🎙️ Podcast Saber Animal #001 – Caça

Caçador observa leão enjaulado. O leão também observa o caçador.
Foto: Brent Stirton / Getty Images

No episódio de hoje falamos sobre a CAÇA, que é um dos temas que faz parte da exploração animal e que também é combatida pelos ativistas em defesa dos animais. A nossa abordagem aqui no Saber Animal, naturalmente também envolverá a questão ambiental em alguns momentos, porém o nosso olhar é especialmente voltado para a defesa dos interesses e direitos animais.

1ª parte: abordamos a caça na pré-história.

2ª parte: falamos da caça na sociedade atual e assim trazemos um panorama do que era a caça e o que ela se tornou.

3ª e última parte: falamos do documentário Safari que aborda a caça na Namíbia de um modo peculiar.

Por que caçar? Teria algum sentido a caça? Quais são os tipos de caça? O que diz a lei sobre a caça? Essas são algumas das perguntas que ao longo do episódio buscamos esclarecer.

Apresentação: Vanice Cestari / Edição: Fabio Montarroios. Produção: Vanice Cestari / Roteiro: Fabio Montarroios e Vanice Cestari.


PRIMEIRA PARTE

CAÇA NA PRÉ-HISTÓRIA

Caçadores:

Paleolítico 2.5 milhões – 10.000 a.C.

Mesolítico 13.000 – 9.000 a.C.

Neolítico 5.000 – 3.000 a.C.

Invenção da agricultura e domesticação dos animais 10.000 a.C.

Caçar é ancestral. Nossos antepassados (que habitaram a Terra há milhões e milhares de anos atrás), na Idade da Pedra (e o nome é este para o período em que se começa a fabricação de instrumentos de pedra), caçavam para sobreviver e isso é inegável pelo que se pode encontrar nos diversos registros fósseis espalhados pelo mundo. Não à toa, a nossa espécie era classificada como caçadora-coletora até o advento da agricultura (há não muito tempo: apenas 10 mil anos). Mas antes de sermos caçadores de grandes animais, algo que só ocorreu por volta dos 400 mil anos atrás, com grandes caçadas coletivas que envolviam homens, mulheres e até crianças, passamos de primatas onívoros (apesar da existência de primatas exclusivamente herbívoros, como alguns dos australopitecos, que viveram há mais de 2.5 milhões de anos) que comiam vegetais, pequenos animais, insetos, frutas etc, para necrófagos (que são aqueles que se alimentam de animais mortos), como os homo habilis (que viveram entre 2.2 milhões e 780 mil anos atrás) fizeram, mas já, claro, estes últimos dispondo de meios e técnicas para cortar e destrinchar e chegar até o tutano dos ossos das carcaças (depois que os grandes e pequenos predadores mais fortes e numerosos já tinham se servido, diga-se).

É impossível saber ao certo, mas o que se consolidou acreditar é que o cozimento de alimentos (de origem animal e vegetal) à grande expansão do cérebro humano do homo erectus (1.8 milhões de anos atrás) até o homo sapiens (100 mil anos atrás), na verdade, inclusive aumenta nossa dívida com os animais por termos nos beneficiado deles como alimentos dentro daquelas circunstâncias específicas, porque não só ao fogo e ao consequente cozimento de alimentos conseguimos mais proteínas, mas à própria existência de uma sorte de animais que foram presas de nossos ancestrais e os alimentaram em tempos, provavelmente, de escassez e grandes perigos, pois o homem também era uma presa fácil nesse ambiente, a despeito de suas inegáveis habilidades, capacidades e potencialidades.

Os animais, àquela época, eram selvagens, não havia domesticação alguma, capturá-los, portanto, era uma tarefa árdua e complicada. E, ao nos tornamos caçadores de animais de grande porte, provocamos ainda a eliminação de outras espécies conforme havia aumento populacional de humanos. Foi assim, por exemplo, que as megafaunas da América do Norte e da Austrália foram extintas conforme haviam essas migrações e expansões!

O autor Steven Milthen, no seu livro A pré-história da mente, defende que apenas uma alimentação rica em carne animal poderia ter dado ao cérebro humano a capacidade que ele viria a ter, mas baseando-se no fato de que a alimentação humana por carne é detectável nos fósseis (em ossos carbonizados encontrados em sítios arqueológicos) diferentemente da alimentação por vegetais que não deixou vestígios. Outros autores indicam que novas tecnologias permitem identificar o que comíamos com mais precisão, mas não me deparei com esse tipo de informação, então, não é algo tão claro, pelo menos pra mim ainda. Valem estudos posteriores para esta questão.

