🕊️ “Cadeia para maus-tratos” não oferece proteção animal

Foto de ação pedindo cadeia para maus tratos em animais com cruzes e fotos coladas a elas em Brasília
Manifestação punitivista em frente ao Congresso Nacional / Foto de Sérgio Lima

A midiática campanha eleitoral que já virou até acessórios e itens da moda “cadeia para maus-tratos” não oferece proteção animal e agrava as injustiças sociais.

Como já apresentamos fatos históricos-documentais em anterior artigo aqui no Saber Animal, podemos afirmar que os primeiros movimentos da proteção animal no Brasil surgiram na defesa dos animais utilizados como tração, a fim de se evitar os maus-tratos e intenso sofrimento desses animais (geralmente cavalos e jumentos) no transporte de cargas e pessoas em um período que o Brasil imperial ainda resistia à abolição da escravatura dos povos africanos, em meio a uma intensa agitação política na sociedade brasileira advinda de um longo processo para abolir a escravidão humana.

Até hoje cavalos, jumentos e até mesmo bois são utilizados na tração de veículos e carroças em diversas regiões do país, além da exposição à outras violências, sendo os animais domesticados que estão mais sujeitos a algum tipo de retrocesso ou retirada da já escassa proteção jurídica que um dia se conquistou, haja vista o excesso de alterações legislativas, quando bastaria a aplicação prática de leis protetivas que vigoram há tempos, através da fiscalização e ampla conscientização da população, dentre outras medidas, quiçá um aperfeiçoamento desses direitos existentes desde o século passado (a exemplo do Decreto-Lei 24.645/34 que possui o status de lei federal) em momento mais oportuno.

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Diferentes iniciativas parlamentares, sem que haja um enfrentamento mais profundo das questões animalistas através de políticas públicas, por exemplo, não tem a capacidade de fazer cessar às violências a que os animais estão expostos, pois este cobertor é curto e quando se tenta cobrir um lado com instrumentos equivocados não gera eficácia protetiva, além de deixarem todo o restante descoberto, deixando assim a grande maioria dos animais totalmente desassistidos juridicamente.

O excesso de formalismos legais não protege os animais e aprofunda-se ainda mais as injustiças e desigualdades sociais, eis que essas leis rotuladas de proteção animal acabam causando mais retrocessos. Especialmente por se inserirem no ramo do direito penal, acabam por incentivar e promover uma nítida discriminação de pessoas e grupos humanos que estão em diferentes e antagônicas estruturas socioeconômicas, onde uns podem ser punidos e outros não, além da indevida (e inconstitucional) discriminação entre as espécies animais.

E aqui vale um parênteses: ainda que, hipoteticamente, a prisão funcionasse muito bem para proteger animais com a privação da liberdade de humanos que os maltratam – o que sabemos não ser verdade – eu não acredito na prisão por muitos motivos, a qual poderia ser reservada para casos excepcionalíssimos e com ressalvas. Um dos motivos é que a prisão não passa de uma forma de castigo, vingança, punição, um depósito de seres humanos excluídos e isso deveria bastar para entendermos que não transforma ou melhora ninguém – na realidade, piora – além de que a pena não previne violência alguma, mas atua somente depois que a vítima já sofreu ou já morreu, o que também acontece no caso de maus-tratos aos animais. E se eu não acredito na instituição da pena / prisão, eu não a defendo. Eu sei do potencial humano para expressar o amor, a compaixão, a misericórdia, o perdão e aposto na libertação do ser humano que pode se transformar quando quiser e acreditar em si mesmo. E quando este ser humano recebe uma chance de alguém que o enxerga com igualdade, que o reconhece em sua humanidade como um ser que também erra, pode ser esta a fresta necessária para o início de um processo de valorização, visibilidade, transformação. Então acredito que podemos – alguns podem e acredito que outros devem, pela função pública que exercem – ser essa ponte para auxiliar o despertar de uma nova compreensão sobre o respeito à vida dos animais, por exemplo, quando isto nos for permitido e possível, ao invés de contribuirmos com a manutenção do estado de inconsciência daqueles que cometem erros ou praticam condutas cruéis contra os animais. A consciência sobre o respeito à vida animal deve passar pela consciência de acolhimento e respeito à vida humana.

