, pesquisadores, acadêmicos? É como se não houvesse.

Muitos veganos também escolhem não olhar para o fato de que produtos veganos como: queijo vegetal, manteiga vegetal, maionese vegetal, iogurte vegetal, itens de padaria e confeitaria em geral (por exemplo), feitos à base de plantas, são muito mais caros do que os “normais”, além de serem vendidos em tamanho “miniatura” se comparados com os outros.

O veganismo que ativistas propagam aqui no Brasil é elitista, excludente e um tanto arrogante. A realidade brasileira é diferente da europeia, inclusive em termos educacionais (e veja que interessante: fui buscar uma imagem para ilustrar esse artigo e acabei encontrando a notícia de um protesto de ativistas pelos direitos animais em Lisboa, onde um deles entende que o primeiro passo é acabar com subsídios à indústria pecuária e “fazer com que a opção mais sustentável, a opção mais ética, seja também a opção mais barata”.

Eu possuo o mesmo entendimento exposto acima e já compartilhei aqui no Saber Animal em artigos anteriores de que não somente quem consome, mas principalmente a indústria, a comunidade científica, os governos… são grandes responsáveis por tamanha exploração. E dentro do Brasil existe uma infinitude de diferenças e ideologias, logo o veganismo e até mesmo o que se entende por direitos animais nunca será o mesmo para todos. Se o entendimento acerca de um conceito varia de pessoa para pessoa, seus significados também vão variar.

Desde menina, sempre quis entender o por que das regras, o que estava mais oculto e profundo por debaixo de uma norma que alguém criou mas muitas vezes ninguém sabia explicar a necessidade daquilo. Nunca me contentei com a superficialidade da vida e das pessoas, pois eu sabia que havia algo a mais, muito mais importante e essencial onde eu acreditava que encontraria a justiça.

Mais adiante me formei em Direito e aprendi que normas de conduta coletiva são provenientes de leis e nesse meio vi muita injustiça e pouca justiça. Enquanto sociedade nos países democráticos, todos estão sujeitos às leis, mas chegamos num ponto em que não precisamos mais de novas leis e sim implementação de boas leis, elaboração de políticas públicas e revogação de leis inúteis. A nível coletivo, todos temos ampla liberdade, garantida por esses parâmetros democráticos. Os animais, assim como os humanos, também têm a sua liberdade inata, embora nem sempre respeitados, pois a maioria das pessoas não sabe, mas também seguem (seguimos) as leis do próprio inconsciente.

Os direitos humanos estão estruturados nos países democráticos mas ainda assim e ainda hoje (século XXI) precisam sempre ser defendidos, ante inúmeras violações. Os direitos animais também começaram a ser defendidos há mais de século no Brasil (como já compartilhei aqui no site) muito antes da existência de ativismo vegano.

A mudança na forma como a humanidade trata os animais já está acontecendo, bem como a libertação dos animais, embora muitos ainda não notem. Com o tempo, isso vai se evidenciando cada vez mais. Não há mais necessidade de permanência no mesmo discurso separatista e egocêntrico entre quem é vegano e quem não é, quem é mais consciente e menos consciente, quem faz mais pelo planeta e quem faz menos (ou quem parece que não faz nada), quem salvou um ou dois animais e quem salvou cem… somos interdependentes uns dos outros e habitamos todos o mesmo planeta.

Cada um está fazendo o que pode e conforme a sua consciência alcança. É simplesmente isso. Vamos criticar menos o outro e olhar mais para os nossos atos. É assim que a libertação individual e coletiva caminhará mais rápido.

Ao longo do tempo, passei a ver no discurso ativista muita incoerência, desconexão com a realidade, egocentrismo, autoritarismo, falsa espiritualidade (ego espiritual), onde muito se fala em direitos animais ou defesa à liberdade dos animais mas não se estende aos semelhantes humanos. Pode haver nessa conduta uma auto-opressão, não permitindo a si próprio um pouco de liberdade, o que nada tem a ver com manifestar compaixão, mas o peso de um sentimento de culpa que é consciente (como aqueles que dizem sentir arrependimento por não terem parado de se alimentar de animais há mais tempo) ou muitas vezes inconsciente. 

Direitos animais e veganismo é sobre respeito, inclusão e liberdade, cujo sentido pode ser variável a depender do momento e entre as pessoas e não um método de autoprivação.

