🎙️ Podcast Saber Animal #006 – Notícias

Vacas exploradas pela pecuária em fila vestidas de pijama listrado em alusão ao povo judeu massacrado pelos nazistas (ilutração da artista e ativista pelos direitos animais, Jo Fredericks)
Quando é que nós vamos aprender, de Jo Fredericks, artista e ativista pelos Direitos Animais

No episódio de hoje, falamos como o tratamento que dispensamos aos animais nos dias de hoje pode ser comparado com o que os nazistas faziam, na sequência fazemos um pequeno bate-papo sobre a exploração dos cães onde se reforça a ideia especista da sociedade de que há animais para nos servir e ainda sobre um autêntico grupo de heroínas que protege os animais da caça ilegal no Zimbábue.

Apresentação: Vanice Cestari e Fabio Montarroios / Edição de áudio: Fabio Montarroios. Produção: Vanice Cestari / Roteiro: Vanice Cestari e Fabio Montarroios.


O NAZISMO E OS ANIMAIS

No dia 17 de janeiro de 2020, nos deparamos com uma bomba logo cedo: o site independente Jornalistas Livres revelou que Roberto Alvim, agora ex-Secretário Especial da Cultura do governo do Presidente Jair Bolsonaro, havia parafraseado o nazista Joseph Goebbels ao apresentar um edital de cunho completamente nacionalista e, inevitavelmente, fascista. Mas antes de revelar esse lado, Alvim já havia ofendido a célebre e premiada atriz Fernanda Montenegro e disparado bazófias em fóruns internacionais. A figura, patética por si só, deixou a esquerda quando era diretor de teatro e passou para o lado mais podre do espectro político depois de se curar de uma grave doença através, diz ele, de uma “intervenção direta de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Pois é…

Para não deixar margem para dúvidas, Goebbels foi responsável pela propaganda do partido nazista na década de 30 e 40 do século XX. Até se credita a ele a própria criação da propaganda política como conhecemos hoje! Sua admiração por Adolf Hitler era total. Juntamente com Heinrich Himmler e Hermann Göring, eles formavam o núcleo duro do alto comando nazista. Não se tratava, portanto, de um nazista qualquer. Imitá-lo seria quase tão infame quanto imitar o próprio Hitler. Seu biógrafo, Peter Longerich, não lhe dá tanto crédito assim, indicando que Goebbels era, além de violento, um narcisista e seu ministério da propaganda servia basicamente para criar o mito de que ele era um gênio e alguém muito importante.

Daí que, com o passar das horas, não demorou muito para que uma teoria da conspiração surgisse nas redes socais de perfis alinhados ao governo creditando a fala do ex-secretário a uma artimanha de… petistas. Eles teriam, vejam só, ardilosamente colocado lá no texto do ex-secretário a frase maldita para ser lida e depois denunciada. Tal ideia só não soa mais estapafúrdia, porque temos o próprio falando em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo que “assina em baixo” as falas nazistas que proferiu em vídeo no qual ele, de fato, imita Goebbels – inclusive nos gestos e no penteado. Bizarro…

Inflamado pelas redes socais e pela incrível repercussão mundial do ultrajante vídeo, a oposição e muitos daqueles contrários ao governo Bolsonaro indicaram, com propriedade, que esta situação não deveria surpreender tanto assim, afinal, o próprio presidente da República já dava sinais há muitos anos de ser uma pessoa violenta, racista, homofóbica, machista, de idealizar um nacionalismo torpe e nutrir admiração por perigosos milicianos… Em suma, era alguém que já ostentava um currículo bastante adequado para ingressar nas fileiras neonazistas. Mas mesmo com esse passado, o mesmo jornal “O Estado de São Paulo”, à época das eleições de 2018, em editorial, dizia que os brasileiros tinham pela frente uma escolha muito difícil: ou íamos de Jair Bolsonaro ou de Fernando Haddad. Já me expressei especificamente sobre esta questão em artigo para o site Saber Animal.

