🐮 Ansiamos pelo fim da farra que não é do boi

panfleto que pede o fim da farra do boi

A chamada farra do boi é um ritual de verdadeira selvageria ainda praticado em municípios litorâneos do estado de Santa Catarina por pessoas que se divertem com o desespero e pavor de animais perseguidos, acuados e maltratados nessas ocasiões, fazendo da violência e humilhação de outrem uma fonte de diversão e prazer, logo, a farra não é do boi, mas daqueles que participam, direta ou indiretamente desse evento regado a crueldade, bem como a dos que incentivam e perpetuam ao longo do tempo práticas culturais violentas, degradantes e vexatórias.

Ao longo das últimas décadas do século passado, as campanhas para o fim dessa nefasta tradição se intensificaram, tendo sido realizadas inúmeras ocorrências e denúncias de ativistas e entidades protetoras de animais nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro que, a par das evidências, passaram a colher provas para atestar a efetiva crueldade e maus-tratos com os bois nas farras humanas, ocasião em que se ingressou com ação judicial que acabou por culminar, em 1997, na declaração inexorável do STF (Supremo Tribunal Federal) acerca da violência e crueldade praticada contra os bois, declarando-se a obrigação das autoridades do Estado de Santa Catarina na tomada de providências cabíveis com vistas a garantir o fim da farra e de outras manifestações semelhantes.

(…) por quê, num país de dramas sociais tão pungentes, há pessoas preocupando-se com a integridade física ou com a sensibilidade dos animais? Esse argumento é de uma inconsistência que rivaliza com sua impertinência. A ninguém é dado o direito de estatuir para outrem qual será sua linha de ação, qual será, dentro da Constituição da República, o dispositivo que, parecendo-lhe ultrajado, deva merecer seu interesse e sua busca de justiça. De resto, com a negligência no que se refere à sensibilidade de animais anda-se meio caminho até a indiferença a quanto se faça a seres humanos. Essas duas formas de desídia são irmãs e quase sempre se reúnem, escalonadamente. [Trecho do voto do Ministro-Relator Francisco Rezek no julgamento do Recurso Extraordinário nº 153.531-8/SC em 3.6.1997]

No entanto, a vitória no STF não veio fácil, não fosse o engajamento e comprometimento de ativistas que, sabendo agir cautelosa e profissionalmente, viram a oportunidade de chamar a atenção dos Ministros para a farra por meio de um episódio brutal ocorrido à época.

Segue o relato da então militante e atual Presidente da UIPA, a advogada Vanice Teixeira Orlandi, que teve participação direta no êxito da ação:

“Contra o mau costume catarinense restava apenas a esperança de um recurso extraordinário interposto por associações do Rio de Janeiro, junto ao Supremo Tribunal Federal, cujo relator Francisco Resek já havia declarado estar ciente de que os demais ministros não o acompanhavam em seu posicionamento contrário à prática. Segundo o relator, o repúdio ao costume até então estava restrito ao Rio de Janeiro e São Paulo, havendo, portanto, a necessidade de surgirem manifestações contrárias oriundas também do próprio Estado de Santa Catarina. Não havia nos autos vídeo, ou qualquer outra prova, que demonstrasse a crueldade da prática, que era contestada pelo Estado catarinense. Exceção feita às equipes de TV, os farristas não permitiam a gravação de imagens. Ciente da influência que um vídeo exerceria sobre os Ministros do STF, a militante dispôs-se a obtê-lo, levantando uma considerável quantia em doação que lhe possibilitou adquirir um vídeo pertencente aos arquivos de uma emissora televisiva, que se recusava a ceder a fita por outras vias. Muito embora o documento não mais pudesse ser juntado aos autos, foi entregue aos Ministros como prova da selvageria dos farristas. Por ocasião da apreciação do recurso, foi o julgamento suspenso, logo após o voto do relator. Nesse ínterim, no ensejo da Semana Santa, um boi muito ferido adentrou, em pânico, a residência da artista plástica Maria Cristina de Oliveira, que foi cercada por centenas de farristas que ameaçavam incendiá-la, caso o animal não lhes fosse entregue vivo. Além dos danos patrimoniais relativos à destruição de objetos da casa, e da fratura óssea causada à uma visitante da residência, seus moradores sofreram o trauma de serem coagidos a entregar o animal aos farristas, que o atormentaram até a morte. A militante viu no incidente a oportunidade de fazer chegar aos Ministros do STF a manifestação contrária à farra a que havia se referido o ministro relator, não só por se tratar do depoimento de uma catarinense, mas sobretudo por acrescentar à luta abordagem ainda não explorada, atinente ao descabimento de uma prática que, além de cruel em sua essência, também submetia a risco de danos morais, físicos e patrimoniais os próprios catarinenses. A militante mostrou à Uipa e à cidadã catarinense a importância de explorar o episódio para reverter o entendimento dos Ministros sobre a questão. Dessa forma, a Uipa arcou com as despesas de viagem a Brasília da munícipe catarinense, despertando o interesse da imprensa, que noticiou os atrozes procedimentos dos farristas. Assim, o Estado de Santa Catarina foi condenado a coibir a farra do boi, que teve sua inconstitucionalidade reconhecida em histórica e festejada decisão, em texto que fez menção aos fatos noticiados pela imprensa. Posteriormente, em ação proposta pela UIPA, aquele Estado foi condenado a pagar multa superior a um milhão de reais por descumprimento reiterado de decisão judicial que o condenou a coibir a barbárie catarinense”.