A minha definição pessoal de veganismo está associada à compaixão com os seres sencientes, foi esse sentimento que me trouxe ao vegetarianismo (e depois veganismo). Mas não foi um conceito que peguei de fora ou que aprendi de alguém. Quando solteira, não me agradava ver uma sardinha picotada na tábua de cozinha da minha mãe para a nossa gatinha Catuxa comer. Depois que comecei a cozinhar, não me agradava manipular carne vermelha, começava ali uma certa aversão, sinais de que algo estava acontecendo. Mais tarde entendi no meu coração que eu não queria, que não tinha o direito de fazer mal a outro ser senciente, ainda que de modo indireto eu não queria mais compactuar com isso. Mas esse foi o meu caminho, não significa que deve ser o caminho de outras pessoas.

Conectei a violação de direitos humanos com a violência dirigida aos animais e então fiz a minha escolha pelo vegetarianismo sem muito pensar. Logo depois, fui para o veganismo e ao longo do tempo passei também a me incluir e assim considerar minha real e atual possibilidade.

Continuo não consumindo nenhum tipo de carne animal porque eu não necessito (hoje entendo que seres humanos possuem necessidades alimentares diferentes e sei que isso muitos não irão entender – e tudo bem) e, principalmente, não sinto mais esse chamado desde 2015, assim como continuo sem atração para ovos, laticínios e derivados. O que mudou? Agora, eventualmente, consumo itens que na sua composição podem ter diluição de ovo ou leite, geralmente pães diferentes (croissant, por exemplo), creme de avelã, panetone, bolo de aniversário alheio quando sinto vontade… Não há similar opção vegana para muitas coisas, quem está nessa há um bom tempo conhece bem essa verdade.

E nem sempre podemos – ou queremos – fazer tudo isso em casa (e aqui não importa o motivo, que também é variável: simplesmente por dar muito trabalho ou por preguiça mesmo, por não ficar tão bom quanto aquele item usualmente vendido, por não estar com tempo disponível etc). É cômodo dizer aos outros fazerem comidinhas diferentes em casa para aqueles que vivem da culinária vegana, para youtubers veganos, para aqueles que têm empregados que o farão ou outras facilidades que a grande maioria das pessoas não tem.

Moro fora da capital de São Paulo, porém relativamente próxima da Zona Norte. Se algum empresário vegano se habilitar em abrir uma padaria – que não seja, mais uma, na Zona Sul – e também não cobrar uma pequena fortuna pelos itens (como o fazem), já terá aqui uma cliente.

Esse veganismo que a grande maioria prega no ativismo (e como o empresariado no geral pratica no comércio) é elitista, excludente e para poucos. Como é possível “se colocar no lugar dos animais” (ter empatia por eles) e nenhuma empatia pelos humanos (e ainda, humanos que também se identificam como veganos)? Como é possível não haver nenhuma cobrança ou protesto direcionado a outro público que não seja o consumidor?

Para mim, veganismo não é sobre seguir uma cartilha, não é ditar regras de conduta aos outros e nem ser obediente às regras ditadas por outro(s). Veganismo pode ser abolir ou reduzir a sua participação no uso de animais de algum modo (vestuário, itens pessoais, consumo no geral). Ou poderia ser simplesmente se engajar coletivamente pelos direitos animais? Veganismo é sobre liberdade, que inclui a libertação animal sem excluir ou menosprezar a liberdade humana. É sobre incluir o próximo, seja ele de qual espécie for, é sobre ouvir mais o coração, junto da razão.

Não é sobre “ensinar compaixão”, não é religião, buscando convencer aos outros sobre aquilo que se fala mas ainda muito pouco se sente. Para mim, o veganismo que faz sentido dentro da minha verdade é sentir a compaixão vibrar por dentro, compaixão pelas pessoas (que é incondicional – independentemente do que fazem ou não), a compaixão que também inclui a si, estendendo-a aos animais que puder (ou no sentido inverso se para você funcionar assim).

E desse nível do coração, a prática do veganismo nem precisará mais ser defendida, pois será natural, leve, livre, sem dogmas, sem busca de uma perfeição humana porque esta não existe. 

Para mim, o veganismo é uma prática em construção e quem define o que está dentro do possível e praticável (expressão difundida pela primeira sociedade vegana britânica de 1944) é o indivíduo que se identifica como vegano, conforme sua consciência individual e livre escolha, sem culpa.

Para ler mais sobre este tema, clique no seguinte destaque: Sobre o veganismo.