🎞️ Cinema: Megan Leavey (2017)

Soldado e cachorro em cena do filme Megan Leavey
Cena do filme Megan Leavey

Filmes americanos de guerra, quase sempre, são um misto de entretenimento e propaganda. O entretenimento pode ter variações de qualidade, já a propaganda pode variar no grau de intensidade. O filme Megan Leavey (2017), de Gabriela Cowperthwaite, é um bom entretenimento e também uma boa propaganda do militarismo estadunidense. A diretora, vale dizer, prestou um grande trabalho aos animalistas: ela também dirigiu o incontornável documentário Blackfish (2013) que mostra, sem sombras de dúvidas, o quão cruel é a exploração de cetáceos em parques aquáticos. Mas neste filme em particular, uma cinebiografia, no qual temos uma militar e um cão interagindo quase durante todo o longa, a incursão pelo animalismo dá um passo atrás. Mesmo Gabriela, literalmente imersa na problemática do uso de animais para atender necessidades humanas (a diversão e o conflito armado, por exemplo), parece não vislumbrar – sempre levando em conta a ótica animalista – o problema no uso de cães pelo exército de seu país. Na verdade, a diretora ficou vislumbrada com a história de uma mulher que encontra forças na lealdade canina em meio a guerra…

Trailer do filme Megan Leavy

Me parece oportuno, e um exercício interessante na medida do possível, fazer um paralelo com algum outro filme quando estamos dentro de um subgênero como o de “filmes de guerra”, afinal, os diretores buscam referências eles próprios e nós, a audiência, também fazemos o mesmo tentando não perder o rumo nessa imensa filmografia de um país com as maiores indústrias no mundo: a de filmes e a de guerras. Megan Leavey pode ser então comparado facilmente com The hurt locker (2008), da diretora Kathryn Bigelow (a primeira mulher a ganhar um Oscar na categoria direção). Nos dois filmes temos protagonistas com vidas pessoais difíceis, que não se adequam muito bem à vida civil tropeçando nos dilemas e no sonho cada vez mais difícil de concretizar do american way of life, buscando na guerra, para além do patriotismo que cada um deles parece carregar, um sentido para a vida. Nos dois casos temos militares (uma mulher e um homem, respectivamente) que precisam lidar com bombas, cada um a seu modo, vivendo intensamente a situação limite de estar a um passo ou a poucos segundos da morte. São filmes cheios de uma tensão suspensa, mas sem o tic-tac ou aqueles timers espalhafatosos que caracterizam e definem o clichê do perigo que antecede a possibilidade de uma explosão planejada por inimigos.

Alguns momentos nos dois filmes, por outro lado, são modorrentos, pois cheios de espera até uma próxima missão ou o término de um combate à distância em que nada acontece…

A GUERRA QUE TODOS DEVERIAM CONHECER

O contexto da guerra, que se dá no Iraque invadido por tropas americanas nos dois filmes, não nos é dado totalmente, pois a repercussão do evento foi mundial e, provavelmente, as plateias estão suficientemente informadas do assunto. É apenas em Megan Leavey, de relance, quando a protagonista (interpretada pela atriz Kate Mara) está num bar, que se torna possível ver o verdadeiro Colin Powell, o então Secretário de Estado do Presidente George Bush, dando explicações na TV para a necessidade de tudo aquilo. As motivações reais para a guerra, posteriormente, se mostraram baseadas em documentos falsos que alegavam que os iraquianos desenvolviam armamentos químicos de destruição em massa quando na verdade não estavam… Este período da história, bem recente e com consequências até hoje, afinal os EUA continua com tropas no Iraque (agora a pretexto de combater o Estado Islâmico), é apenas mais um de tantos que mostram o quão destrutivos nós somos e como a vida das pessoas e dos animais pouco importam.

Mas o saldo desta guerra infame foram milhares de mortos e uma crise humanitária que, claro, também se reflete na vida dos animais não-humanos. Mas algo interessante a se observar é que, apesar das grandes diferenças nos dois filmes, coube a diretora Kathryn mostrar essa situação de forma quase documental. As diversas cenas de The hurt locker foram filmadas com uma câmera ágil, que seguia de perto os combatentes, mas nos diversos momentos, tensos ou não, era possível ver gatos andando nas ruas (um deles mancando e outro nitidamente sem cuidados), burros puxando carroças, rebanhos de cabras e bois perambulando por uma nação arrasada. Outras cenas mostravam animais mortos, que serviriam de alimento sendo carregados ou vendidos. Aliás, a primeira cena de explosão ocorre com a presença de um açougueiro! Não é possível que Kathryn tenha colocado essas imagens de modo aleatório e gratuito em seu filme super premiado. Os animais também são vítimas da guerra, mas também seguem sendo vítimas permanentes em tempos de paz. A totalidade dessas imagens parece ser um misto de flagrante da vida real com momentos arranjados para o filme.

