🐾 Regulamentação da venda de “pets” atende o bem-estar humano

dois cães da raça shi-tzu presos em gaiola e expostos à venda em comércio
Foto: Colin McConnell / Getty Images

O comodismo do bem-estar humano (porque bem-estar animal, de fato, não há em condições de objetificação e exploração de seres vivos sencientes) não levará à libertação animal e na prática têm se mostrado um atraso às iniciativas abolicionistas.

O conceito de bem-estar animal surgiu na Grã-Bretanha na década de 60, tendo como ponto de partida uma investigação parlamentar britânica sobre o bem-estar dos animais em sistemas intensivos de produção pecuária, com foco na necessidade dos animais de se levantar, deitar, virar e esticar os seus membros, o que deu origem ao estabelecimento das chamadas “As Cinco Liberdades”.

Na década de 70, o Comitê Consultivo para Animais de Fazenda do Reino Unido (Farm Animal Welfare Advisory Committee) entendeu por bem ampliar esse conceito para abranger necessidades físicas e mentais dos animais (como “evitar” o medo, a angústia e “possibilitar” a expressão do comportamento natural), incluindo assim o reconhecimento da senciência animal.

Em 1993, passadas três décadas da primeira investigação, As Cinco Liberdades foram finalmente explicadas sobre o que se diz buscar no sistema da exploração animal:

1. Liberdade de fome e sede: acesso imediato a água fresca e dieta para manter a saúde e o vigor.

2. Livre de desconforto: ao fornecer um ambiente apropriado, incluindo abrigo e uma área de descanso confortável.

3. Liberdade de dor, lesão ou doença: por prevenção ou diagnóstico e tratamento rápidos.

4. Liberdade de Expressar Comportamento Normal: fornecendo espaço suficiente, instalações adequadas e companhia da espécie do animal.

5. Liberdade de Medo e Angústia: ao garantir condições e tratamentos específicos que evitem o sofrimento mental. [Farm Animal Welfare Council]

Dizem seus defensores que esses preceitos devem ser usados não só para animais que vivem (sobrevivem) em locais de criação intensiva, mas em toda e qualquer fazenda, mercado, em matadouros ou em trânsito, por qualquer pessoa encarregada dos animais ou por manuseá-los e independentemente de sua espécie, em qualquer atividade e em qualquer lugar do mundo.

Desde então as práticas de bem-estar animal se tornaram objetivos a serem perseguidos a nível global com diretrizes internacionais irradiadas pela Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), o que certamente não é de todo reprovável, haja vista a (re)afirmação da observância dessas práticas avaliativas, na atualidade, para a saúde de animais domésticos, tutelados ou em estado de abandono, na elaboração de laudo técnico para comprovação do crime de maus-tratos, ou seja, são quesitos direcionados a todos os animais nas mais variadas circunstâncias e que também abrangem animais em estado de efetiva liberdade, ou de liberdade vigiada, como o caso de animais silvestres a serem reintroduzidos na natureza.

O raciocínio é bastante simples: se compreendêssemos que os animais sencientes possuem necessidades físicas e emocionais similares às nossas (porque nós e eles pertencemos ao reino animal), não precisaríamos que a ciência se empenhasse em nos fornecer “evidências” como essas. Ou alguém se imaginaria consultando As Cinco Liberdades para então compreender as necessidades vitais de outro ser humano?

No entanto, esse sistema não foi formulado para animais em estado real de liberdade – e esse é um dado muito importante – mas sim para a continuidade de práticas comerciais exploratórias que geram lucros, com um verniz de beneficência, especialmente para os chamados animais “de produção” e estendido aos demais animais terrestres quando estão sob controle humano.

Onde há subjugação e exploração de animais para servir a propósitos humanos, só pode haver bem-estar humano, e não bem-estar animal. Na verdade, o bem-estar é do animal humano.