Saiba mais: BOLSONARO E LULA ENTRARAM NUMA CHURRASCARIA. E DAÍ?, por Fabio Montarroios

A disputa entre direita (incluindo aí a extrema-direita) e esquerda que sempre descamba para a medonha competição de quem matou mais, se o nazismo ou o comunismo, é bem recorrente em ambientes virtuais. Disputa essa, vale frisar, geralmente puxada pelos direitistas. Ora, esta questão não se impõe num debate sério entre adultos minimamente escolarizados, pois todos os regimes que mataram ou perseguiram pessoas pelas mais diversas razões são infames. A despeito de seus métodos e escolhas, pois uns podem nos parecer mais horrendos que outros a depender do nosso posicionamento pessoal, o resultado da perseguição do Estado ou de determinados grupos é o mesmo: a aniquilação da vida. Quantificar o rastro de morte de regimes totalitários pode trazer algum alívio de consciência para quem se dá a esse trabalho, mas acaba servindo mesmo é para escancarar o nosso poder destrutivo de colocar de pé e funcionando instituições voltadas exclusivamente para a morte.

E ao mesmo tempo em que fizemos da humanidade vítimas de nós mesmos no holocausto judeu (para nos limitarmos a este genocídio, já que foram muitos), colocamos os animais em idêntica situação, mas a diferença é que continuamos fazendo isso todos os dias de modo ininterrupto no mundo todo. A partir da era industrial, mas não se limitado a ela, um sem número de animais, tiveram como destino uma morte cruel ou uma vida de puro sofrimento. Para ficarmos em apenas um exemplo na área da cultura, a mesma do ex-secretário que clamava por uma arte puramente nacional, o filme Okja (2017), de Bong Joon Ho, traz, não à toa na forma de metáfora, os famigerados campos de extermínio, onde diversos animais esperam a morte, como a protagonista Okja, um animal manipulado geneticamente para servir aos interesses da indústria da carne. O cenário sombrio escolhido pelo diretor poderia muito bem aludir a Auschwitz. A cena em que o animal e sua jovem tutora passam por outros animais presos certamente partirá seu coração.

Agora, se os nazistas foram capazes de eliminar de modo sistemático e metódico a vida de 6 milhões de judeus, apenas no Brasil entre os anos de 2003 e de 2019 já se foram quase 80 bilhões de animais mortos registrados oficialmente pelo Ministério da Agricultura. Ficam de fora desse número, que seria muito maior, os peixes, os animais silvestres mortos vítimas crimes ambientais ou do tráfico, os abates clandestinos, os animais usados como entretenimento em rodeios, vaquejadas etc e os abates com finalidades religiosas sejam elas quais forem.

O escritor americano Isaac Bashevis Singer, ganhador do prêmio Nobel de literatura em 1978 disse: “Em relação aos animais, todas as pessoas são nazistas; para os animais, é um eterno Treblinka.” Treblinka foi outro campo de extermínio nazista na Polônia. Quem se interessar mais pelo assunto, dentro da vasta filmografia sobre o tema, pode assistir ao documentário Shoah (1985), de Claude Lanzmann e ao filme O filho de Saul (2015), de László Nemes. O autor Issac Singer era um judeu vegetariano e sabia do que estava falando. Mesmo sendo um conservador no campo das ideias, sentia compaixão pelos animais e via na forma como os tratávamos (e tratamos) muita semelhança com o sofrimento do seu povo perseguido pela máquina de matar dos nazistas. Outro escritor, o sul-africano J. M. Coetzee, também ganhador do prêmio Nobel, desta vez em 2003, escreveu por intermédio do seu alter ego, a Elizabeth Costello, que “foi nos matadouros de Chicago que os nazistas aprenderam como processar corpos”.

Nós, os que estamos vivos hoje, nos apropriamos dos habitats dos animais, de suas secreções (como o leite) e de suas capacidades reprodutivas como os nazistas faziam com os judeus tomando suas casas, seus pertences e suas vidas. Nós transportamos os animais para a morte como os nazistas faziam nas deportações para os campos de extermínio, mas usamos as rodovias e os navios numa logística impressionante. Nós destruímos suas famílias do mesmo jeito que os nazistas faziam quando separavam pais, filhos e irmãos. Nós fazemos coisas distintas e diversas com os animais no campo da experimentação científica, mas que não ficam nada muito distantes da curiosidade que o famoso nazista Joseph Mengele, o anjo da morte que passou décadas escondido no Brasil, nutria por crianças gêmeas. Nós matamos animais como os nazistas matavam judeus. A diferença é que fazemos isso numa escala muito maior e, além de ser algo que a maioria das pessoas não se importa, é o pilar econômico de muitas sociedades que transformaram os animais em commodities.