Não há dúvida de que esse episódio de terror, cujos detalhes se mostram constrangedores para qualquer indivíduo humano sensato acerca do rebaixamento moral que só nossa espécie é capaz, exerceu influência nos votos do Ministro Marco Aurélio e do Ministro-Presidente Néri da Silveira, que acompanharam o relator.

Senhor Presidente, é justamente a crueldade o que constatamos ano a ano, ao acontecer o que se aponta como folguedo sazonal. (…) Admitida a chamada ‘farra do boi’, em que uma turba ensandecida vai atrás do animal para procedimentos que estarrecem, como vimos, não há poder de polícia que consiga coibir esse procedimento. (…). A distorção alcançou tal ponto que somente uma medida que obstaculize terminantemente a prática pode evitar o que verificamos neste ano de 1997. O Jornal da Globo mostrou um animal ensanguentado e cortado invadindo uma residência e provocando ferimento em quem se encontrava no interior. [Trecho do voto do Ministro Marco Aurélio no julgamento do Recurso Extraordinário nº 153.531-8/SC]

Não obstante, apesar do apelo social daqueles que não toleram a barbárie contra os vulneráveis e indefesos animais e da infalível atuação das envolvidas sociedades protetoras que obtiveram a louvável decisão da Corte Suprema, o Estado de Santa Catarina não coibiu a manifestação de culto à violência contra os bois, seja porque autoridades públicas foram complacentes com a continuidade dos festejos a ponto de emitirem, a partir de 1999, orientações e cartilhas permissivas da prática abjeta, intituladas, respectivamente, “Orientações para a Farra do Boi” e “Malhado e a Farra do Boi”, seja porque atuou de forma tímida ou insuficiente, ensejando a pertinência e continuidade da multa do Estado de Santa Catarina por descumprimento de ordem judicial, o que originou nova ação da UIPA – União Internacional Protetora dos Animais conforme relatado.

Também chama a atenção a violência contra as pessoas humanas vitimadas nesses festejos bárbaros, uma vez que, acossados, os bois empreendem fuga em total desespero nas vias públicas, adentram em casas e fatalmente também acontece a morte de pessoas humanas, a exemplo de uma criança de dois meses de idade que veio a óbito em 2004 quando estava dentro de um veículo que atropelou um boi em fuga, conforme informações constantes nos desdobramentos processuais que buscavam a efetividade da decisão judicial exarada pelo STF em 1997. Daí se tem uma vaga ideia de quantas vidas inocentes foram perdidas por conta exclusiva dessa odiosa prática que vem tardando para se encerrar definitivamente.

Nos últimos anos, novas campanhas de conscientização sobre essa atroz diversão humana foram retomadas, bem como a pressão da sociedade civil engajada que cobra das autoridades catarinenses o efetivo cumprimento da suprema decisão do Poder Judiciário.

Também passou a ser questionado por ativistas o costumeiro abate desses animais pelo órgão de vigilância sanitária quando o Poder Público atua nas ocorrências vindo a conseguir o recolhimento dos bois nas farras, o que perfaz em outra grande injustiça com esses animais, pois não tem cabimento penalizar uma vítima de violência, tampouco com a morte. O Estado deve proteção aos animais!

Passados vinte e três anos do julgamento sobre a crueldade presente na chamada farra do boi pela mais alta Corte do Poder Judiciário, há quem ainda defenda a prática que ainda não terminou e, portanto, as denúncias e o engajamento de ativistas catarinenses, paulistanos, cariocas e de muitas outras regiões brasileiras também não.

Sendo assim, é de fundamental importância a persistência e pressão das autoridades competentes na implementação de uma força-tarefa eficaz no combate a essa prática violenta e perversa para fazer valer o respeito à vida e a decisão irrevogável do STF.

Eis que surge uma nova esperança. O coletivo Farra do Boi Nunca Mais, um projeto da Associação Catarinense de Proteção aos Animais noticiou, em 4 de fevereiro deste ano (2020), um encontro com outras ONG´s e ativistas em reunião na Prefeitura de Florianópolis num tipo de prestação de contas do Poder Público para tratarem de “ações realizadas pelo Núcleo de Inteligência da Polícia Militar e demais órgãos para combater a Farra do Boi”.

Um dos possíveis caminhos para coibir as farras pelo Poder Público é a aplicação de multa administrativa nos exatos moldes do que já é previsto na hipótese de maus-tratos a cães e gatos, isto é, multa de até R$ 3.000,00 (três mil reais) por animal, dobrando-se o valor em caso de reincidência, conforme explica o coletivo.

Além disso, ações articuladas das autoridades públicas com o uso do aparato estatal disponível e colaboração da sociedade civil se fazem absolutamente necessárias, sem as quais fica impossível o desenvolvimento de um trabalho combativo.

Nós aqui do Saber Animal vibramos pelas boas notícias, afinal, paulatinamente presenciamos o envolvimento de diferentes agentes de transformação, atuando aqui e ali, motivados por um constante engajamento daqueles que, despertos, despertam o outro para a necessidade de (r)evolução moral e da adoção de práticas não-violentas com os animais.