📃 Direitos Animais no Brasil: uma breve análise histórica e legal

Paulista atravessando o rio, de Charles Landseer, 1825-1826 / Brasiliana-Iconográfica
Paulista atravessando o rio, de Charles Landseer, 1825-1826 / Brasiliana-Iconográfica

Há pelo menos dois anos antes da abolição da escravatura no Brasil, acontecimentos indicam que parte da sociedade brasileira (notadamente a sociedade paulista) também se insurgia contra a brutalidade que presenciava nas vias públicas da cidade dirigida contra animais usados para montaria, tração e transporte de cargas, carruagens, carroças e veículos similares, época em que esse tipo de escravidão estava muito mais presente no cotidiano da metrópole que começava a se desenvolver, haja vista o uso que a humanidade atribuíra a determinadas espécies de animais, especialmente as mulas, os burros, jumentos e cavalos.

Podemos dizer que maltratar animais, talvez nunca tenha sido uma prática aceita por todos os seres humanos desde os tempos mais remotos e, naturalmente, tais atos também não eram aceitos por parte destacada daquela sociedade que marcou o final do período imperial no Brasil, possivelmente contagiada pelo clamor abolicionista com relação aos seres humanos escravizados, ocasião em que também foram dados os primeiros passos na formação de um movimento social que buscava a prevenção de atos de abuso, maus-tratos e crueldade praticados contra os animais, nos primórdios do que, séculos depois, se tornaria o movimento em defesa dos direitos animais no Brasil.

Essa iniciativa em busca da proteção dos animais e da garantia para defesa de seus direitos se torna evidente quando, no ano de 1886, foi incorporada no Código de Posturas do Município de São Paulo a proibição de maltratar algumas espécies de animais, se tornando a primeira lei protetiva que se tem notícia no país, à semelhança do que há algumas décadas já vinha ocorrendo em países estrangeiros.

Assim como não foi a mera aposição de assinatura da princesa Isabel que libertou, em 1888, o povo africano, mas sim a fundamental articulação do movimento abolicionista e a insurgência dessas pessoas escravizadas, também não foi o legislador de 1886, por mera vontade ou inspiração própria, a incluir dispositivo legal em defesa dos animais na legislação municipal de São Paulo, promulgada com o intuito de modernizar a cidade para padronizá-la e homogeneizá-la. Decerto o clamor da população paulista defensora dos animais foi atendido.

Portanto, o que hodiernamente chamamos de senciência animal com ares de “novidade” em uma possível tentativa de convencimento para que nossos interlocutores incluam, definitivamente, todos os animais no seu campo moral, vemos que essa compreensão humana sobre o dever de respeito aos animais foi levada em consideração pelo legislador brasileiro – ao menos desde as últimas décadas do século XIX, período que remonta às origens do movimento brasileiro de proteção animal – em oportuno acolhimento da demanda de parte da sociedade paulista que buscava proteger legalmente os animais contra atos de crueldade humana.

Nesse compasso, logo após o início do período Republicano (República Velha) e poucos meses após a instalação da primeira associação civil protetora dos animais em maio de 1895 – entidade que auxiliava o Poder Público na execução e eficácia das leis protetivas existentes e na formulação de novas leis, decretos e medidas complementares – foi promulgada a lei de nº 183 de 9 de outubro de 1895 (também no município de São Paulo) que passou a proibir abusos, maus-tratos e atos de crueldade, assim entendidos como aqueles inutilmente praticados contra todos os animais (isto é, contra os animais utilizados nas mais diversas práticas e atividades humanas).

A legislação de 1895 já contemplava todos os animais (e não somente aquelas espécies escravizadas para transporte de pessoas humanas e mercadorias), dispondo sobre condutas caracterizadoras de maus-tratos e mais alguns dispositivos naquilo que se entendia como protetivos (e, de fato, o eram, considerado o contexto histórico daquele período), cujos deveres de observância competiam aos seus proprietários, guardiões ou a quem os animais fossem confiados.

Em outras palavras, os animais já eram sujeitos de direitos eis que titulares de direitos mínimos, cujos deveres de observância competiam aos legalmente responsáveis, tal qual às sociedades protetoras dos animais.

A legislação paulistana também proibiu a utilização de animais sem anestésicos nas experiências e na vivissecção a que fossem submetidos no interesse da ciência, incentivando-se a utilização de meios apropriados para minorar tanto quanto possível os sofrimentos oriundos dessas práticas.