De todo modo, a ingestão de carne foi um fator importante na evolução humana, mas mais que isso, reforço que COZINHAR teve mais impacto nesse processo, conforme diz o autor Richard Wrangham, no livro “Pegando fogo: porque cozinhar nos tornou humanos”! Afinal, só assim os alimentos se tornaram seguros para serem consumidos (existiam bactérias mortais também naquela época, vale lembrar, e elas eram mortas no processo de cozimento) e, ao facilitar a digestão, já que alimentos cozidos são mais fáceis de mastigar, sobrava mais tempo para outras atividades (construir coisas, cogitar, fazer estratégias de caça, imaginar, pintar em cavernas e toda sorte de processo cognitivo, ainda que primitivo), porque comer alimentos crus (carnes e vegetais) é um processo muito demorado e difícil e não fornece tantas calorias quanto os alimentos cozidos.

O livro Histórias das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea, dos autores Marcel Mazoyer e Laurance Roudart, tem uma passagem interessante e que, eu acho, resume bem esse processo inicial do homem, que eles chamam de hominização, que durou milhões de anos e que culminou num processo, nos seus últimos lances, de intensa destruição da fauna, da flora e, agora, de todo o sistema ecológico do planeta como todos estamos podendo sentir e vivenciar em catástrofes ambientais quase cotidianas:

“(…) a hominização, ou seja, a evolução desde os Australopitecos até o Homo sapiens sapiens é uma transformação complexa, ao mesmo tempo biológica e cultural que vai se acelerando. Enquanto os progressos conquistados pelo Homo habilis são insignificantes, aqueles realizados pelo Homo erectus, durante 1.5 milhão de anos são muito mais significativos. Todavia, esses últimos parecem ainda pouco importantes diante do que fez o Homo sapiens neandertalense numa centena de milhares de anos. Porém, é finalmente o Homo sapiens sapiens que assistiremos, durante os 40 mil últimos anos, a uma verdadeira explosão técnica e cultural.

A hominização aparece antes como o fruto de um trabalho. Isso significa que, geração após geração, as populações de hominídeos multiplicaram os esforços para criar os meios e explorar mais intensamente e mais amplamente diferentes meios. Algumas conseguiram assim conquistar os mais vastos territórios e a crescer mais que os outros; de modo que, após certo tempo, essas populações mais ‘avançadas’ e mais numerosas puderam absorver biológica e culturalmente as minorias ‘atrasadas’.

A hominização é, portanto, ao mesmo tempo uma evolução e uma história. Os progressos biológicos de uma espécie condicionam seus avanços técnicos e culturais ulteriores, mas, em contrapartida, a herança técnica e cultural de uma espécie constitui uma espécie de meio humanizado, historicamente constituído, que condiciona sua evolução biológica futura. Assim, de uma espécie de hominídeos à outra, o aumento da população e o enriquecimento de sua bagagem técnica e cultural multiplicam as chances de inovações, que vão acelerando-se e que, para cada espécie, se concentram no fim de seu período de existência.”

E uma coisa interessante que ainda vale acrescentar aos primórdios da caça e dos caçadores: os animais e as caçadas representados pela arte rupestre em várias partes do mundo determinam, sem dúvida, a importância da caça e dos animais para os humanos daquela época. O que podemos ver como arte também poderia ser (por que não?) indicações claras de como caçar, quais animais NÃO caçar, além, claro, do sentido espiritual que aquelas pinturas podem nos inspirar nos dias de hoje. Aqui no Brasil mesmo, vejam só, há 12 mil anos, as pinturas rupestres indicam que elas também eram feitas por grupos de… caçadores.

Referências:

Livros

  • Histórias das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea. Por Marcel Mazoyer e Laurance Roudart.
  • Sapiens: uma breve história da humanidade. Por Yuval Noah Harari.
  • Pegando fogo: por que cozinhar nos tornou humanos. Por Richard Wrangham.

Filmes

  • A Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010), de Werner Herzog.
  • Walking with Cavemen (2003), BBC.

SEGUNDA PARTE

CAÇA NA SOCIEDADE ATUAL

Na sociedade contemporânea, a CAÇA ocorre por motivos variados: para auferir lucro, pra pesquisa, pra subsistência, por diversão e também pra satisfazer o desejo de matar. De certo modo, também podemos dizer que a CAÇA está intimamente ligada ao massacre de animais para consumo da carne. A escritora americana Carol Adams, em seu livro A Política Sexual da Carne relaciona a violência contra a mulher (especialmente a objetificação, o estupro e o assassinato) com a violência dirigida contra os animais e também apresenta ligações bastante interessantes sobre a caça, a guerra e o consumo de carne, em análise de obras literárias dos séculos XIX e XX.

Numa dessas passagens, Carol Adams cita uma frase do britânico Henry Salt, um dos pioneiros dos direitos animais, que é a seguinte: “se o homem mata as raças inferiores para ter comida ou por esporte, ele estará disposto a matar a sua própria raça por hostilidade. Não é esse banho de sangue ou aquele banho de sangue, que precisa parar, mas todos os banhos de sangue sem necessidade – toda imposição gratuita de dor ou morte aos nossos semelhantes”.