Esta comparação entre o holocausto e o destino dos animais até pode parecer desrespeitosa ou de alguma forma inadequada com os sobreviventes ou familiares das vítimas, mas não é o caso para qualquer pessoa razoável que pode perceber, nitidamente, que o que fazemos com os animais é tão terrível como qualquer outro genocídio que já tenha ocorrido na história humana. A semelhança com os métodos nazistas é o que salta aos olhos! O autor Charles Patterson, no livro Eternal Treblinka: Our Treatment of Animals and the Holocaust, desenvolve muito bem esta questão especificamente, mas o livro, apesar de disponível para compra no formato de ebook, só está disponível em inglês. De todo modo, fica a recomendação.

Pode até parecer difícil de conceber, mas assim como há quem negue o aquecimento global, há também quem negue o holocausto judeu. Por isso que os números também têm a sua importância e quando usados em discussões inúteis perdem o seu sentido de registro histórico das atrocidades humanas. Negar que o que fazemos com os animais é algo abominável e só faz criar uma nova categoria de negacionistas, mas o pior é que desta vez, o número de pessoas que se encaixa nela é muito maior do que qualquer exército ou mesmo o de uma nação humilhada, como era o caso da Alemanha derrotada na 1ª Guerra Mundial, que acreditava poder dominar o mundo.

Ah, e uma coisa que sempre vale refutar quando nazismo e animais entram em uma mesma discussão, seja qual for a razão, é que algumas pessoas correm lembrar que Hitler era vegetariano. Ora, não é bem o caso. Seu biógrafo, Ian Kershaw, relata em sua obra que Hitler “convencera-se de que carne e bebidas alcoólicas não lhe faziam bem e, ‘a sua maneira fanática (…) acabou fazendo disso um dogma e, a partir de então, só comeu comida vegetariana e bebeu bebidas sem álcool’”. O filósofo franco-magrebino Jacques Derrida em conversa com a célebre historiadora e psicanalista, a francesa Élisabeth Roudinesco, no livro De que amanhã… diálogos, tratam exatamente deste assunto. Roudinesco diz aludindo a Hitler que “o terror de ingestão da animalidade pode ser sintoma de um ódio do vivo levado até o assassinato”. Sendo respondida por Derrida da seguinte forma: “Alguns já ousaram extrair um argumento desse vegetarianismo de Hitler. Contra os vegetarianos e os amigos dos animais. Luc Ferry, por exemplo. Essa catilinária caricatural procede mais ou menos assim: ‘Ah, você esquece que os nazistas, e Hitler em particular, foram uma espécie de zoófilos [amigos dos animais]! Portanto amar os animais é odiar ou humilhar o homem! A compaixão pelos animais não exclui a crueldade nazista, é inclusive seu primeiro sintoma!’ O argumento me parece grosseiramente falacioso. Quem pode acreditar um segundo nessa paródia de silogismo? E aonde nos levaria ele? A redobrar a crueldade para os animais a fim de dar provas de um humanismo imaculável?”


BATE-PAPO: USO DE CÃES POR MILITARES E CIVIS

Fazemos um bate-papo a respeito do tema, citamos o exemplo dos cães Thor e Barney que morreram muito jovens, tendo sido diuturnamente explorados em operações de resgate e também dos cães-guias, dentre outros exemplos (não exaustivos).

Agradecimentos a Marcos Ramon e Renata Fortes.


AKASHINGA

Na linha de frente é o título da reportagem publicada pela revista National Geographic Brasil na edição de junho do ano passado, que fala da proteção dos animais selvagens em uma reserva ecológica do Zimbábue, a qual está nas mãos de um time feminino bastante combativo.