Outro exemplo de medida considerada protetiva estava na disposição sobre o fim da morte cruel por envenenamento de cães abandonados e sem dono, procedimento que até então era utilizado no extermínio desses animais após serem recolhidos das vias públicas (a matança era autorizada desde que a morte fosse instantânea e indolor). A lei municipal de 1895 também regulou o chamado abate humanitário dos animais para consumo ao prever a utilização de processos mais aperfeiçoados que pudessem garantir a morte instantânea com prévia insensibilização para sangria, sendo expressamente proibida a esfola ou depenação enquanto vivos, bem como os processos tendentes ao aumento do peso ou da gordura do animal. No abate de animais para alimentação, a lei também dispunha sobre a obrigatoriedade de se evitar tudo quanto pudesse impressionar e aterrorizar os animais ou ocasionar-lhes inúteis e prolongados sofrimentos, sendo reconhecida pela lei, portanto, a existência de sofrimento físico e psíquico nos animais, os quais se manifestavam de forma consciente, ou seja, o reconhecimento da chamada senciência animal (que veio a ser cientificamente declarada neste século XXI através da Declaração de Cambridge de 2012 que abarca inúmeras espécies de animais).

Em 1895 também restou legalmente proibido, na capital paulista, efetuar qualquer tipo de mutilação nos animais, a exemplo do corte de orelhas e de caudas, prática que nos séculos seguintes se transformaria em um dos processos mais cruéis que são inerentes à atividade pecuária pós-revolução industrial. Dentre outros dispositivos, a mesma legislação também proibiu as lutas, jogos ou diversões públicas de animais açulados, instigados para atacarem uns aos outros (o que atualmente é conhecido como “rinha”), ainda que em locais privados, já sendo considerado abuso ou maus-tratos no final do século XIX. Também se coibiu o abandono de animais extenuados, doentes, feridos, aleijados ou mutilados, vez que já não era conduta socialmente aceitável. A referida lei foi revogada em 2005 por lei, após dois séculos em vigor (as leis não se revogam por seu eventual e, às vezes costumeiro, desuso).

Portanto, é inegável tais conquistas do movimento de proteção animal brasileiro a partir de São Paulo, embora se evidencie uma abordagem legislativa que hoje se entenda por “bem-estarista”, o que é bem compreensível para aquela época, daí porque passados dois séculos está mais do que evidenciado, por essas e outras razões mais contemporâneas (prementes questões éticas, ambientais e sanitárias) que a narrativa do suposto bem-estar animal, isto é, a perpetuação da instrumentalização ou uso de animais, desde que regulamentado em lei, vai perdendo sustentação no atual século XXI, apesar do cenário político e socioeconômico, especialmente o brasileiro. Nós, destas atuais gerações, precisamos começar a assumir o compromisso com a defesa da natureza, onde se inclui os animais, para a garantia da sobrevivência digna neste planeta cada vez mais vilipendiado, em respeito à todas as formas de vida das presentes e futuras gerações.

Saiba mais: O ASSASSINATO E A EXPLORAÇÃO DE ANIMAIS NOS COLOCARÁ DIANTE DE NOVAS PANDEMIAS, por Vanice Cestari.

Como indivíduos e como sociedade organizada, devemos caminhar com firmeza e na medida do factível, para a abolição de práticas sociais, culturais e econômicas que exploram, maltratam ou escravizam animais. Depois dessa inegável trajetória histórica na proteção dos animais e a mais absoluta prioridade ambiental que emerge nesse atual momento planetário, carece de fundamento e de sentido a luta para a criação de mais legislações de conteúdo bem-estarista na atualidade. O momento da vez é o da liberdade, da verdade, da abolição de crueldade e maus-tratos animais e ambientais. O bem-estarismo teve a sua época jurídica e legislativa, deve ser honrado e respeitado, mas é no passado histórico que deve ser lembrado. Agora, para quem está sintonizado com as necessidades individuais e coletivas que emergem neste século XXI, só pode ser aceitável o abolicionismo, a libertação dos animais e da natureza, inclusive e especialmente a partir das casas legislativas. Retomarei esse ponto mais adiante.

Em âmbito nacional, algumas espécies de animais também conseguiram proteção legal a partir do século XX. Foi por meio do Decreto de nº 14.529 de 9 de dezembro de 1920 que ficou proibida a concessão de licenças em casas de diversões e espetáculos públicos para corridas de touros, novilhos, brigas de galos, canários e outras práticas do gênero que causassem sofrimento aos animais.