É a ideia do front expandido conforme propõe Carol Adams. Essa correlação se faz presente com a ampliação da ideia da frente onde ocorre uma matança injustificável, deplorável. Nesse contexto, tanto a CAÇA quanto o consumo de carne são exemplos da guerra que travamos contra os animais. E por que não contra nós mesmos, já que também somos animais. A caça recreativa não deixa de ser um treino para as guerras humanas, logo contestar a caça (assim como contestar o consumo de carne) é o mesmo que contestar um mundo em guerra.

Para nós, humanos, a caça só é possível mediante o uso de equipamentos que possibilitem matar e desmembrar um animal.

O filósofo grego Plutarco em seu ensaio “sobre o consumo da carne” diz o seguinte para as pessoas que se acham carnívoras: “então, para começar, matem vocês mesmos o que querem comer – mas façam isso vocês mesmos, com as suas próprias armas naturais, sem usar faca de açougueiro, machado ou porrete”. E continua “Não tem bico curvado, não tem garras afiadas, não tem dentes pontudos”.

Fato é que somos desprovidos de meios corporais pra caçar um animal e para desmembrar o corpo desses animais, precisamos de equipamentos.

Os povos indígenas caçam para consumo próprio, sendo a caça de subsistência permitida por lei, na medida em que não causa impacto significativo na reprodução e sobrevivência das espécies e ecossistemas, porém conforme observa a Ong ambientalista Salve a Selva, com o aumento da caça furtiva, que é a caça ilegal, proibida e predatória, cada animal vivo conta para a manutenção da biodiversidade.

Em alguns países da África e da Ásia, a caça furtiva é um sério problema que vem se agravando ao longo do tempo. 

Caça ilegal (caça furtiva ou proibida)

Geralmente é praticada para fins comerciais e também pra diversão. São vítimas dessa prática os primatas (chimpanzés, gorilas), os felinos (tigres, leopardos) e muitos outros animais como elefantes, rinocerontes, búfalos, antílopes, aves, dentre outros. A carne de caça, a carne dos animais selvagens (chamada de bushmeat no mercado) é considerado uma iguaria. É oferecida em restaurantes caros e luxuosos de diversos países.

A caça ilegal alimenta esse mercado que também se expande devido ao estímulo das indústrias – já que elas tem interesse na exploração das áreas onde vivem os animais (parques e reservas ambientais) e essas indústrias acabam tendo como aliada a pobreza da população local que vê nessa predação e na caça de animais uma forma de obter algum dinheiro e também algum alimento. Os Estados são permissivos.

Muitos desconhecem que nós, humanos, nos beneficiamos com os animais vivos na floresta e em seus habitats naturais porque eles desempenham uma importante função ecológica. Sem animais selvagens não haverá floresta. E sem florestas, a existência humana estará em risco.

Então, essa ideia subjacente que nós, humanos, podemos comer os animais, se não vemos nada de errado nisso e se continuamos a encarar como um fato natural, se fizermos o que bem entendermos com a vida do outro sob um argumento qualquer, por exemplo, o de que estaríamos no topo da cadeia alimentar conforme dizem alguns aficionados por carne, sem dúvida, legitima a caça de animais e o assassinato cruel de qualquer ser vivo. Basta alegar um motivo qualquer e cada um terá o seu.

Os primatas, cuja carne também é vista como iguaria, sofrem com a caça mesmo quando não são eles os alvos da perseguição ficando presos em armadilhas e, pra se soltarem, acabam se mutilando e perdendo seus membros.

No Parque Nacional Virunga (localizado na República Democrática do Congo) há uma tensão permanente devido a conflitos entre caçadores e os guardas do parque que protegem a natureza e os animais com a própria vida, além da presença de milícias, grupos armados locais e empresas que querem explorar os recursos naturais do parque (madeira, carvão, petróleo etc).

Subornos e corrupção também favorecem a caça furtiva, além de que grupos de caçadores se organizam internacionalmente e ainda que sejam pegos, as penas dos países de origem são muito pequenas.

Além da carne de caça vendida como iguaria, alguns animais são caçados e mortos para o comércio de algumas de suas partes, como o marfim dos elefantes que é empregado nos mais diversos objetos; artefatos com dentes e unhas de onças-pintadas; ossos de tigres e leopardos conforme dita a medicina tradicional chinesa; chifres de rinocerontes também para o mercado asiático, onde acredita-se que servem no tratamento de variados males e doenças como reumatismo, dor nas costas, febre, fraqueza, paralisia muscular, câncer ou ainda para elevar a potência sexual. Tudo baseado em crendices estapafúrdias, sem NENHUMA comprovação científica e, convenhamos, ainda que houvesse, nenhum animal deveria perder a própria vida, ser caçado e mutilado pra ser reduzido a um benefício humano – colocando-se, ainda, todo o sistema ecológico em colapso. Isso não faz o menor sentido. O chifre do rinoceronte, por exemplo, é composto basicamente de queratina, assim como a unha e o cabelo humano, mas esse comércio movimenta uma fortuna. Onde há massiva exploração econômica a crueldade se torna legal.