Falar de pena de prisão (ou ainda do aumento da pena de prisão) para determinadas condutas e determinadas pessoas é falar sobre toda a estrutura fundante do próprio Direito Penal. Como não me compete aqui lecionar sobre a teoria crítica do direito penal, podemos guardar a informação de que a ideologia do discurso jurídico-penal transforma fins particulares (outrora interesses da burguesia, que hoje se traduzem nos interesses de setores agropecuários e industriais que, por sua vez, são respaldados nas ciências provenientes das infindáveis pesquisas acadêmicas) em fins nacionais, universais, encobrindo o caráter eminentemente seletivo do direito, sobretudo o do Direito Penal (punir os pobres, os marginalizados, os socialmente excluídos) que desempenha um papel fundamental no controle e na manutenção de uma sociedade estratificada ou hierarquizada mediante a separação de seres humanos em categorias de “classes”, “raças” e outras discriminações.

Em outras palavras, o foco daqueles que pedem cadeia para maus-tratos está alinhado com os interesses de setores econômicos que maltratam animais a níveis absurdos porque, se essa prisão que tanto clamam for finalmente efetivada, só poderá recair sobre aqueles mesmos de sempre que há muito tem seus direitos humanos fundamentais violados pelo Poder Público, onde se inclui a classe política e também ativistas quando veiculam amplamente a imagem de supostos agressores, as suas casas, os seus endereços se tiverem acesso e por aí afora. Não precisamos violar direitos humanos para pedir respeito aos direitos animais.

Ainda que não haja essa clareza, quem ecoa o desejo de vingança e ódio já esqueceu ou não compreendeu a causa em defesa dos animais, pois estes dificilmente serão protegidos enquanto os seres humanos se odiarem e buscarem alguns culpados (geralmente os marginalizados, vulnerabilizados) para todo o mal e infortúnio a que estão expostos os animais na sociedade humana, esquecendo até mesmo dos milhares que são vitimados ou explorados por aqueles que a lei penal não alcança, porque estes não terão a sua liberdade física cerceada por esse sistema de injustiças e opressão: a face desnuda do Direito Penal.

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A pena de prisão aprofunda as injustiças e desigualdades sociais, desempenha funções estigmatizantes e contribui no ciclo das violências sociais, aumenta índices de reincidência, fomenta o crime organizado etc., portanto, em nada pode oferecer proteção aos animais quanto aos atos de violência humana. Teoricamente o Direito Penal não é (ou não deveria ser) o primeiro instrumento à disposição do Legislativo porque em nada pode melhorar a sociedade e tampouco o indivíduo.

Inúmeros estudos e comprovações empíricas já demonstraram que a pena de prisão não cumpre as supostas funções de prevenção e repressão do crime, além de que a conduta de maltratar animais já é criminalizada desde 1998 (Lei Federal 9.605/98), com um rigor maior do que a anterior previsão que vigorava em 1941 (o revogado artigo 64 da Lei de Contravenções Penais).

Também abordamos aqui no Saber Animal a mais que secular atenção (pelo menos de alguns) com a integridade dos animais na sociedade brasileira, o que com o passar do tempo e em contínuo movimento, ganharia, no século passado, um novo capítulo na história brasileira com o surgimento das preocupações mundiais ambientais, temas estes que acabaram contemplados no sistema jurídico interno por meio da vigente Constituição da República, a nossa Lei Maior a nível nacional, no Capítulo VI (Do Meio Ambiente) do Título VIII (Da Ordem Social).

A partir daí, pontuais decisões judiciais com repercussão nacional passaram a destacar algumas práticas humanas revestidas de crueldade para com os animais, com nítido foco na integridade corpórea e psicológica desses animais para além de preocupações eminentemente ambientais (farra do boi, rinha de galo…), especialmente em virtude da citada lei federal que criminaliza atos de abuso, crueldade e maus-tratos contra os animais já em vigor no final da década de 1990.

Ainda promove-se à exaustão a campanha eleitoral publicitária “cadeia para maus-tratos” como massa de manobra para manutenção de poder e de um discurso hegemônico (como se todos que se importam com os animais pensassem dessa mesma forma), mesmo após terem conquistado recentemente uma inusitada alteração legislativa (lei federal 14.064/2020, também conhecida como Lei Sansão) na lei federal 9.605/98 que elevou a pena em abstrato do crime de maus-tratos (pena de reclusão de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda) de cães e gatos (apenas aqueles vistos como “pets”), cujos casos são criteriosamente selecionados para as telas midiáticas das famosas, ou não tão famosas, personalidades.