Posteriormente, o Decreto Federal de nº 24.645 de 10 de julho de 1934 (também conhecido como Código de Defesa dos Animais), ainda parcialmente vigente em todo o país com o mesmo status jurídico de lei federal, também trouxe dispositivos protetivos de vanguarda, em um lento, porém incessante, processo histórico de um movimento que vinha se desenvolvendo desde o final do século XIX. Em seu artigo 1º, o Decreto de 1934 dispõe que “todos os animais existentes no país são tutelados do Estado”. Outro dispositivo de suma importância, ainda em vigor, foi a garantia de acesso ao Poder Judiciário para a salvaguarda dos (direitos) animais, conforme o artigo 2º, § 3º, ora transcrito: “os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais”.

Evidente, portanto, a condição jurídica dos animais como sujeitos de direitos, os quais também passaram a possuir a capacidade processual, isto é, a possibilidade de cada indivíduo animal (pessoa não humana) “agir” em juízo por meio de seus representantes.

Esse diploma legal também tratou de classificar e reprovar, exemplificativamente, condutas de maus-tratos a animais, dispondo assim sobre o direito animal de não sofrê-los, tal qual a lei paulistana de 1895, porém o fazendo de forma um pouco mais abrangente.

Outra conquista a nível federal ocorreu na década de 1940 por meio da lei de contravenções penais (Decreto-Lei nº 3.688/41) que passou a prever pena de prisão simples ou multa para quem tratasse animal com crueldade ou o submetesse a trabalho excessivo. O dispositivo foi revogado em 1998 (dez anos após a Constituição da República) pela lei federal de nº 9.605 que passou a criminalizar as condutas de abusar, maltratar, ferir ou mutilar animais prevendo pena de detenção e multa.

E ainda foi proibida a pesca ou qualquer forma de molestamento intencional de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras por meio da lei federal nº 7.643/1987.

Não resta dúvida de que a Constituinte de 1988 elevou a proteção dos animais no sistema jurídico brasileiro de modo inédito e, ao que parece, único no mundo, ao tutelar (proteger) constitucionalmente os animais, dispondo sobre seus direitos fundamentais em uma concepção biocêntrica, contemplando o direito ambiental, os direitos animais e humanos. E assim, vitórias paradigmáticas foram obtidas no Poder Judiciário nos últimos trinta anos.

LEGISLAÇÃO “MAIS AVANÇADA”, “VITÓRIA HISTÓRICA DOS ANIMAIS”: SERÁ QUE ESSE DISCURSO BEM-ESTARISTA CONTEMPORÂNEO REALMENTE TEM FUNDAMENTO?

Atenção senhores(as) legisladores(as) e candidatos(as) à mandato parlamentar, todos que alegam ser representantes da causa animal; atenção respectivos(as) senhores(as) assessores(as) parlamentares: se não for para ser abolicionista, não precisamos de mais nenhuma lei, de nenhuma promessa de “salvação” para os animais. Nem uma. Nenhuma. Melhor dizendo, os animais não precisam de nova(s) lei(s) que os instrumentalizam mais um pouco. Mais e mais. Estamos entendidos? Façam-nos o favor de não criarem mais uma forma de exploração: a miséria dos animais (e até mesmo o sentimento compassivo de seus defensores) como palanque eleitoral. Defender direitos animais é defender a ética. Os animais não precisam da elaboração de leis (projetos de leis) inúteis cuja real finalidade é perpetuar a utilização de suas vidas, de seus corpos e mentes. Basta de engodo legislativo travestido de progresso em suposta defesa dos animais. Enquanto identificados como representantes da causa animal ou detentores de mandato eleitoral, poderiam ser mais úteis e diligentes no sentido de cumprir e fazer cumprir a vasta legislação protetiva em vigor que realmente possa beneficiar os animais?

Vamos deixar a falta de vontade para compreender os fundamentos éticos que pautam o movimento abolicionista em defesa dos animais e da natureza. A previsão de direitos para uma ou duas espécies sequer pode ser considerada um avanço, seja por infringir a Constituição Federal que assegura a missão do Poder Público em proteger todos os animais sem qualquer distinção, seja por ignorar ou desconsiderar o contexto histórico-evolutivo brasileiro das legislações nos séculos anteriores, conforme citado.