Existe ainda a caça ilegal de animais selvagens para o comércio da pele para atender o mercado de luxo, a exemplo dos répteis (bolsas, cintos, pulseiras de relógios, e outros acessórios), pele dos leopardos-das-neves e tigres-siberianos para casacos, pele dos elefantes para fabricação de jóias (além do uso do marfim) etc. Também são capturados vivos para serem vendidos como animais de estimação (a exemplo dos primatas) e para a indústria do entretenimento (circos, zoológicos, cativeiros em geral).

A caça ilegal também é praticada para fins recreativos. Nenhuma espécie animal está a salvo da ganância e da barbárie humana que se tornou a caça lucrativa e recreativa.

Caça legalizada

Grande parte dos leões na África do Sul vive em jaulas, criados em centros de exploração para fins comerciais: são vendidos aos zoológicos ou libertos famintos na natureza para que sejam facilmente caçados, já que são soltos num habitat totalmente desconhecido e por isso com chances mínimas de escapar, tornando-se presas fáceis para os caçadores. Esse tipo de caça induzida é chamada de “caça enlatada”, que também é comum na maioria dos estados da América do Norte, com uma diferença: os estabelecimentos estadunidenses são anunciados como “áreas preservadas para a caça” e o caçador escolhe o animal, se aproxima dele com facilidade (já que são animais criados em cativeiro, acostumados com a presença humana) e mata-se ali mesmo.

A caça legalizada é tão hedionda quanto a ilegal pois, do ponto de vista recreativo, é permitida em alguns países sob o cínico argumento conservacionista e sustentável, estabelecendo-se regras como cotas de animais por temporada e licença para a caça (quando na verdade já se demonstrou que a prática provoca a extinção de espécies – animais e vegetais – e o que a motiva é a obtenção de lucro, assim como o fomento de toda uma indústria por trás e, claro, a concretização do desejo de matar daquele que caça). Outro problema é que caçadores não seguem normas, trapaceiam e caçam em áreas proibidas ou animais não autorizados, como o caso do caçador norte-americano que ficou conhecido por ter executado o leão Cecil no Zimbábue.

Na Espanha, caçadores usam galgos (raça de cão veloz) para encurralar pequenos animais durante a temporada de caça, e esses cães depois são descartados ou mortos pelos próprios caçadores com requintes de crueldade. A caça é uma questão de negócios, uma indústria milionária. Governos e empresas lucram ao promoverem o turismo de caça, com valores para todos os bolsos e gostos. Taxas governamentais são pagas para a preparação dos chamados “troféus de caça” (que nada mais é do que o cadáver do animal empalhado – ou parte dele, como a cabeça).

Os Estados Unidos e a União Europeia permitem que se importem “troféus de caça”, incentivando essa prática cruel e sanguinolenta.

Só o turismo de caça, atividade legalizada, rendeu 83 milhões de euros à economia sul-africana em 2012, segundo estudo realizado para a associação de caçadores profissionais.

A caça também já foi a fonte principal da extração da pele dos animais vivos para vestuário, porém nas últimas décadas a maioria dos animais peludos nos Estados Unidos (e em outros países) são criados em jaulas nas chamadas “fazendas de pele” que abastece a “indústria da pele”. Guaxinins, chinchilas, raposas, linces, minks, cordeiros persas, carneiros, pele de cães e gatos na China para confecção de bichos de pelúcia, casacos, punhos de casaco, adornos de capuzes, entre outros. Os minks ainda tem seus cílios arrancados (os chamados “cílios naturais” no mercado da maquiagem), a pele do texugo também é arrancada pra fazer pincéis de maquiagem e de barbear, objetos das chamadas “cerdas naturais”. Natural o quê? A violência é natural? É isso o que um ser chamado humano, faz? A pele de um ser vivo só é natural pra ele! É a legalização da barbárie. Esses animais sofrem a selvageria do esfolamento vivos, depois de um longo processo de tortura e crueldade. Os animais capturados nas florestas muitas vezes ficam presos em armadilhas e morrem atacados por um predador natural ou então roem a própria perna pra poderem escapar, não deixando nenhuma pele para o caçador. Fatalmente animais não-alvos também são vitimados. Há muito tempo temos à disposição pelos e peles sintéticas no mercado. Por isso se faz necessária a ampla conscientização do público consumidor. O que é cruel, antiético e injusto, ainda que legal, deve ser revisto e abandonado.