Cena do filme The hurt locker: a primeira ação envolve um açougue e um açougueiro!
Cena do filme The hurt locker: a primeira ação envolve um açougue e um açougueiro!
Cena do filme The hurt locker: um homem carrega um pedaço de animal morto no que parece um flagrante da vida real
Cena do filme The hurt locker: um gato abandonado no que parece ser um flagrante da vida real
Cena do filme The hurt locker: um gato abandonado no que parece ser um flagrante da vida real
Cena do filme The hurt locker: soldados preparando o desarmamento de uma bomba se deparam com rebanho de cabras
Cena do filme The hurt locker: um insurgente se disfarça entre animais para atacar soldados americanos
Cena do filme The hurt locker: animal usado como tração e disfarce

Cães abandonados são vistos em Megan Leavey. Eles parecem ser cães da localidade das filmagens e que foram usados apenas para reforçar diálogos e criar uma situação de contraste entre os bem cuidados cães americanos e os “de rua”. Num dos diálogos do filme, os personagens comentam sobre os riscos de se aproximarem desses cachorros locais, pois eles podem estar doentes. Fora essa situação, o máximo que é possível ver em termos de sofrimento animal, é o fato do cão tornado soldado ser impedido de se “aposentar” e, consequentemente adotado, devido a ação um tanto sádica de uma veterinária totalmente insensível. A veterinária, diga-se, faz o papel de braço da burocracia que engessa humanos e demais animais à estrutura militar, impedindo-os de desertar (crime gravíssimo entre humanos) ou que sigam sua animalidade (relegados à vida solitária num canil e transformados em propriedade do exército).

E neste caso em particular, o filme Megan Leavey é duplamente problemático: ele não questiona o papel dos cães numa guerra sem sentido, ao contrário, glorifica a participação deles. Bom, o filme já está fazendo uso de cães na condição de atores: para a atuação com a atriz Kate Mara foram usados três cães da raça pastor-alemão. A vida dos cães militares é diferente da dos cães atores, claro, mas ainda é distante do que eles poderiam ter se fossem apenas estimados ou se vivessem uma vida selvagem.

A MORTE À ESPREITA, MAS SUTILMENTE

Em ambos os filmes é possível saber ou ver que soldados morreram em combates ou foram vítimas de bombas. No longa narrativo da documentarista Gabriela, que em nada lembra um documentário, isto parece ser atenuado ao extremo, pois numa das únicas situações de perigo e enfrentamento com insurgentes, ninguém morre e Megan e seu companheiro canino apenas se ferem. Nesta ocasião, eles se separam para total desespero da soldada. A diretora Gabriela, ciente que a relação entre soldado e o cão é intensa na vida militar, enxergou essa separação quase como uma amputação que a soldada estava sofrendo ao se separar do cão conforme disse em entrevista, pois, e vemos isso no filme sendo explicitado, o cachorro sente tudo o que o seu tutor está sentindo emocionalmente.

Mas o que ficou patente na separação que os protagonistas enfrentam é o intenso sofrimento de Megan e nem tanto o do cão que, por não ser um ator e não ter frequentado escolas de teatro, afinal ele é apenas um cão adestrado, não está nem aí para esse lenga-lenga de despedida falsa. Diferentemente da relação que há entre cães que não são atores, mas tutelados, vale dizer, que quando separados de seus tutores, sofrem demasiadamente. Pode ser o caso com esses cães também, que passam boa parte do tempo sem companhia de humanos e isolados uns dos outros como se fossem prisioneiros, relegados a um canil, afinal, eles são assets [coisa de valor] à espera de alguma utilidade.