Por outro lado, o bem-estarismo já não cabe mais ser considerado uma defesa de direitos animais propriamente dita, eis que incompatíveis, na medida em que apenas visa dar continuidade à manutenção do status quo, ao utilitarismo dos animais.

Essa característica mutável do direito, se devidamente aproveitada, representa um caminho que pode nos afastar da destruição e nos conduzir a uma ação humana generativa e sustentável do ponto de vista ecológico. Para optar por esse caminho, primeiro precisamos reavaliar criteriosamente as atuais visões de mundo da ciência e do direito. (A Revolução Ecojurídica, por Fritjof Capra e Ugo Mattei).

Nesse sentido, legislação federal, estadual ou municipal que diminua o alcance da proteção constitucional dos animais é mais do que inconveniente (além de, a meu ver, ser claramente inconstitucional), pois quase sempre, em algum grau, se revestem de violações aos direitos animais, haja vista que comumente regulamentam a instrumentalização dos animais ao invés de abolirem (ou ao menos mitigarem) práticas exploratórias, cruéis.

Muitas leis (e normas) regulatórias começaram a ser sancionadas no início deste século em todo o país, a exemplo da lei federal nº 11.794/2008 que regulamenta o uso científico de animais e leis também passaram a surgir em alguns estados, os chamados “Códigos de Proteção aos Animais” ou “Código de Direito e Bem-estar Animal” a exemplo do mais recente (junho de 2018) no estado da Paraíba, equivocadamente festejado por seus entusiastas como a legislação “modelo” mais avançada do Brasil (!?).

Em âmbito municipal, os tais “códigos protetivos” também estão surgindo com mais frequência em diversas cidades, geralmente sendo mera reprodução (indevida) de várias outras leis, às vezes adaptados às realidades locais. “Fazer lei” e ganhar voto (não necessariamente nesta ordem) das chamadas “protetoras de animais” é a moda do momento; já boa vontade política, qualidade jurídico-legislativa e efetiva proteção aos animais é outra estória.

Saiba mais: DA SÉRIE PROJETOS DE LEIS CAPENGAS, por Vanice Cestari.

Para não me alongar nesse tema, nos próximos parágrafos passarei a citar alguns exemplos (trechos) constantes em legislações estaduais, regulamentadores do uso e do sofrimento animal ou, ainda, da indevida (e inconstitucional) discriminação de espécies quando se tenta reconhecer algum direito.

Na lei nº 11.140/2018 do estado da Paraíba, todo animal tem o direito “a um limite razoável de tempo e intensidade de trabalho (…) e a um repouso reparador”. O extenso código segue nessa mesma toada, praticamente nenhuma novidade há nessa lei, na medida em que repete, desnecessariamente, previsões já expressas em outros diplomas normativos de competência diversa (leis federais, Constituição Federal), além de reproduzir a mesma redação de dispositivos elaborados no século XX (especialmente os dispositivos bem-estaristas), tal qual o Decreto-Lei nº 24.645/1934 que, por sinal, ainda está em vigor, o que torna desnecessária a sua reprodução em legislações estaduais (e municipais). A legislação “modelo” e “avançada” dos atuais bem-estaristas, eufemisticamente chamada de código de “direito e bem-estar animal” inclui, ainda, um capítulo que trata dos animais “de produção”, do abate de animais, dos “animais de carga”, sendo “permitida a tração animal de veículos ou instrumentos agrícolas e industriais somente pelas espécies bovinas, equinas, muares e asininos”, cujos veículos deverão “portar recipiente próprio destinado à hidratação e alimentação (…)”.

Pontuo estes exemplos para ilustrar meu raciocínio acerca da dispensabilidade desse tipo de “proteção”, haja vista a incrível extensão dessa lei com mais de cem artigos que também trata de experimentação animal, permissão de rodeios, vaquejadas e práticas afins ditas por “desportivas” ou culturais, permissão de corridas de cavalos (turfe), salto com cavalos (hipismo) e equoterapia, permissão de zoológicos e criadores autorizados, reprodução, criação, exposição e venda de animais etc, regulamentando diversas formas de crueldade com animais, com poucas ressalvas para alguns cães e gatos, o que ultimamente tem sido previsível (controle de zoonoses e controle populacional ético, cães e gatos comunitários, proibição do uso de cães em serviços de guarda e vigilância) – especismo eletivo.