Aliás, a “pena de proibição da guarda” (outra impropriedade jurídica na seara penal) era uma consequência desde 1998 (a perda da guarda do animal vítima de crime) a partir da sanção da conhecida lei de crimes ambientais (9.605/98), na medida em que, uma vez apreendidos os animais vitimados, serão libertados em seu habitat ou entregues às instituições conforme o texto da lei vigente. Mais uma medida sensacionalista, mesmo porque a pessoa pode adotar ou adquirir outro animal.

Apesar de toda a problemática acerca das questões penais que arrisquei comentar muito superficialmente mais acima, pois é um assunto complexo e profundo já tratado seriamente por especialistas, observamos que até mesmo os animais silvestres, que também tocam a temática ambientalista e outras graves questões advindas do tráfico, foram preteridos pelo governo Bolsonaro por conta de mais essa lei tipicamente populista e um tanto ilusória (ardilosa), não fosse os retrocessos que são bem concretos e acabam por refletir em todo o sistema jurídico.

Cães e gatos utilizados em pesquisas, em testes, no “ensino”, continuam não sendo contemplados por mais essa alteração legislativa, haja vista que os rigores da lei nunca são criados (e aqui não seria diferente) para se voltarem contra à comunidade acadêmica, científica, industrial ou empresarial, cujos integrantes sequer são taxados de criminosos porque os maus-tratos que praticam são classificados como lícitos (não proibidos pelo Estado), estando completamente resguardados por toda essa sistêmica estruturação jurídica e estatal, isto é, tanto em âmbito parlamentar, quanto administrativo (incentivo dos governos etc) e reafirmada pela via judicial.

Esta parcela social que move as grandes engrenagens da exploração animal (e com isto praticam incontáveis atos de maus-tratos e crueldade contra os animais) acaba mais uma vez encoberta pelo falacioso discurso midiático das leis penais mais rigorosas que aparecem como “solução milagrosa para o fim dos maus-tratos”, quando na realidade aprofunda mais e mais a desproteção e violação do direito fundamental de todos os animais à não crueldade. Logo, não se trata de “mais uma vitória dos animais” porque em matéria penal não há ganhadores e esse espetáculo já se sabe o fim da história.

A referida alteração legislativa (artigo 32, § 1º-A da lei 9.605/98) é desprovida de lógica factual e jurídica, estabelecendo ainda uma descabida hierarquização entre espécies de animais, coisa que a própria Constituição Federal não faz, e até mesmo uma contrariedade ou incongruência quando comparamos com alguns direitos humanos (veja estes dois exemplos: o crime de maus-tratos contra crianças ou adolescentes recebe pena de detenção de seis meses a dois anos; já o Código Penal estabelece pena de detenção de dois meses a um ano, ou multa, para quem comete crime de maus-tratos contra pessoa sob sua autoridade, guarda, vigilância, tratamento ou custódia) enquanto que maltratar cão ou gato (alguns) a pena é de reclusão de dois a cinco anos.

O recado dado é que a vida de cães e gatos (exceto aqueles milhares maltratados, feridos, mutilados e abusados pelos setores econômicos e acadêmico, volto a frisar), geralmente situados em zonas mais periféricas das cidades, merecem agora um maior valor perante o Estado do que a vida de crianças humanas, mulheres gestantes, adolescentes, doentes custodiados em hospitais etc., o que certamente reflete mais uma face das políticas genocidas do atual governo federal.

Logo mais, legisladores dirão que então é preciso aumentar a pena desses crimes cometidos contra as pessoas, em um gesto previsível e igualmente populista, demagogo, porque incide nas mesmas falsas promessas de contenção da alta criminalidade e violência etc. e etc. Vemos que, na prática penal, não é o crime em si que importa, mas quem é, ou quem são, os autores do delito, como o delito de maus-tratos, por exemplo.

Neste contexto, bradar “cadeia para maus-tratos” é escamotear o massacre que poderosos setores econômicos, industriais, empresariais e acadêmicos promovem, com amplo apoio e permissão do Estado, contra cães, gatos e demais animais das mais variadas espécies, ao mesmo tempo em que se faz a escolha de perpetuar e fortalecer toda essa estrutura estatal com uma falsa preocupação com o bem-estar animal, incutindo na população uma ilusória imagem de que, com algumas prisões, os animais estarão protegidos, alimentando desigualdades, discriminações (humanas e animais) e injustiças sociais por meio do seletivo Direito Penal que, como a serpente, só pode picar os descalços.