Mesmo depois de todas essas exemplificações, talvez tenha faltado mencionar, ao mero acaso, alguma outra espécie que também é vítima dessa cadeia exploratória gigantesca que envolve a caça para fins comerciais. Sendo ilegal ou legal, onde há caça, há crueldade. Destroem-se os laços sociais que os animais não-humanos também compartilham entre si, causa-se dano irreparável à biodiversidade e aos ecossistemas. Matam as mães para vender seus filhos, a exemplo dos elefantes e gorilas. Os filhotes órfãos não conseguem sobreviver sozinhos, além da estupidez de se criar animais selvagens em cativeiro.

Situação da caça no Brasil / Questões políticas e jurídicas

No Brasil, a caça profissional e recreativa é proibida, mas os caçadores furtivos não respeitam as leis que protegem a fauna e tanto aqui como em outras partes do mundo, se beneficiam da falta de fiscalização.

No entanto, nós estamos vivendo um momento muito perigoso com risco de grande retrocesso em matéria ambiental no país que refletirá diretamente na defesa e na proteção dos animais.

Não é de hoje que os animais da fauna brasileira estão na mira dos legisladores da bancada ruralista e da bancada da bala, movimento que vem ganhando força desde 2016. Pra piorar esse cenário, o presidente Jair Bolsonaro foi eleito e tem dívida de campanha eleitoral com a indústria de armas e munições, além do objetivo de romper com o monopólio da Taurus em determinados mercados pra facilitar a importação de armas, já tendo flexibilizado o Estatuto do Desarmamento ao facilitar a posse de armas no início do mandato.

Não é à toa que, além do temido PL da Caça, projeto de lei nº 6.268/16 do então deputado federal Valdir Colatto (alçado ao cargo de chefe do Serviço Florestal Brasileiro!) pela Ministra da Agricultura no atual governo, mais outros 4 projetos de leis contra os animais foram desarquivados neste ano.

O projeto de lei de 2016 simplesmente visa acabar com a proteção da fauna, revogando a lei vigente. Conforme a lei que está em vigor, a de nº 5.197/67, os animais de quaisquer espécies, seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedade do Estado, sendo expressamente vedada a sua utilização, perseguição, destruição, apanha ou caça. Essa é a regra geral.

Os deputados da bancada ruralista aliados à bancada da bala querem tornar os animais bens de domínio público, ou seja, o PL de Valdir Colatto rebaixa o estatuto jurídico dos animais silvestres (inclusive dos animais marinhos sob a jurisdição brasileira, exceto os já explorados comercialmente), passando-os para a categoria de bens de interesse da coletividade, RETIRANDO A MÍNIMA PROTEÇÃO ESTATAL que hoje existe, já que os animais são propriedade do Estado. Isso é de uma baixeza, gravidade e perversidade tão grande, um retrocesso colossal no nosso sistema jurídico que vai abrir a porteira para um verdadeiro massacre dos animais silvestres. Esse PL é totalmente inconstitucional. Ele simplesmente acaba com a proteção da fauna e da flora.

Além disso, o PL 6.268/16 libera a caça profissional, possibilita caçadas em área de preservação ambiental, permite a caça quando houver superpopulação de animais, permite a caça de animais provenientes de resgates em áreas de empreendimento sujeitas a licenciamento ambiental, acaba com qualquer possibilidade de reintrodução dos animais na natureza, prevê a reprodução e criação de animais silvestres em cativeiro para fins comerciais (a exemplo das fazendas de caça norte-americanas e africanas) e para abastecer a indústria de modo geral, além de revogar o porte de armas para os fiscais do meio ambiente.

Ainda há o PL 7.129/17 (autor deputado fed. Alexandre Leite – DEM/SC) que dentre outras proposições, altera a Lei Federal de Crimes Ambientais para permitir a caça indiscriminada de animais exóticos (ou seja, animais não nativos do Brasil) além dos javalis, que forem tidos por invasores em todo o território nacional, assim definidos: animais “que ameacem ecossistemas, habitats ou outras espécies”.

Esse PL induz a população a pensar que há um descontrole generalizado de animais causando estragos no meio ambiente, na saúde pública, na fauna nativa, agricultura e etc e assim procuram reforçar os argumentos da necessidade da liberação da caça, quando na verdade a lei federal ambiental já permite, excepcionalmente, a licença, permissão ou autorização de caça amadorística, não profissional, para espécies consideradas nocivas ao meio ambiente, desde que atendidos requisitos normativos do órgão público federal (Ibama) e desde que não haja vedação constitucional dentro do estado (no estado de SP, por exemplo, a caça é proibida sob qualquer pretexto).

