🙈 Da série projetos de leis capengas; passando a régua no tema

Frase de ordem projetada nas torres do Congresso Nacional em suposta defesa dos animais.
Animal (não) é coisa. Qual é o recado, afinal? A frase projetada nas torres do Congresso foi uma ação para conscientização ou manipulação? (Foto: Roque de Sá - Agência Senado)

Atendendo a pedidos de ativistas e protetoras dos animais, o presente texto tem por objetivo abordar aspectos jurídicos dos projetos de leis de nºs 134/2018 e 1.095/2019 em trâmite no Congresso Nacional, ambos originados na Câmara dos Deputados, sem pretensão de adentrar nos detalhes de sua tramitação e todas as possíveis alterações.

Tomando por base a redação principal de cada projeto, cumpre esclarecer que, se aprovados, nem um nem outro surtirá o efeito almejado por grande parte dos defensores de animais: prisão dos agressores como forma de proteção aos animais. Primeiro porque a pena de prisão não se presta a evitar ou reparar a violência. Segundo, porque a proteção legal dos animais faz parte de um mesmo sistema jurídico, de modo que toda lei protetiva atual e futura pode apresentar reflexos nesse sistema e também ser influenciada por ele. Por exemplo, toda lei penal (tal qual a lei federal nº 9.605/98) segue princípios e normas de direito penal e processual penal, dentre outros, independentemente de seu mérito ou conteúdo central, além de melhorar, piorar ou sequer abalar o ordenamento jurídico vigente no caso de uma nova lei.

Saiba mais: MANIFESTO CONTRA PL FEDERAL QUE DESTRÓI PROTEÇÃO AOS ANIMAIS É LANÇADO, por Vanice Cestari

Vivemos em um país com excesso de leis e muitas vezes esse excesso é desastroso, especialmente quando surgem as ondas populistas (tanto de direita quanto de esquerda), bastante comuns em governos antidemocráticos ou democráticos pero no mucho. A atividade legiferante ou legislativa no Brasil é absurdamente intensa (diferentemente das outras atividades parlamentares, como a de fiscalização e controle do Executivo no tocante ao bom uso dos recursos públicos, aplicação das leis etc.).

Fato é que somente a promulgação e sanção de leis não se prestam a melhorar o mundo, nem a salvar os animais de situações violentas (o mesmo acontece com os humanos). Um papel a mais produzido pelo Legislativo com a chancela do Executivo não fará milagres mesmo porque os Direitos Animais ainda não são propriamente reconhecidos e garantidos pelo Estado e sociedade, mas por um pequeno grupo social, diferentemente dos Direitos Humanos. Lentamente estamos avançando e espera-se que o avanço real continue, não fosse tantos projetos de leis retrógrados e leis especistas / bem-estaristas.

Em regra, a lei penal não incide na crueldade mais perversa, invisível e estrutural. Nesses casos a lei é letra morta ou natimorta e isso se evidencia muito mais quando pensamos na amplitude da exploração animal. O respeito aos direitos animais por vezes é menosprezado quando se busca tão somente a punição de alguns, já que não se pode punir todos. De outro lado, a defesa animal ainda é tema que não desperta lá muito interesse ou comoção social e lamentavelmente a proteção legal desses seres não humanos pode piorar com um sistema político fraco e ineficiente que, volta e meia movimenta-se, não para que haja avanços para os animais, mas para garantir que tudo permaneça como está.

PLC 134/2018

Fazendo uma breve análise estritamente jurídica dos PL´s e seguindo a ordem de apresentação, começo pelo mais antigo que na realidade foi proposto em 2012 (PL 3.141/2012) com uma redação mais “incompleta” do que a redação final que seguiu para o Senado como PLC 134/2018. Comentarei esta última versão que altera o artigo 32 da Lei nº 9.605/1998, “para agravar a pena pela prática de ato de abuso, consistente em maus-tratos ou mutilação de animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos, e instituir como causa de aumento de pena do crime de maus-tratos aos animais a prática de atos de zoofilia”.

Mexer nos artigos de lei federal que dispõe sobre a prática de crimes contra os animais é bastante temerário. O problema já começa daí. Inicialmente já se verifica uma redação totalmente equivocada e imprecisa em prejuízo da defesa animal, pois comparando-se com a atual redação da lei em questão que se pretende alterar, esta é mais benéfica para a proteção dos animais na medida em que descreve quatro verbos, os quais podem incidir o agente infrator, isto é, quatro condutas diversas que não se confundem entre si “abusar, maltratar, ferir, mutilar”.