Cena do filme Megan Leavey: o canil parece uma prisão, diria Michel Foucault

E para não dizer que não há vítimas fatais, além dos insurgentes, no filme Megan Leavey ficamos sabendo de apenas da morte de um personagem coadjuvante, mas sem vê-la acontecer. Ela serve, na verdade, apenas para mostrar numa cena seguinte que o cão sempre ficará à espera de seu companheiro, num luto infinito… Segue a fala que reflete este momento:

Sargento: Ele [o cão Bruno] está procurando por ele [seu companheiro humano morto em combate]. Nunca vai parar [de procurá-lo]. Às vezes, não percebemos, assim como são nossa família, também somos a família deles [dos cães].

Já no filme The hurt locker, soldados, insurgentes, milicianos e civis (incluindo uma criança) morrem frequentemente.

Em outro momento percebemos, na família aparentemente disfuncional de Megan, que ela própria não tem espaço para a separação que enfrenta quando ganhou uma temporada de recuperação médica. Sua mãe aparece, de repente, com um filhote de cachorro para que sua filha encontre algum conforto. O cachorro, da raça labrador (um ator mirim?), que contrasta bastante com Rex, um cão adulto e de grande porte, é ignorado e motivo de outra discussão. Não ficamos sabendo, inclusive, qual foi o destino do filhote após a rejeição: será que ele foi devolvido? Abandonado? A Megan do filme não parece se importar. Sua obsessão é ter consigo o cão Rex, que lhe salvou a vida em algumas ocasiões, que é um verdadeiro herói de guerra, blá-blá-blá…

Cena do filme Megan Leavey: qual foi o destino desse cãozinho? Jamais saberemos!

Agora, não tomem isto como pouco caso da minha parte. Os sentimentos que a Megan da vida real enfrentou fazem parte de uma questão maior, na qual humanos e animais não-humanos são postos certamente contra suas vontades. A relação de afeição que se dá entre eles é complexa e cheia de nuances (com o cão tendo menos opções nesse caso). A depender da condição emocional de uma pessoa, muitas expectativas são depositadas nos animais que, por terem sua própria individualidade, não necessariamente corresponderão e, na maior parte das vezes, são apenas vítimas de nossas difusas projeções: nós literalmente os bombardeamos com toda sorte de emoção. Os afetos (nossos e dos cães), neste caso, são de natureza distinta e nós, humanos, geralmente, somos egoístas e colocamos nossos interesses em primeiro lugar.

O ato de Megan, a da vida real, que fique claro, de fato parece nobre, pois ela quis proteger e acolher um cão que NUNCA escolheu ser um herói de guerra, apesar dela o vê-lo assim, que NUNCA preferiu farejar bombas aos invés de brinquedos ou sair por aí mordendo insurgentes… A motivação é digna de aplausos, mas as razões incertas. No filme The hurt locker a coisa toda é ainda mais maluca: o turbilhão de emoções que os soldados sentem é, ele próprio, algo prestes a explodir. As bombas, nos dois filmes, podem ser vistas, então, como metáforas da nossa própria condição incerta, inconstante e mortífera.

O CÃO QUE NÃO É UM CÃO E UM GUIA DE AUTOAJUDA PARA COMBATENTES

O diálogo do filme Megan Leavey que segue abaixo, é extremamente esclarecedor do ponto de vista do que o pensamento militar é capaz. Porque, assim como a humanidade dos soldados é removida para que eles possam agir sem pensar numa guerra e apenas cumprir ordens, os cachorros farejadores de bombas têm a sua condição de animal igualmente removida, já que eles também passam a ser instrumentos, assim como são as armas, os veículos e todo o aparato que custa centenas de bilhões aos americanos todos os anos para que a máquina de guerra nunca pare:

Megan: Rex não está pronto para ser reintegrado [ao serviço militar].

Sargento:  Não é minha decisão. A veterinária discorda de você.

Megan: Ele é um cão diferente agora. Ele mudou [deixou de ser agressivo].

Sargento: Não posso ajudar você.

Megan: Por favor, apenas mude a classificação dele [de não adotável por ser agressivo] para que eu possa adotá-lo quando voltar, se ele voltar [vivo da guerra].

Sargento: Sua preocupação com o animal é honrável. Você é devotada a ele, entendo porque está com raiva [por conta da impossibilidade de adotá-lo].

Megan: Não estou com raiva. Estou tentando… Dar um lar a um herói de guerra em seus últimos anos de vida.