Quando usamos nossa energia para oferecer pouco resultado aos animais, tornamos mais lerdo o movimento na direção da única coisa que nos deveria pôr em movimento: abolir todo o uso de animais para fins humanos, começando por abolir do consumo pessoal tudo o que implica em escravizar, machucar, torturar, atormentar e matar os animais, da comida ao lazer. [Acertos Abolicionistas A Vez dos Animais, de Sônia T. Felipe]

Profissionais que trabalham com o bem-estarismo gostam de afirmar que “bem-estar animal” é uma ciência que foi criada com o propósito de entender o estado físico, mental e comportamental dos animais conforme a natureza desses seres. Geralmente invocam o argumento da ciência com uma certa artimanha para tentar induzir leitores, espectadores ou ouvintes de que quem goza de um entendimento ou compreensão diferente ou mais avançada dos fatos (abolicionistas, por exemplo) não tem razão ou não tem embasamento teórico o suficiente para a defesa de suas ideias.

O que nunca mencionam é que as maiores atrocidades praticadas por humanos ao longo da história também foram e são feitas em nome da ciência. A “verdadeira” ciência importa, mas é dinâmica, evolutiva, de modo que para ser usada em benefício das pessoas, da sociedade e, no caso, dos animais, deve estar aliada à ética e às concepções e necessidades mais modernas de mundo e de justiça.

Até na hora de tutelar um animal para fins de “estima” humana, nossas ações devem se conjugar à ética e ao respeito à vida do outro ser. Se desejamos e temos condições materiais e psicológicas para o convívio com “animais de companhia” (quiçá também esse costume será um dia abolido quando todas as espécies de animais forem livres e estimadas) devemos fazê-lo da forma menos danosa ou prejudicial possível à vida deste outro ser, sendo a adoção um caminho mais saudável. Nenhum animal deve ser tratado como objeto, mercadoria.

E aqui sequer existe dificuldade a ser transposta, mas apenas um olhar mais cuidadoso do ponto de vista do animal que necessita de cuidados, da sua proteção e também da saúde pública: o resgate ou a adoção, ao invés da aquisição.

Como falar em atendimento ao bem-estar animal ou às Cinco Liberdades quando fêmeas estão confinadas, em maior ou menor espaço, para serem induzidas ou forçadas a reprodução? Se fossem humanas, todo o conforto ambiental possível não mudaria o nome desse ato vil e bárbaro chamado estupro.

Justificativas coniventes com a exploração animal que se fazem presentes nas narrativas que buscam regular o comércio de animais domésticos sob o pretexto de que não há outra maneira de proteção, sequer se prestam a garantir o bem-estar do animal não-humano. A libertação animal é mais do que possível, é desejável para o estabelecimento de uma relação mais saudável e ética do ser humano com os demais seres vivos e é neste compasso que precisamos avançar.

Algumas pessoas usam o argumento de que proibir determinada atividade exploratória como o comércio de animais, acarretaria na criação de um mercado paralelo, ilícito. Ora, a eventual e desejável proibição da venda de animais domésticos e silvestres, não impede que o Poder Público exerça o seu papel fiscalizatório e educativo, sendo recomendável que o faça por meio de políticas públicas eficazes junto a sociedade civil organizada.

Aliás, o comércio de animais silvestres é legalizado no Brasil e mesmo assim há o tráfico, que é a terceira maior atividade ilícita do mundo. Portanto, esse temor não parece uma justificativa válida para a defesa da regulamentação da venda de animais. Do ponto de vista do animal que sofre a objetificação, certamente ele preferiria a libertação dessa forma de violência, talvez nem sempre direta, mas intrínseca ante a exploração constante de sua sexualidade, do confinamento, da exposição a um ambiente geralmente insalubre ou inadequado para a sua natureza etc.

A crueldade e os maus-tratos aos animais já são condutas vedadas pela legislação brasileira e se houvesse a devida atuação do Estado na fiscalização quanto ao cumprimento das leis, das normas administrativas, bem como na formulação de políticas públicas eficientes, não haveria que se falar em eventual regulamentação. As normas jurídicas vigentes de proteção aos animais devem ser aplicadas, sendo a proibição da venda de animais em canis, pet shops, mercados, feiras e similares uma medida importante para a implementação dos direitos animais.