Quem melhor poderia compreender a exploração, violência e crueldade se não as pessoas que sentiram na própria pele? Quando o assunto é o combate à caça ilegal no Zimbábue, as mulheres vítimas de abuso, exploração e violência doméstica demonstraram, segundo a reportagem, muito mais aptidão do que os homens na tarefa de proteger a vida dos animais selvagens, vítimas de implacáveis caçadores.

O Parque Phundundu é uma antiga zona de caça de 300 quilômetros quadrados (hoje uma reserva ecológica) e a reportagem informa que a região de seu entorno perdeu milhares de elefantes para caçadores ilegais apenas nos últimos vinte anos.

Para enfrentar essa verdadeira guerra que é o combate à caça de animais, um ex-militar australiano chamado Damien Mander que serviu na Guerra do Iraque criou uma Fundação Internacional contra a Caça Ilegal (IAPF, na sigla em inglês) e uma equipe chamada Akashinga, um braço dessa Fundação formada por um grupo de guardas-florestais, todas mulheres, que recebem treinamento para a corajosa e difícil tarefa de defender a vida dos animais selvagens alvos de caçadores.

Akashinga significa “Corajosas” ou “Valentes”, na língua shona e esse grupo feminino anti-caça é responsável por patrulhar o Parque Phundundu que faz fronteira com 29 comunidades e, segundo o treinador Mander, o envolvimento dessas comunidades, de onde saem essas mulheres guardiãs, é um fator fundamental para o êxito das operações desse grupo totalmente feminino que atua desde 2017:

“Depois de anos treinando guardas-florestais masculinos, ele concluiu que as mulheres eram mais adequadas para o trabalho. Ele descobriu que elas eram menos suscetíveis ao suborno oferecido por caçadores e mais aptas a diminuir a tensão em situações potencialmente violentas”.

Segundo a reportagem, as guardas-florestais demonstram ser muito mais resistentes (tanto física quanto psicologicamente) do que os homens que haviam participado de cursos de formação em anos anteriores para a mesma função, isto é, para o combate à caça ilegal dos animais selvagens. O treinador atribui esse fato não só por elas serem moradoras dos povoados vizinhos ao Parque, mas também porque todas elas sofreram violência em algum grau de seus companheiros e de suas famílias.

Olhando as fotos que ilustram a reportagem, é possível notar um ar de empoderamento dessas mulheres no controle de suas próprias vidas com maior autonomia e independência, fortalecidas por suas próprias experiências traumáticas. A matéria sugere que as guardas-florestais mudaram de vida se libertando dos abusos sofridos graças ao trabalho que desenvolvem no Parque na defesa de outros seres vulneráveis.

Clique aqui para ver as fotos da reportagem no idioma inglês.

O artigo romantiza um pouco essa situação, pois ainda que elas gostem do ofício e até mesmo tiveram a possibilidade de criar laços entre si, não devemos desconsiderar que talvez integrem a Akashinga por falta de melhor opção de trabalho na região em que vivem, já que é uma atividade de altíssimo risco uma vez que quem combate à caça ou a violência mortal dirigida contra os animais também acaba se tornando um alvo em potencial, sobretudo na mira de caçadores sem escrúpulos.

Algumas fotos da reportagem também mostram as mulheres em momentos de comunhão, como se pertencessem a uma só família. Numa das imagens elas estão todas reunidas para uma refeição. Todas elas seguem uma dieta vegana que foi estabelecida por Mander desde a criação da Akashinga para evitar a crueldade contra os animais, segundo a matéria. “A comida é uma parte importante do programa”, diz o treinador Mander.

Ao contrário do que o senso comum pode imaginar, a alimentação à base de plantas é rica em nutrientes, o que é importante para o treinamento e trabalho pesado que requerem força e resistência constantes, além da coerência ética e do evidente significado ideológico que está por trás dessa escolha.