Além do PL tentar definir o ato de abuso de forma atécnica ou inapta, confunde-o com os outros verbos da norma penal (núcleos do tipo penal). Ao proceder assim, salvo melhor juízo, o PL esvazia o sentido, a força da expressão “maus-tratos” restringindo o seu alcance e ainda acaba por excluir o verbo “ferir”, o que fatalmente prejudicará e muito a defesa dos animais.

Provocar ferimentos é, sem dúvida, uma das formas mais graves de violência contra animais, notadamente quando são realizados de forma dolosa, isto é, intencional, sendo juridicamente relevante o verbo “ferir”, motivo pelo qual foi expresso pelo legislador de 1998, haja vista a lei não conter palavras ou expressões inúteis, oferecendo a lei atual maior proteção aos animais por mera dedução lógica (além da acepção jurídica do termo), sentido diametralmente oposto por essa nova proposição legislativa.

Outra inadequação é a proposta de aumento de pena para quem abusar de animais, conforme nova redação do PL, com reclusão de um a quatro anos e multa (atualmente, a pena do artigo 32 da lei federal nº 9.605/98 é de detenção de três meses a um ano e multa). Penalmente, pouco ou nenhum reflexo terá esse dispositivo se vier à aprovação, pois conforme disse, o sistema jurídico (incluindo questões de política criminal) ainda pode impedir que eventual autor, coautor ou partícipe do crime previsto no artigo 32 seja privado de sua liberdade, punição esta que é anseio de muitos na nossa sociedade, mas seguramente não de todos, haja vista estar mais do que socialmente comprovado que o sistema penal é completamente seletivo e incapaz de resolver ou mesmo colaborar com a diminuição das mazelas sociais, tampouco é capaz de prevenir ou reparar a atroz violência praticada contra os animais não humanos. Empresários pecuaristas, proprietários de grandes frigoríficos, professores que praticam pesquisas nos corpos de animais vivos e vivissecção, proprietário de uma indústria de peles qualquer… para estes há incentivos e mais incentivos, bem longe de qualquer tipo de reprimenda ou penalidade por se servirem da exploração animal.

Não obstante a seletividade penal, isto é, o Estado selecionando com bastante critério quem será perseguido e punido, o PLC 134/2018 não alterará o cenário atual para aprimorar a proteção animal.

Do ponto de vista prático, quem maltratar animais (como citado, em algumas circunstâncias selecionadas) provavelmente continuará sem sofrer privação de sua liberdade e sequer enfrentará um processo penal. É que tanto a redação atual na lei 9.605/98 quanto essa prevista no PL podem ser substituídas por penas restritivas de direitos, seja devido ao máximo cominado não ultrapassar quatro anos, seja por outro motivo legal que foge ao controle dos mais inconformados punitivistas. Alguma surpresa?

De todo modo, o possível encarceramento de alguns socialmente “indesejáveis” acaba legitimando a exploração animal mais avassaladora e estrutural porque assim garante-se a permanência do manto da invisibilidade social dessas práticas, isso sim é garantia de impunidade.

Além disso, a previsão de pena em uma lei (ou projeto de lei) criminal é feita de modo abstrato, servindo apenas como um parâmetro ao magistrado em uma futura aplicação penal dentro de um processo concreto, de modo que, por razões de política criminal, a pena base é fixada sempre no mínimo legal, sobre a qual incidem eventuais circunstâncias atenuantes e agravantes, seguidas de causas de diminuição e de aumento de pena. Em outras palavras, a possibilidade de condenação de alguém com base no máximo da pena abstratamente cominada é praticamente inexistente, com alguma chance de “êxito” punitivo se fossem muitos os animais vitimados.

Outra implicância do sistema jurídico que incide nesse PL é a suspensão condicional do processo por se tratar de crime com a pena mínima cominada de um ano, abrindo a possibilidade de extinção da punibilidade do agente sem que haja discussão acerca de sua eventual responsabilidade no delito.