A constatação de que hoje não é possível prevenir situações de maus-tratos aos animais criados e reproduzidos para serem comercializados é um forte indicativo da ineficiência do Estado. Se o Estado é ineficiente porque não dispõe de recursos técnicos, financeiros ou humanos adequados para proteger a fauna doméstica e silvestre, como se pode garantir que, após uma suposta regulamentação, o Estado os terá? Ninguém garante. Regulamentar a venda de “pets” não protegerá esses animais.

Como ficará a situação dos animais explorados à espera de uma fiscalização que nunca acontece, ou se acontece, é tardia e ineficaz para a defesa animal? A regulamentação de uma atividade comercial que usa e abusa de animais, sobretudo de cães e gatos, não pode prevenir o sofrimento deles, portanto, não pode evitar os maus-tratos.

Quem defende (ou ama) os animais, luta para o reconhecimento de seus direitos fundamentais, adota-os, resgata-os de maus-tratos, protege-os, presta-lhes assistência, os reintroduz ao seu habitat natural (a exemplo dos silvestres, quando possível). Há inúmeras formas de respeitar os animais, inclusive ficando longe deles para não os importunar. Quem respeita o valor intrínseco de uma vida, trabalha e estuda formas alternativas ao bem-estar humano poupando os animais da objetificação e exploração.  

A venda de animais domésticos e silvestres já foi tema do Podcast Saber Animal (clique aqui) e especialmente no caso dos cães, além do deplorável confinamento das fêmeas para fins de procriação em uma autêntica exploração (escravidão) sexual com vistas ao comércio de seus filhotes, também devemos falar sobre os anseios humanos demasiadamente egocêntricos que interferem de modo negativo no bem-estar de outro ser vivo.

Por que insistir em uma preferência de escolha de determinada raça, senão para companhia servil ou ainda por puro senso estético? Por que desejar a companhia de um ser cujo temperamento possa ser pré-definido ao mesmo tempo em que dizemos “amar” esses animais? Ao escolher personalidade, cor, comprimento de pelagem, aparência, tamanho que agrade etc, ao consumir ou pagar pela companhia desta vida, a despeito da penúria de seus genitores, especialmente da fêmea tratada como uma máquina de produção, seus traumas físicos e psicológicos, do traumático nascimento de seu filhote, nada disso pode se aproximar de uma estima verdadeira a esses animais.

Nos dias atuais, torna-se cada vez mais inconcebível que consumidores aleguem inocência acerca desses fatos diante de tantas denúncias de maus-tratos em criadouros de animais vindo à tona nos canais de mídia.

Paralelamente ao movimento abolicionista animalista, onde ativistas lutam pelo fim do comércio de animais, bem como pela abolição de toda e qualquer outra prática exploratória, existem estudos em países estrangeiros que embasam a necessidade de proibição da criação de determinadas raças de cães e gatos, as raças braquicefálicas, havendo o entendimento de que esses animais sofrem sérios problemas de saúde devido a mutação genética feita pelo humano. A principal característica física dessas raças é o focinho curto ou “achatado” criadas mediante seleção artificial para agradar seres humanos que parecem nunca se bastar em suas predileções impensadas, inebriados pelo consumo dos “pets da moda”.

Interessante notar que esse debate reconhece, ainda que indiretamente, a validade de argumentos abolicionistas: a ciência descolada da ética para o atendimento às demandas antropocêntricas não tem como dar certo, causando dor e sofrimento aos animais não-humanos em questão.

Ante tais constatações acerca do mal-estar provocado em cães, gatos, coelhos e outras espécies animais, veterinários no Reino Unido pedem revisão dos padrões de raça para a “garantia do bem-estar animal”. A Associação Veterinária Britânica (British Veterinary Association) recomenda que animais de raças braquicefálicas não sejam reproduzidos fazendo um chamado urgente para os profissionais veterinários, os criadores e a sociedade.