Nota-se também que alguns de seus artigos são mera reprodução de outras leis estaduais, tal qual a lei de nº 11.915/2003 do estado do Rio Grande do Sul (também chamada de Código de Proteção aos Animais) e a lei nº 11.977/2005 do estado de São Paulo (ou Código Estadual de Proteção aos Animais), o que é relativamente comum entre os entes federados, especialmente quando se trata de lei essencialmente prejudicial para os direitos animais (só há direito e proteção animal onde há abolição da exploração, não regulamentação).

Leis infraconstitucionais sobre o mesmo tema invariavelmente acabam por repetir umas às outras, nenhuma novidade há nisso para quem já se aproximou desse universo, tampouco há aqui inovação no sentido jurídico-político, haja vista um breve panorama do traçado histórico do movimento brasileiro em defesa dos animais aqui apresentado. Muito do que hoje ainda é visto como “inovador” por algumas pessoas que se dizem representantes dos animais já foi previsto em leis no passado sem que tenha havido qualquer tipo de ganho real para os animais subjugados. Pelo contrário, essas medidas sempre obstaram o amplo debate social acerca do fim de práticas de exploração e violência contra animais. O que leva os bem-estaristas contemporâneos a pensar que hoje seria diferente? Na realidade o bem-estar é humano e preocupação alguma há com a efetivação e universalização dos direitos animais fundamentais que só é possível ser engendrada sob a ótica abolicionista.

Saiba mais: PROVOCAÇÕES ABOLICIONISTAS, por Vanice Cestari.

Após a Constituição Federal de 1988, ao invés de se ampliar o sentido de alcance do artigo que tutela os animais, leis passaram a restringir o mandamento constitucional da vedação da crueldade e da proteção indiscriminada a todos os animais (podendo haver pontuais exceções). E mais recentemente, aproximadamente desde os dois últimos anos, temos visto um movimento de defensores dos “direitos animais” que agora pleiteia o reconhecimento legal de apenas algumas espécies animais como sujeitos de direitos, um equívoco duplo.

Neste ano de 2020, no estado do Rio Grande do Sul, também foi inserido no Código do Meio Ambiente (lei estadual nº 15.434/2020) um “regime jurídico especial para os animais domésticos de estimação” que, segundo a lei, possuem “senciência, natureza jurídica sui generis e são sujeitos de direitos despersonificados (sic)”, exceto aqueles “utilizados em atividades agropecuárias e de manifestações culturais” afinal, esses não são estimados.

Como já citado, os animais há muito são sujeitos de direitos perante o legislador (e perante o Judiciário desde o século passado), assim como há consideração de sua senciência (que abrange a consciência animal). Mas o que mudou de substancial e concreto para a proteção dos animais nesses dois séculos? Leis garantem os direitos animais. Retalhos de leis de ontem estão sendo reproduzidos à exaustão nos dias de hoje com propaganda enganosa de aquisição de direitos. Mais bem-estarismo. A limitação de entendimento acerca do significado do termo “bem-estarismo”, que apenas garante a continuidade de práticas exploratórias e de mandatos eletivos, segue nas mentes antropocêntricas, as mesmas mentes que criam leis como a de nº 17.485/2018 do estado de Santa Catarina (em alteração à Lei nº 12.854/2003 – mais um “código de proteção aos animais”) que reconhecia cães, gatos e cavalos como seres sencientes “sujeitos de direito, que sentem dor e angústia, o que constitui o reconhecimento da sua especificidade e das suas características face a outros seres vivos”. (!!!) Passados quatro meses a “senciência dos cavalos e sua qualidade de sujeitos de direito foi revogada” pela Lei nº 17.526 (SC). Lei “protetiva” ditando os fatos de ordem biológica, ora reconhecendo ora revogando fatos naturais, científicos! Depois ainda vieram mais três alterações (até o momento), mais uma no ano de 2018 e duas nesse ano de 2020 (os cavalos restaram de fora, assim como todas as outras espécies, apenas a senciência de alguns cães e alguns gatos importam para o legislador). Uma análise ponderada nos indicará que tão cedo abolição alguma virá pelas mãos de quem é parlamentar e de quem pretende se tornar.

Não se vive de leis, mas há quem queira viver. Estas são as leis que estamos produzindo na atualidade (e ainda se ignorando as mais avançadas do século passado) e, pasmem, sob aplausos, apoios fervorosos e comemorações vazias de muita gente…

E dá-lhes votos!