Sargento: Como se sentiria se tivéssemos que sacrificar o Rex, porque ele mordeu uma criança de 4 anos na rua só porque o garoto segurava uma arma de brinquedo? Acontece. Eu… Já olhei nos olhos de pais antes. Sei como é isso. Não são animais de estimação. Não são nem mais cães. São guerreiros, e voltam com os mesmos problemas que nós. Não estamos sendo cruéis. Estamos sendo inteligentes e responsáveis.

Megan: Não, não para o Rex.

Sargento: Sinto muito.

Cena do filme Megan Leavey: os traumas da soldado e do cão, unidos pela guerra
Cena do filme Megan Leavey: o cão vai na frente e indica o local da bomba para a soldado demarcá-la
Cena do filme Megan Leavey: o cão ator não está lá tão emocionado assim…
Cena do filme Megan Leavey: cães não precisam de continência, mas de carinho, cuidado e distância da guerra. O filme segue noutra direção
Cena do filme Megan Leavey: “Sempre fiéis”, diz a placa.
Cena do filme Megan Leavey: parecem cães abandonados, mas é difícil precisar se não são “atores”
Cena do filme Megan Leavey: o novo carro da soldada simboliza seu crescimento pessoal
Cena do filme Megan Leavey: reforçando o patriotismo com frases clichês
Cena do filme Megan Leavey: a veterinária malvada

Por se tratar de um filme baseado em fatos reais, que nós, brasileiros ou portugueses (ou os que conseguem ler em português este texto), não estamos tão a par. Ora, não seria spoiler dizer, então, que Megan parte numa jornada num misto de salvação pessoal e de salvamento do cão relegado ao esquecimento pelo poderoso exército americano. Ela parte em busca de apoio nacional para conseguir dar acolhimento a Rex. Nessa jornada ela até recebe um simpático aceno de uma cidadã que assina uma petição e reforça que o trabalho dos soldados é muito importante. A diretora e a produção do filme, neste momento aparentemente singelo, resolveram, além de tudo que já operava em favor da ideologia militarista, adicionar esse pequeno reforço para nos lembrar dos valorosos esforços dos militares que, de fato, dão suas vidas… por uma guerra totalmente sem sentido e sem qualquer justificativa. Se a intenção da diretora era trazer uma visão feminina da guerra, ela, a meu ver, conseguiu apenas trazer uma visão feminina de uma propaganda de guerra. Se não bastasse, Megan consegue finalmente se ajustar na vida errante, essa mesma que a levou, num impulso, a fazer parte das fileiras de soldados espalhados por um intrincado mapa geopolítico que ela parecia ignorar até então, graças a sua jornada de heroína guerreira.

Esta melhoria de vida parece se dar também graças ao duro treinamento militar (pelo qual os cães também passam e são transformados em “armas”), às palavras do pai que tiram Megan do ostracismo, como se ela mesma não pudesse conceber que precisaria agir para mudar as coisas, e ao consumismo. Sim! Vemos a mudança em Megan não apenas em sua persona, mas também nos bens materiais: ele troca de carro, compra uma casa e a decora como se fosse uma adulta, coisa que já era, mas que vivia como uma adolescente dentro do drama de pais divorciados há tempos. Os perrengues da guerra, que todo soldado enfrenta, e os quais deixam marcas profundas, parecem também superados no encontro com o verdeiro estilo de vida americano para tudo entrar nos eixos.

BESTAS PROFUNDAS

Enfim, uma fala da diretora de Megan Leavey me chamou muito a atenção. Nessas séries de entrevistas que os diretores e atores dos filmes dão aos jornalistas que se intercalam por horas e horas, Gabriela diz que os cães são “bestas” muito profundas. No dicionário de inglês Essential english dictionary, da editora Martins Fontes, a primeira acepção se refere a animais, especialmente os grandes e selvagens para depois indicar que se você chamar uma pessoa de besta, a sua intenção é dizer que a pessoa é cruel, malvada ou egoísta. Ora, me parece que, na real, essas acepções definem melhor o ser humano e não os cães, não?

🎞️ Cinema: Megan Leavey (2017)
Questionamento sobre o uso dos cães
4
Dilemas de humanos e cães
5
Efeitos da cultura militar
5
Em comparação com outros filmes do mesmo gênero
4
Pontos positivos
Resgata uma história real
Burocracia problemática
Dirigido por uma mulher
Pontos negativos
Momentos clichês
Sem contexto histórico
Dicotomia de bem vs mal
4.5