E aqui há uma particularidade curiosa: Damien Mander, treinador e fundador da Akashinga também já foi um caçador, mas isso eu soube por meio de um breve vídeo de 5 minutos, narrado por ele mesmo, em outra reportagem para a Folha de S.Paulo. Essa matéria da National Geographic não comenta sobre essa parte do passado dele, mas apenas um ex-militar que serviu nas guerras do Iraque e nas linhas de frente da guerra contra a caça ilegal na África, mesmo porque o protagonismo aqui é das mulheres. Vale conferir o depoimento dele.

Em resumo, ele conta que era um mercenário e caçador e seu propósito de vida era apenas ganhar dinheiro matando pessoas humanas e animais, eis que um belo dia teve sua vida transformada depois que conheceu pessoas que defendiam a vida dos animais e a preservação da natureza apesar de todos os riscos e dificuldades que se possa imaginar.

A postura de não violência na alimentação e a defesa da vida selvagem não são meros acasos. Assim como a matança de gente e a matança dos animais não-humanos estão umbilicalmente ligadas. Um ex-soldado e ex-caçador certamente entende bem a trama dessas questões que no fim se resume a um único fato: toda matança é cruel e toda guerra é desnecessária.

Nada mais lógico se opor contra todas as formas de barbárie impostas a quem não pode se defender, aos inocentes, aos animais – humanos ou não-humanos. Se opor à matança e à crueldade, seja no combate à caça ilegal dos animais selvagens, seja por meio da alimentação é firmar o posicionamento claro na linha de frente contra a selvageria e covardia.

Se toda matança é desnecessária e cruel, não importa se a vítima é humana, se é um animal não-humano selvagem ou domesticado justamente para ser servido em bandeja como se comida fosse. Combater a caça e combater a matança de animais para qualquer propósito é posicionar-se do mesmo lado da trincheira contra os caçadores e matadores.

Uma das guardas-florestais afirma que não pensava nos animais antes de ingressar na Akashinga e essa declaração é interessante porque mesmo sofrendo violência e abuso, como no passado recente dessas mulheres, dificilmente nos colocamos no lugar do outro que também é vítima de comportamentos brutais onde os algozes somos nós. Antes de defendermos os nossos irmãos animais é como se não tivéssemos a integral consciência sobre o quão injustos e violentos também podemos ser.

A equipe das mulheres valentes parece ter encontrado força e coragem suficientes para lutar por suas vidas ao mesmo tempo em que lutam pela vida dos animais selvagens, dentre leopardos, elefantes, antílopes e outros animais, todos e todas mais do que merecedoras de uma vida digna, independente e livre de toda exploração e violência impostas por quem se acha no gozo de um poder tirânico.

A caça é tão presente na África e em outras regiões do Zimbábue que esse front digno de honrarias parece uma simples gota em meio ao oceano, no entanto, conforme reportagem da Folha de S.Paulo, desde quando essas primeiras guardiãs ou guardas-florestais entraram em ação, os casos de caça ilegal caíram em 80% nessa região, havendo muitas detenções sem que tenha sido disparado um único tiro!

Enquanto isso, faço aqui um parênteses para citar que, em maio do ano passado, foi noticiado que autoridades no Zimbábue autorizaram a caça a búfalos com arco e flecha para “atrair parte do crescente mercado da caça esportiva” e também a cidade vizinha Botsuana colocou fim à proibição da caça de elefantes que vigorou por cinco anos sob o absurdo argumento de que tal medida ajudará a atrair dinheiro para os países pobres, levando a uma melhor administração das reservas de animais. Nota-se que quando o desejo de matar os indesejáveis dita as ações políticas, tudo vira uma questão de justificar o injustificável: esporte, economia, turismo, “conservação”… E agora mais recentemente, a carnificina dos camelos por helicópteros na Austrália, exatamente como ocorrido no ano de 2013, que também promoveram o massacre de cavalos selvagens e burros por “questões ambientais”. A matança sem freios não é única de um país ou de poucos países, todos, inclusive o Brasil, apelam para a carnificina sempre que surge alguma questão que envolva os animais não-humanos. Onde não há respeito pela vida, onde não há ética, qual é o limite da estupidez humana?

