🖊️ Criação de animais como patrimônio cultural do Brasil? Nem tudo está perdido!

Bumba meu boi do Maranhão, por exemplo, é patrimônio cultural imaterial, bem diferente do que parlamentares pretendem fazer com a criação e reprodução de animais mediante o PL 318/21.
Bumba meu boi do Maranhão, por exemplo, é patrimônio cultural imaterial, bem diferente do que parlamentares pretendem fazer com a criação e reprodução de animais mediante o PL 318/21.

De modo genérico e sucinto, a cultura é um direito fundamental e no ordenamento jurídico está relacionada nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal, dentre outros. Neste terreno, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) é uma relevante entidade de âmbito nacional que traz uma série de mecanismos e regramentos para a ampla proteção dos direitos culturais humanos no Brasil.

O IPHAN é uma autarquia federal que foi criada pela lei nº 378 no ano de 1937 e nesta condição possui autonomia administrativa e financeira, estando atualmente vinculada ao Ministério do Turismo (como se sabe, a extinção do Ministério da Cultura se iniciou em 2016 por Michel Temer, vindo a finalizar em 2019 no governo Bolsonaro).

Em sintonia com o atual Executivo Federal e como não é de se estranhar, deputados federais costumam agir sem a menor coerência fática e jurídica quando seus projetos envolvem, ainda que indiretamente, a temática animalista ou no máximo, é aquela velha perfumaria jurídica que protege animais para inglês ver.

Quando a intenção é legislar na proteção seletiva de animais, vale lembrar o que já demonstramos em outras oportunidades por aqui no Saber Animal: há tempos, todos os animais estão legal e constitucionalmente amparados no Brasil (o que está sempre em risco, assim como alguns direitos humanos e o direito ambiental) e inúmeras decisões judiciais, algumas de notório conhecimento público, estão aí para nos lembrar. Agora, o uso ou modo como usam tais dispositivos na atualidade é uma outra história.

Mais do que possa parecer aos olhos de um leigo ou de um ativista animalista / vegano que atua em outras frentes ou em outras áreas do conhecimento, dispomos de muitos instrumentos legais que seguramente dispensam novos projetos de leis demagogos ou com baixíssima efetividade prática para beneficiar ou libertar um grande número de animais.

Para orientar o ativista ao se deparar com um projeto de lei qualquer que seja voltado à defesa animal, proponho que se indague, basicamente, qual é o pano de fundo que se apresenta: a ideologia abolicionista ou a ideologia bem-estarista; a defesa de “pets” (termo especista porque vinculado à ideia de mercantilização) ou a defesa dos direitos animais na amplitude de seu termo.

Enfim, antes de adentrarmos no assunto que me traz aqui (PL 318/21), vale lembrar que garantir (ou buscar garantir) direitos aos animais, na esfera jurídica, demanda muito mais habilidade retórica e aprofundamento do profissional do Direito, sem dispensar o desafiante enfrentamento de questões sociais, econômicas, culturais, educacionais que transcendem as ciências jurídicas, do que mera e isolada atividade legislativa que “resolva” injustiças contra os animais num passe de mágica.

PL 318/21: a criação de animais como patrimônio cultural imaterial do Brasil

O Projeto de Lei nº 318/21 é um exemplo de proposta que se relaciona com o direito animal (e não simplesmente um PL da bancada ruralista), pois não podemos ser ingênuos a ponto de achar que quando incentivamos projetos de leis em benefício dos animais em uma esfera de governo (e particularmente nesse) não entrará nessa mesma equação projetos de leis em prejuízo dos animais ou que violem direitos animais. Quando consideramos um contexto mais amplo, podemos nos orientar sobre qual a proporção ou a chance de termos leis melhores ou piores para os animais, por exemplo, a partir de nossas ações. Essa dinâmica, no mínimo, precisa ser compreendida, o que chamo a atenção desde a famosa Carta Política Animalista.

Vivemos em um sistema antropocentrizado em todas as instituições e negar esse fato é arriscar o pouco que já foi duramente conquistado no âmbito jurídico em proveito dos animais. A cada pedido de criação de novas leis (ou o seu apoio) com total ausência ou insuficiência de juízo crítico a esse respeito, é mais um tiro não no próprio pé, mas mais um tiro fatal nos animais que seguem “aguardando” a sua libertação.