Somente as discussões éticas que permeiam a defesa abolicionista animalista podem nos levar a debates mais profundos sobre determinadas práticas humanas que se conectam com o sofrimento dos animais. Esse caso sobre as raças braquicefálicas é paradigmático para mostrar às pessoas que não é possível regulamentar atividade comercial exploratória ao mesmo tempo em que se busca preservar o bem-estar, a saúde e a dignidade animal.

Há relatos de que alguns desses animais geneticamente manipulados precisam ser submetidos à traqueostomia para que possam respirar adequadamente em suas atividades cotidianas, outros tantos certamente vivem com extremo desconforto e sofrimento. Constantes problemas dermatológicos, dificuldades para se alimentarem, distúrbios respiratórios, distúrbios oculares, hipertermia, engasgos recorrentes, excesso de peso e dificuldade em dar à luz naturalmente, são alguns dos impactos negativos no bem-estar dos animais de raças braquicefálicas que são o pug, o buldogue francês, buldogue inglês, boxer, shi-tzu, dentre outros, assim como o gato persa.

Na Holanda há uma lei desde 2014 que proíbe a criação de algumas raças de braquicéfalos e somente neste ano de 2019 o governo colocará tal proibição em prática. No entanto, a proibição imediata da criação aplica-se somente a cães com um comprimento de focinho menor do que um terço do crânio (cães da raça pug, buldogue francês e buldogue inglês).

Ainda há falta de consciência e desinteresse da sociedade acerca da abolição da comercialização de animais, especialmente de cães e gatos, a nível mundial. No Brasil não seria diferente e por aqui, ativistas abolicionistas animalistas continuam com toda a força na luta contra a venda de animais, inclusive protestando na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre esse tema, instaurada em abril deste ano na ALESP (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo).

Atualmente, tramita na ALESP o Projeto de Lei nº 1.086/2019 que visa proibir a venda e comercialização de animais em espaços públicos, tais como praças, vias de circulação e feiras-livres, realizada por meio de comércio ambulante.

A luta abolicionista animalista tem muitas frentes e essas ocasiões oportunizam a cobrança da efetiva proteção dos animais junto ao parlamento e a conquista de mais visibilidade e conscientização de parlamentares e da sociedade para a causa abolicionista.

O fim da venda de animais em conjunto com campanhas públicas educativas se faz necessário até mesmo como uma maneira de tratamento e redução de casos de abandono e maus-tratos a animais, já que o sofrimento é intrínseco à atividade mercantil pois animais são seres sencientes e não mercadorias, além da inexistência de efetividade do Poder Público para fiscalização de inúmeros canis, criadouros, pet shops, mercados, feiras etc.

A Inglaterra, por exemplo, proibiu o comércio de animais em pet shop e impôs outras medidas restritivas. A proposta foi motivada pela história de Lucy, uma cadela da raça cavalier king Charles Spaniel que foi maltratada e forçada a procriar várias vezes ao ano, vindo a morrer após ser resgatada.

Já a Holanda, conforme mencionado, determinou o fim imediato da reprodução de algumas raças de cães braquicefálicas.

No estado americano da Califórnia, está em vigor desde janeiro deste ano uma lei (nº 485) proibindo a venda de cães, gatos e coelhos em petshops, a menos que sejam animais resgatados, como uma tentativa de reduzir as chamadas “fábricas de filhotes”.

Isto significa que aos poucos alguns países começam a abolir, não a regulamentar, essa atividade comercial em benefício dos animais “de estimação” e esse debate precisa avançar, sobretudo com o crescimento mundial do movimento abolicionista animalista vegano que carrega consigo o fundamental e urgente debate ético. Por aqui, não devemos caminhar em outro sentido que não o propósito da libertação dos animais de práticas exploratórias para a real defesa e proteção desses seres.