Outro projeto de lei também desarquivado é o PLC 436/2014 (dep. Rogério Peninha Mendonça – MDB/SC) que muda a sistemática brasileira de proteção ambiental e preservação da fauna, enfraquecendo a atuação da União por meio de seu órgão federal e passando para os estados o controle da caça, apanha e manejo da fauna mediante atos administrativos, ou seja, é um verdadeiro desmonte da política ambiental.

E como se não bastasse, como tudo sempre pode piorar nesse país em matéria ambiental e principalmente pros animais, tramita ainda o PL 7.136/2010 (autoria do deputado fed. Onyx Lorenzoni, atual Ministro da Casa Civil) que transfere pros municípios na figura do PREFEITO, a DECISÃO DE PERMITIR A CAÇA por ato regulamentar, ou seja, é a consolidação do completo desmonte da Política Nacional do Meio Ambiente, acabando de enterrar a proteção da fauna que é prevista na nossa lei maior que é a Constituição da República. Isso é de uma estupidez e irracionalidade inigualável.

Ainda que o trabalho do Ibama na gestão da fauna não seja o ideal e do ponto de vista jurídico deixa muito a desejar, é muito pior retirar a competência de um órgão público federal, técnico e especializado, e passar pro município a tarefa de permitir ou não a caça, o que vai impactar diretamente o ecossistema local, sendo que a grande maioria dos municípios não tem estrutura pra essa análise, sequer possuem departamentos especializados para a gestão e defesa da fauna. Além disso, em matéria ambiental é muito comum que o impacto ecológico se estenda para além das fronteiras do município. O prefeito, ao autorizar a caça, estará ensinando a população que a vida dos animais não vale absolutamente nada, deseduca, dá péssimo exemplo, incentiva os munícipes aos maus-tratos, ao abuso, a crueldade e a violência gratuita contra os seres vivos, contra os animais de todas as espécies.

Quero aproveitar pra frisar aqui que decretos, instruções normativas, regulamentos, atos administrativos do poder executivo e de seus órgãos não revogam leis e a lei vigente desde 1967 proíbe a caça profissional, comercial e recreativa. Em 2005 o Ibama publicou a instrução normativa nº 63 estabelecendo um programa de caça comercial ao jacaré-do-pantanal ao arrepio da lei, já que é terminantemente proibida. Já o atual governo também vem causando atropelos, como por exemplo o anúncio que acabou de fazer dizendo que vai editar um decreto para caçadores na próxima semana, sem que lei alguma tenha sido aprovada ainda. Até o momento a caça é legalmente proibida, é ato criminoso em muitas circunstâncias e continuaremos lutando para que não aconteçam esses retrocessos.

A fala de Bolsonaro tem a ver com o mais recente projeto de lei apresentado. Em fevereiro desse ano foi apresentado o PL 1.019/19 também pelo deputado Alexandre Leite (DEM/SC) que novamente menciona a liberação da caça de animais exóticos invasores, que já é tema de outro PL da autoria dele próprio e que passou a tramitar junto ao PL do Valdir Colato. Até aí nenhuma novidade, mas o deputado se refere a esse PL como se valesse só para a caça dos javalis, quando na verdade regulamenta a caça profissional e recreativa e cria o estatuto do caçador, atirador e colecionador, concedendo o direito de caça a todo cidadão cadastrado pelo órgão ambiental que terá a incumbência de estabelecer o período das temporadas de caça recreativa e a abrangência geográfica.

É importante ressaltar que os projetos de leis em questão não possuem nenhum embasamento científico e vai colocar toda a biodiversidade e manutenção de ecossistemas em risco, inúmeros princípios jurídicos ambientais foram jogados no lixo.

Tudo isso que vem por aí é muito mais do que um retrocesso jurídico, é um retrocesso civilizatório, é o aviltamento, rebaixamento moral da própria dignidade humana.

É muito triste ver o desmonte da Constituição da República em matéria ambiental, ainda mais nesse momento de crise ecológica planetária, não podemos permitir uma atrocidade dessas, precisamos nos juntar pela defesa intransigente dos direitos dos animais mais fundamentais, nos posicionarmos contra a cultura da violência, contra as armas, contra o massacre dos mais vulneráveis, contra o ataque mais perverso e tirânico dirigido aos animais, em defesa do estatuto do desarmamento e em defesa do meio ambiente natural que também é o direito humano de cada um de nós!

Referências:

BBC BrasilMedicina tradicional asiática incentiva caça ilegal de onças na Amazônia – Dez/16

Correio Braziliense Caça humana provocou extinção de pombo norte-americano, mostra estudo – Nov/17

El PaísDentista que caçou leão Cecil diz que não sabia que fizera algo “ilegal” – Jul/15

EuronewsCaça legal em África, uma questão de negócio – Jul/15

National Geographic Brasil – Episódio de Explorer: A Guerra de Virunga  

ONG Salve a SelvaCaça legal ou caça furtiva?