Com isso não estou dizendo que o projeto de lei em questão é de única responsabilidade de um grupo ou de quem quer que atue no movimento pelos direitos animais, mas que também é uma consequência desse movimento, dentre outras questões, é claro, e então talvez possamos nos comprometer um pouco mais acerca de nossas responsabilidades enquanto ativistas animalistas abolicionistas.

O PL nº 318/21 ao declarar a “criação de animais patrimônio cultural imaterial do Brasil”, se aprofunda um pouco mais naquilo que já impregnaram na Constituição Federal através da emenda nº 96 de 2017, cuja análise da (in)constitucionalidade ainda está pendente de julgamento no STF, isto é, na “supressão da crueldade” quando se utiliza de animais para a prática de manifestações culturais (atenção: não se restringe às vaquejadas) e que sejam registradas e protegidas como de natureza imaterial, integrando assim o patrimônio cultural brasileiro.

Observe que a alteração constitucional (emenda 96/17) dispõe que todas as manifestações ditas culturais que utilizam animais são passíveis de proteção como patrimônio cultural e o PL 318/21, se aprovado, vai no mesmo sentido ao afirmar que também a criação e reprodução de animais é considerada patrimônio cultural brasileiro. Será que isso é possível?

Antes de partirmos para a análise central dessa situação, perceba que, paulatinamente, a urdidura habilmente vai se formando com os fios que estão dispostos por todo o tear do ordenamento jurídico, exatamente por aqueles que intencionam garantir a perpetuação da escravização dos animais. E assim, cada vez mais firme vai-se amarrando a concepção utilitarista dos animais pelo Legislativo e Executivo bem debaixo de nosso nariz. Enquanto isso, teses jurídicas que fundamentam e reafirmam o bem-estarismo, como a que define os animais como entes despersonificados e outros pormenores que não formam as estruturas para o fim da exploração dos animais entram em cena como uma grande novidade.

Nem tudo está perdido

Voltemos ao IPHAN. Assim como essa instituição não procedeu nenhum registro sobre a vaquejada ou outras práticas violentas com animais como manifestação cultural brasileira, muito provavelmente também não o fará com relação a mais um projeto de lei federal, ainda e, principalmente, que seja sancionado. Como citei no início do texto, destaca-se a autonomia dessa instituição.

Em 16 de março deste ano, o Saber Animal entrou em contato com o IPHAN, via e-mail, solicitando esclarecimentos acerca de eventual posicionamento da entidade sobre o PL 318/21 e a resposta que recebemos da Coordenadoria do Departamento do Patrimônio Imaterial foi a seguinte.

Resposta do IPHAN: "Até o momento, o Iphan não possui informações sobre o projeto de lei mencionado, de modo que o Departamento do Patrimônio Imaterial do Iphan não tem um posicionamento específico sobre ele. No entanto, em casos semelhantes, em que bens culturais são declarados Patrimônio Cultural do Brasil pela via legislativa, há o entendimento de que tal ato declaratório não vincula a atuação do Iphan, ou seja, não obriga o Instituto a ter uma atuação sobre o bem".

A resposta não decepciona. No estado democrático há a separação de poderes, os quais atuam (ou devem atuar) de maneira independente e harmônica entre si, o que neste caso significa que o Legislativo não pode se imiscuir na esfera do Executivo (e vice-versa), além de que a meu ver é completamente incabível a aplicação de todo o regramento preservacionista de bens e patrimônios culturais (que se dá mediante ato de registro, inventário e tombamento) para uma atividade econômica perniciosa em diversos aspectos e que não traduz a cultura de povos ou grupos sociais, mas somente de empresários, pois a tal “defesa do homem do campo” tão propagandeada pelo governo Bolsonaro e aliados não passa de um tipo de disfarce que encobre os desmandos, ilegalidades e brutalidades do agronegócio.

Outro ponto importante é que as culturas humanas também passam por transformações ao longo do tempo, não são valores imutáveis e o uso de animais em eventos específicos para entretenimento (vaquejada, farra do boi, pega do porco, brigas de galos e cães, dentre outros) já tem sido cada vez mais rechaçado pela sociedade brasileira, assim como o uso da tração animal. Atualmente também é crescente a oposição quanto a comercialização de animais, tanto domésticos quanto silvestres, especialmente pelo alto índice de maus-tratos e abandono que são inerentes a essas atividades mercantis e ainda o prejuízo ambiental no caso dos silvestres.

No início deste artigo citei a Constituição Federal, mas não só ela trata dos direitos culturais. Os direitos culturais humanos também são informados por normas de Direito Internacional e isto deve ser considerado como mais um excelente argumento para buscarmos invalidar eventuais decisões e leis sem nexo, bizarras, que venham a ser proferidas ou sancionadas.

A Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (UNESCO, 2003) foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro em 2006 e arremata a compreensão de patrimônio cultural imaterial com o seguinte ajustamento.

“Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos e do desenvolvimento sustentável”.

Só por este pequeno trecho acima destacado, podemos constatar que tanto as manifestações culturais que se revestem, por sua própria natureza, da crueldade com os animais, quanto a criação e reprodução de animais para exclusivos fins econômicos (atividades insustentáveis), contrariam este acordo internacional que reúne as balizas sobre direitos humanos culturais. Sendo assim, tais atividades não podem existir (ou se “transformar” mediante lei) em patrimônios culturais no mundo dos fatos e do direito.

Como podemos ver, esse tema é multifacetado nas questões de cultura, meio ambiente, direitos humanos e direitos animais, as quais o Brasil obrigatoriamente deve observar, pois o respeito entre grupos e indivíduos certamente abrange a relação entre seres humanos e animais não humanos nos moldes da nossa Constituição Brasileira.

Nesse sentido, o Bumba meu boi do Maranhão, por exemplo, foi reconhecido como patrimônio cultural imaterial da humanidade por estar em conformidade com os conceitos ajustados na citada convenção, tido por uma “mistura de devoção, crenças, mitos, alegria, cores, dança, música, teatro e artesanato, além dos diversos estilos de brincar”, onde observamos que não há uso de bovinos ou outros animais não humanos vivos na festividade.

Como se não bastasse, em 1977 o Brasil também ratificou (aderiu) em seu ordenamento interno a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural (UNESCO, 1972), onde são considerados como patrimônio cultural os monumentos, os conjuntos arquitetônicos e sítios, tais como os sítios arqueológicos.

Então eu te pergunto: o que toda essa base jurídica tem a ver com as práticas de criação e reprodução (exploração) de animais? Absolutamente nada. A iniciativa parlamentar não se justifica, embora se compreenda.

Pois então, agora voltemos à leitura do PL 318/21, bem como do § 7º do artigo 225 da Constituição Federal (incluído pela questionável emenda 96, também conhecida como “emenda da vaquejada”) e veja você mesmo o quão surreais são esses textos quando comparados com o sistema legal vigente de preservação dos direitos culturais humanos em âmbito nacional que vigora desde o início deste século, pelo menos.

E por falar em leis e mais leis, não me resta dúvida que algum parlamentar em “defesa animal” proponha outro PL tão estapafúrdio quanto esse PL 318 com a promessa, ainda que tácita, de “anular” o que sequer virou lei e que, no fim das contas, nada acrescenta para melhor ou pior. A incompetência parlamentar, no duplo sentido, é tanta (seja para prejudicar ou beneficiar os animais) que em certos momentos acaba dando na mesma, com lei ou sem lei, nenhum dano maior, nenhum efeito prático. Menos mal…

Por ora, a criação e reprodução de animais ainda continuarão a existir no plano dos fatos (mas não como patrimônio cultural imaterial, no plano jurídico) – percebe a diferença? E o Poder Legislativo não mudará isto sozinho.

Nesse cenário, não posso deixar de observar que no ativismo abolicionista, lançar mão de argumentos superficiais à exaustão pode não ser eficaz para os fins almejados que é, espera-se, a defesa dos direitos animais. Todo projeto de lei está encadeado em uma série de outros fatos e eventos, de maior ou menor complexidade que, na medida do possível, também podem ser vistos e ponderados.

Nem todo projeto de lei aparentemente desfavorável aos animais se resume a um retrocesso ou desmonte. O mesmo se aplica aos projetos de leis aparentemente benéficos: nem sempre valem o dispêndio de energia.

Em minhas pesquisas sempre noto que, na grande maioria das vezes, excelentes e arrebatadores argumentos não faltam em favor dos animais… é de fundamental importância que mais ativistas comecem, a seu modo, um processo mais investigativo e proativo para além da sua zona de conforto (dieta vegana, imagens de matadouros, apoiadores de políticos, memes etc) se realmente intencionamos contribuir mais para a libertação dos animais. Ou que pelo menos saibamos filtrar as “verdades absolutas” que chegam até nós, inclusive os argumentos de autoridade. Também podemos espalhar e compartilhar informações com maior critério e responsabilidade. Essas são as posturas aceitáveis de quem se diz abolicionista animalista, pelo menos para mim.