Nota-se a complexidade de um ou dois artigos escritos em um único projeto de lei, que não podem ser lidos isoladamente como se fossem soltos de todo um regramento jurídico caso venham à aprovação. Aliás, na área jurídica não basta saber ler as linhas escritas em um único documento legal, mas precisa conhecer todo o arsenal, precisa aprender a ler as linhas não escritas, ler as entrelinhas e compreender para além das linhas.

Especialistas formados em coisa nenhuma ou coisa outra que o Direito, não poupam nas fake news. Por essas e outras, apresentar um projeto de lei sem critério e sem o mínimo rigor técnico não pode colaborar no avanço de direito algum, isso quando não piora a situação. Além disso, a abolição é a única forma de avanço para os animais, não a punição de alguns.

Saiba mais: QUEREMOS LEIS ABOLICIONISTAS, por Vanice Cestari

Outro ponto inócuo do PLC 134/2018 é a proposta de alteração do regime de cumprimento da pena atualmente previsto na lei vigente (regime de detenção) para o regime de reclusão, pois em regra continua descartada a hipótese de pena privativa de liberdade (fato anterior a qualquer cumprimento de pena) portanto, esse PL em nada mudará a situação atual como, há anos, vem sendo alardeado no mote eleitoreiro “cadeia para maus-tratos”. E vale lembrar que já é previsto na lei vigente (lei federal 9.605/98) o aumento de pena no caso de morte do animal.

E não para por aí. Zoofilia não é a palavra acertada para mencionar a violação sexual / estupro contra animais. Especialmente em ano de eleição, falar dessa violência terrível nas redes sociais costuma render muita visibilidade, mas infelizmente não para as vítimas não humanas violentadas, não é mesmo?

Antes da punição, deve vir a educação! Educação é dever do Estado! E também é dever de todo ativista educar-se para uso adequado dos termos a fim de abordar corretamente o assunto perante a sociedade. O especismo se fortaleceu com a ignorância humana. Vamos repetir os mesmos erros? Não. Propagar desinformação ou deseducação não faz o menor sentido. Zooerastia é psicopatologia relacionada ao ataque sexual contra animais, embora nem todo ataque possa ser considerado uma psicopatologia.

Portanto, com pesquisa acerca do surgimento das medidas de proteção ao animais na sociedade ou, para o cidadão curioso, uma simples consulta à um bom dicionário, podemos verificar que o termo original de zoofilia significa “amizade pelos animais; amor protetivo pelos animais”. A meu ver, essa confusão um tanto leviana, hoje repetida por toda a gente nas mídias sociais e junto aos costumeiros discursos de ódio, é mais uma que pode ser creditada ao especismo! Uma avaliação mais crítica também pode nos sugerir que a distorção do termo se deu em algum momento na história por aqueles que desprezavam ou ignoravam o afeto aos animais, talvez para ridicularizar quem de fato se importava com eles. E claro, colou!

O termo ZOOPHILO (zoófilo) era usado no século XIX para designar protetores, amigos dos animais; as primeiras associações civis em defesa dos animais, na Europa e aqui no Brasil, chamavam-se sociedades zoophilas, isto é, sociedades protetoras ou amigas dos animais.

Voltando ao ponto do PLC 134/2018, a palavra “zoofilia” é apontada de modo indevido, quando deveria citar “zooerastia” ou até mesmo estupro de vulnerável, por que não?! Atualmente, o ataque sexual contra animais já é criminalizado no artigo 32 da lei 9.605/98 e o aludido PL condiciona a hipótese de aumento de pena não pela prática do ato, mas “se forem constatados atos”. Aliás, uma vez excluído o verbo “ferir” da norma penal nesse PL, sequer pode-se falar em aplicabilidade prática, tampouco maior proteção ou rigor na apuração dessa violência.

PLS 470/2018

Antes de comentar o outro projeto de lei oriundo da Câmara dos Deputados, a pedido, vale registrar outra tentativa de alteração da lei penal especial (9.605/98), dessa vez de iniciativa do Senado Federal, para “elevar a pena de maus-tratos e estabelecer punição financeira para estabelecimentos comerciais que concorrerem para esta prática” com pena de detenção de um a três anos e multa (posteriormente recebeu emenda prevendo pena de um a quatro anos e multa e excepcionando “os esportes equestres e a vaquejada” da incidência do crime de maus-tratos). No tocante a pena, aplica-se o mesmo tratamento jurídico do acima exposto.