Livros

  • A Política Sexual da Carne. Por Carol Adams.
  • Jaulas Vazias. Por Tom Regan.

TERCEIRA PARTE

DOCUMENTÁRIO SAFARI

Agora chegou a hora de falar de documentário do diretor austríaco Ulrich Seidl, que retrata a ida de caçadores austríacos ao Leopard Lodge, um local onde a caça é legalizada na Namíbia. O diretor tentava desvendar a seguinte questão: o que leva pessoas a atirar num animal no seu tempo livre? Quais suas motivações? O documentário não dá a resposta e parece que o diretor também não tem uma… Ele só arrisca: “Eu sinto que os caçadores estão sempre procurando por uma razão, procurando por uma justificava para o que estão fazendo”.

Para mim, no entanto, a resposta pode ser: sadismo, psicopatia, alienação e um estilo de vida que não hesita em destruir tudo a seu redor. Pensando, claro, nos participantes do documentário e não generalizando, pois, conforme a psicanalista Renata Zancan, podemos observar o seguinte:

Neste verdadeiro parque de caça, os turistas pagam valores bem altos para cada tipo de animal que escolhem caçar. O filme já começa listando o preço de cada tipo de animal por intermédio de dois idosos obesos que não escondem sua indiferença e soberba. Mais à frente a gente consegue ver que se trata (pelo menos no processo de edição que o diretor nos propõe) de um casal de bufões: a mulher não caça, apenas toma sol e se bronzeia, e o marido, fica em uma cabana abrigada para caça apenas tomando cerveja e cochilando.

Aliás, li alguns relatos de pessoas que frequentaram o parque em um site de avaliações, o TripAdvisor, e um dos comentários falava da quantidade de turistas bêbados que voltavam das caçadas (o frequentador indicava que isso também era algo bem perigoso porque estavam todos com rifles nas mãos) e de como o dono do parque só parecia se importar com os hóspedes que se hospedavam para caçar. (Parece que a mulher do dono do parque, presente no documentário, o deixou). Afinal, o parque não se destina apenas a essa função: é local para casamentos, lua de mel e também para safaris sem matança, só de observação. É um lugar para todos os gostos e para todas as indiferenças.

Separei algumas falas dos entrevistados. São curiosas e também bizarras, porque seguem no mesmo caminho: indiferença e justificativas tolas para matar. Temos um jovem casal, um casal mais experiente e os dois idosos já citados. Os donos do parque e os turistas são todos brancos. Os funcionários, com exceção do orientador de caça, são negros e, propositalmente, não tem voz ativa no filme todo. Só os vemos falando, entre eles, apenas quando fazem o serviço sujo: remover a pele dos animais caçados. Fora dessa situação, vê-se a pobreza dos funcionários que habitam casebres, a função quase ornativa que eles também parecem ter nas salas com vários animais mortos empalhados, que também parecem nos observar, como eles próprios, troféus do capitalismo, e comendo a carne da caça, dispensada pelos caçadores, interessados mais na pele. A cena em que eles destrincham uma girafa e uma zebra são brutais, cenas de matadouro mesmo, para mais à frente, vê-los comendo, também em silêncio, quase como os antigos humanos necrófagos, nossos ancestrais, comendo depois que os grandes predadores, no caso os austríacos brancos, já tinham ido… Os brancos, aliás, ficam com as valiosas peles dos animais.

No filme, depois das caçadas covardes, os caçadores posam com suas “peças”. Mas nessas fotos, depois (e isto não está no filme, é algo que o diretor conta numa entrevista), eles apagam digitalmente o sangue nos animais que jorra após um tiro com munição de grosso calibre. Os animais não tem morte instantânea… Numa cena em particular, mesmo que todas sejam bem cruéis, é possível ver uma inocente girafa tendo seus últimos momentos depois de ser atingida à distância… Os caçadores esperam o animal morrer para se aproximar (afinal, não devemos perder de vista, todos são covardes), parecem ter medo da reação que o animal ainda possa ter, e dizem coisas como “você foi brava”. Não, ela não foi brava, ela só estava se alimentando e por já estar habituada com a presença humana, não foge e é um alvo ainda mais fácil que animais livres das cercanias do parque. Simplesmente não há outro nome para isso se não COVARDIA.

Vamos às falas:

“O ato de matar é apenas parte disso, junto com várias outras coisas. É uma pequena parcela da caça. Com tudo que vivenciamos o ano todo na natureza enquanto caçamos, matar é apenas uma pequena parcela disso.”

“Se a caça ocorre sob condições controladas, é legítima e viável. Principalmente se, como aqui, em um país emergente, o povo lucra com isso. Caçadores gastam mais em uma semana do que um turista comum em dois meses. É algo que beneficia a todos.”