Caçar para preservar? Qual o sentido lógico disto? É absolutamente ultrajante as declarações de autoridades que também preferem ignorar a sexta extinção em massa que estamos vivendo! Espécies à beira da extinção, emergência climática, o mundo ruindo em ritmo acelerado mas, esquerda e direita, só se sabe falar em eterno crescimento econômico com ou sem respeito mínimo à natureza, mas sempre às custas da covardia e da morte dos indefesos que são capazes de sofrer, os animais não-humanos.

Fechando aqui o parênteses que fiz, voltemos a falar da equipe feminina que guarda a vida dos animais no Zimbábue. É no território ou no povoado que a vida acontece onde a realidade pode ser transformada e segundo a reportagem da National Geographic, as guardiãs dos animais que integram a Akashinga demonstram ter conhecimento de um princípio básico e verdadeiro de conservação: “a vida selvagem com vida vale mais para a comunidade do que morta pelas mãos de caçadores ilegais”. Vale dizer que a revista não tem uma abordagem antiespecista (ou seja, não enxerga a vida animal com um valor intrínseco, que segue seus próprios interesses e propósitos enquanto indivíduo dotado de senciência e consciência) que é própria de veganos e ativistas animalistas e por isso onde diz “vida selvagem” está se referindo ao coletivo da natureza, um ser inserido no meio ambiente natural e no ecossistema, necessário para o desenvolvimento e perpetuação da vida ecológica como um todo.

Porém, seja qual for a abordagem da revista (que segue a visão tradicional antropocêntrica), a vida de cada indivíduo animal é especial e conta como única, sendo tutelada pelas guardas-florestais que integram a Akashinga, que parecem ter desenvolvido um olhar interdisciplinar sobre a importância da vida dos animais para eles, sujeitos de uma vida, e para todos da comunidade.

Se a defesa da vida dos animais selvagens implica, por via indireta, na sobrevivência da espécie humana e dos ecossistemas, também beneficia mais de perto a vida e o desenvolvimento das comunidades locais (sobretudo a vida das mulheres de regiões pobres e marginalizadas, como a das mulheres nas adjacências ao Parque Phundundu, que sofrem maior impacto ambiental conforme o avanço de ações exploratórias).

Combater a caça ou defender a vida dos animais selvagens no habitat é mais inteligente, verdadeiramente sustentável e rentável preservando eficazmente a natureza, além da vida dos animais e garantindo até mesmo um retorno positivo à economia local. A reportagem da National Geographic informa que, nessa região da África, isso tem sido uma tarefa predominantemente feminina: pesquisas apontam que as mulheres de países em desenvolvimento e que trabalham investem 90% de sua renda em suas famílias – em comparação a 35% entre os homens.

Conforme já tratamos aqui no episódio do podcast sobre a caça, somos contra a caça de animais em qualquer circunstância, seja ela legalizada ou não, já que se revestem de uma matança despropositada e perversa, uma verdadeira guerra contra os animais que representa uma das faces mais cruéis e vexatórias da humanidade que se vangloria do terror que provoca e, claro, o fato de sermos veganos corrobora com esse entendimento. A reportagem da National Geographic trata, no entanto, apenas do combate à caça ilegal nessa reserva ecológica do Zimbábue, no entanto, não resta dúvida de que o treinador Mander (que também se tornou vegano) e as guardas-florestais da Akashinga são contra qualquer tipo de caça por saberem muito bem a barbárie e injustiça que essa prática representa para os animais não-humanos.

Para ouvir o episódio #001 do Podcast Saber Animal no qual tratamos da caça, clique aqui.

A caça ilegal abastece o comércio com peles, dentes, garras e ossos de animais covardemente assassinados, transforma vidas inocentes e preciosas em mercadorias, em troca de um dinheiro sujo de sangue derramado que jamais poderá trazer algum benefício real para quem quer que seja e tampouco servirá para salvar a humanidade da destruição em massa que estamos semeando aos sermos bárbaros ou simplesmente coniventes com a matança de animais para qualquer propósito.


Músicas:

Meat is murder (Johnny Marr e Morissey), The Smiths

Gute Nacht. Kinder (Stephan Zacharias), Stephan Zacharias

Surveillance (Mark Isham), Mark Isham

Nhemamusasa: complete performance, Zimbabwe Shona Mbira Music