Outro ponto que merece destaque é a previsão de pena de multa aos estabelecimentos comerciais que concorrerem para a prática de maus-tratos, direta ou indiretamente. Embora a intenção inicial parecia boa, fato é que a atual lei federal nº 9.605/98 já prevê tal responsabilização na medida da culpabilidade de cada um e o faz de forma muito mais completa e abrangente porque pune “o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la”.

Esse PL acaba restringindo o alcance da lei vigente de modo menos favorável (retrocedendo) na proteção dos animais e, curiosamente, cita apenas estabelecimentos comerciais, deixando de fora os estabelecimentos industriais, os estabelecimentos de ensino, de pesquisa, enfim, todos aqueles onde são praticados diuturnamente maus-tratos e crueldade contra animais. E, repito, não só: uma das emendas do PL 470/2018 libera as práticas ditas esportivas e/ou culturais que usam e abusam de equinos e bovinos descriminalizando essas atividades, isto é, retirando esses animais da proteção legal do art. 32 da lei federal nº 9.605/98.

PLC 1.095/2019

Voltando para a Câmara dos Deputados, nos damos conta que, originalmente, o PLC 1.095/2019 era uma recauchutagem mal ajambrada do PLS 470/2018 supracitado, contudo, também sem propiciar, imediatamente, o que mais uma vez era anunciado como “medida protetiva em defesa animal” por todos os PL´s: “cadeia para maus-tratos”. Mais uma vez permanecia afastada a certeza de pena privativa de liberdade pelos motivos ora elencados quando da breve análise do PLC 134/2018, seja devido ao patamar mínimo, seja devido ao patamar máximo da pena cominada abstratamente, seja por talvez sequer chegar à fase seguinte de eventual condenação à pena de prisão (regime de reclusão ou detenção).

Comparando-se esse projeto de lei (PLC 1.095/2019) com aquele de redação muito parecida originado no Senado (PLS 470/2018), o iniciado na Câmara fez uma mudança que nada tinha a ver com a defesa animal, mas sim com a defesa do bolso de possíveis infratores. É que o PL do Senado, em sua redação original, previa multa para os estabelecimentos comerciais “no valor de um a mil salários mínimos, a serem aplicados em entidades de recuperação, reabilitação e assistência de animais”. Já o PL da Câmara, em sua redação original, dispunha sobre multa de estabelecimentos comerciais ou rurais no valor de um a quarenta salários mínimos e sem destinação para as entidades de proteção animal, dentre outras diferenças administrativas.

Contudo, foi apresentada uma mudança completa no texto do PL em sentido diverso do originalmente proposto, também alterando a atual lei federal 9.605/98. Trata-se de um substitutivo que “aumenta as penas cominadas ao crime de maus-tratos aos animais quando se tratar de cão ou gato”, passando a ser prevista uma pena de reclusão de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda, o que sem dúvida nenhuma acaba gerando uma aberração jurídica por tratar de modo diferenciado, discriminatório e completamente atécnico a proteção legal que hoje é indistintamente prevista para todos os animais pela Constituição Federal.

Ainda assim, engana-se quem aposta cegamente na pena privativa de liberdade no crime de “maus-tratos a cão ou gato” em virtude desse novo patamar proposto de dois a cinco anos de reclusão pois, conforme disse, a pena base é sempre fixada no mínimo legal em todo e qualquer crime, faça ele vítimas humanas ou não humanas. Além disso, as penas restritivas de direitos em substituição as privativas de liberdade, por exemplo, continuam possíveis no julgamento de um caso concreto. Pode-se tentar fugir de um ou outro instituto de direito penal, mas não de todos, mesmo porque a regra constitucional é a liberdade e o estabelecimento de mecanismos alternativos à prisão, bem diferente do desejado pelas mentes reacionárias.

Em caso de aprovação desse texto substitutivo e ainda que haja, finalmente, possibilidade de “cadeia para maus-tratos a cão ou gato”, no singular mesmo como propõe o PL, a tão sonhada prisão continuará sem incidir naquelas mais perturbadoras e contumazes práticas de uso e guarda de cães e gatos (no plural) nas pesquisas “científicas”, no ensino e na vivissecção que, aliás, pouco a pouco estão sendo legitimadas por projetos de leis desastrosos, inconstitucionais e populistas. E pior, com o amplo apoio daqueles e daquelas que se dizem protetores(as) de “animais!” Pobres animais!