“Caçar não é atirar aleatoriamente, indiscriminadamente nos animais. Na verdade, é uma libertação para eles. Os mais velhos, por exemplo. Ou os enfermos, ou… De fato, estamos ajudando na propagação dos animais, para que possam sobreviver e procriar.”

“Eu não uso a palavra ‘matar’. Digo ‘apanhar’. Soa melhor. Matar algo não é… O assassinato em massa de… Para mim matar é o que fazem nos abatedouros. Eu acho… pessoalmente me incomoda muito. Eu não preciso me justificar. Por que deveria me justificar? Por quê? Não está escrito, não há lei. Por que devo explicar o fato de matar um animal às vezes?”

“Eu me recuso a pegar leões, leopardos e chitas. Simplesmente não posso. Por quê? – Eu não atiraria em um leão. – Por quê? Não sei. Há tão poucos, pelo o que ouvi. Um búfalo. Para mim esse é o mais belo troféu africano. Um búfalo-africano. Mesmo? Como são chamados, dagga boys? Sim, um velho e poderoso búfalo-africano. Eu me interessaria por um elefante. Por conta das dimensões. É inconcebível. Uma loucura. É grande demais. Para mim, ao menos. Não sou experiente. Não estou pronta.”

“Depois de atirar, no começo, é como… Soltar uma respiração profunda. E olhar ansiosamente para a peça e ver o que faz. Para ver se o tiro foi bom ou não. Então várias emoções afloram. De todos os tipos. Apenas afloram. Ou alegria, quando vimos que o tiro foi bom. Ou ansiedade e dúvida, se o vimos fugindo. Depois de atirar, fico acabada, completamente esgotada. Meus joelhos e mãos tremem. Mal posso segurar meu rifle. Ficamos tão acabados, é terrível. A tensão só vai embora quando encontramos a peça. Quando vejo o animal na mira, mal posso respirar. Eu respiro fundo. Você inspira. Faz de forma consciente para aliviar a pulsação. É algo que se aprende. Continuamos olhando e ficamos calmos. Nos desligamos de tudo ao redor. Não ouvimos nada. Vimos apenas aquilo, e não se ouve nada. Apenas você e a coisa. Quando a peça de repente some, é bastante excitante. Não a enxergamos. Será que caiu, ou fugiu? Esse é um dos fatores que… me agita, me deixa nervoso. Sei como se sente. Ficamos calmos quando vimos que está morto e que o tiro foi limpo. É uma sensação boa, porque para mim é uma prioridade finalizar a peça de forma limpa e que morra o mais rápido possível.”

“A vida nos é hipotecada. Mesmo que eu pague, ainda não possuirei minha vida. Tenho que devolvê-la. Se eu for religioso, digo que devolvo a deus, ou a alguma outra autoridade, ou universo. Dá no mesmo. A vida é finita. Devemos vivê-la de acordo com isso. Devemos agir de modo… responsável como o nosso Meio Ambiente, com os seres humanos, e acima de tudo com o nosso reino animal. Porque, de fato, nós humanos, estamos no topo da pirâmide e somos dispensáveis. Se desaparecermos, provavelmente seria melhor para o planeta.”

Essa última fala é do dono do parque… E parece refletir o que uma pessoa consegue obter ao conviver e fomentar esse tipo de atividade: um total vazio existencial.

O diretor ainda ressalta que as pessoas que veem o filme, as que são caçadoras, concordam com o documentário (e, particularmente, eu acho que eles não veem a ironia na edição), e os que são contra caça também apoiam o documentário, vendo como uma forma de denúncia. Ele também não bota muita fé que seu filme mude a indústria dos troféus de caça, mas acredita que ele tem, sim, impacto nas pessoas que se preocupam com os abusos contra a natureza.

O diretor diz:

“Olhando para o quadro geral, nós temos que nos perguntar onde a humanidade está e onde estaremos e quanto mais a nós ainda abusaremos da natureza. Eu acho que caçar é apenas um símbolo de um grande processo em andamento. Nós estamos cavando a nossa própria cova e isso me faz pensar bastante.”

Sinopse do documentário: Um retrato brilhante e perturbador da natureza humana. Viaje pela savana africana seguindo turistas em suas viagens de férias caçando animais, alguns em busca de troféus, outros apenas diversão. O que os motiva?

Para alugar no Youtube, com legenda em português.

Referências:

Críticas

Magazine HDSafari, em análise

CNNInside the dark world of trophy hunting

The GuardianSafari review: Ulrich Seidl turns horror lens on real-life African tourist hunters

Músicas:

Instrumental 2 (Welcome To The Caveman Future) – All Them Witches.

Blood Theme – Daniel Licht.

Shadow – Ernst Reijseger, Nederlands Kammerkoor.

Que País É Este – Legião Urbana.