Belle viveu conosco por 11 anos, a adotei com um mês de vida e logo depois, quando chegou o tempo certo, foi castrada. Esse foi o único serviço público que ela utilizou, em uma clínica veterinária conveniada com a prefeitura de São Paulo, além da chipagem obrigatória realizada no mesmo dia.
Quando a adotei em um petshop, ela já estava sem a sua mãezinha, já havia sido separada muito precocemente dela, não foi amamentada, bem fragilzinha.
Ao longo da sua vida, precisou passar inúmeras vezes em clínicas veterinárias e laboratórios, realizar diferentes tipos de exames médicos, precisou de medicamentos diversos, pois sempre haviam probleminhas de saúde aparecendo, era tal como cuidar de uma criança com a saúde debilitada. Não fizemos plano de saúde pra ela, na época não se falava disso, não conhecíamos e até então também não eram despesas exorbitantes, embora constantes. Ainda assim, Belle cresceu muito amada e sendo bem cuidada, se tornou uma gatona linda, grandona, muito fofa, divertida, meiga e curiosa. Sempre recebeu muito afeto, a melhor ração, bebia muita água, ela amava. Também amava petiscos saudáveis como frutinhas e verduras.
Quando completou 8 anos e alguns meses surgiram questões de saúde muito mais complexas: luxação na patela, que ocasionava dificuldade e dor ao caminhar, quando foi encaminhada para médicos especialistas, fez fisioterapia, depois desenvolveu sarcoma no pé (no mesmo membro) que foi descoberto depois de uma biópsia (procedimento cirúrgico) cuja recuperação foi bem dolorida pra ela e trabalhosa para nós… depois veio a necessidade de uma cirurgia mais agressiva (amputação da perna esquerda) e todos os cuidados posteriores que uma situação como essa requer… felizmente, em casa pudemos acompanhá-la com revezamento e assim foram novos dias de cuidados intensivos e muitas noites mal dormidas. Às vezes eu me perguntava (e ainda me pergunto): como ficam os animais necessitados de cuidados médicos intensivos que são tutelados por pessoas que trabalham o dia inteiro fora de casa e não podem acompanhá-los? Se fosse uma criança humana não haveriam tantos obstáculos, afinal existe todo um sistema social e legal que as amparam, o que não acontece com os animais.
Passados dois meses de sua recuperação, quando já estava se adaptando sem a perninha, certo dia não conseguia mais se levantar. Novas consultas, novos exames e um novo diagnóstico foi realizado, onde se constatou que ela tinha displasia coxofemural na outra perninha e também processos degenerativos nas articulações de todos os membros, ombros, braços, antebraços e também em parte da coluna. Felizmente ela também pode fazer acupuntura semanalmente desde que soubemos dessa nova condição de saúde que, por sua vez, desencadeou dor emocional nela e que implicou em outras questões de saúde, o que levou a novos cuidados diários e constantes.
Quase um ano após esses últimos quadros mais graves, ela partiu (hoje completou um mês), mas não devido a essas questões e sim, supostamente, por um novo tipo de câncer que sequer deu tempo de ser diagnosticado (leucemia mieloide), recebendo até o último instante de sua vida todos os cuidados médicos.
Dessa vez o corpinho dela não aguentou e percebemos que os sintomas que ela tinha devido ao seu estado geral de saúde (perda de apetite, depressão, processos inflamatórios, tosse) acabaram mascarando essa provável doença agressiva que a levou rapidamente. Com o tempo ela se tornou cada vez mais forte, espiritualmente falando, acompanhado de seu jeitinho dócil e extremamente amoroso.
Nesses três últimos anos de vida, muitos cuidados médicos foram necessários e tudo foi feito, apesar de estarem além de nossas possibilidades financeiras (e estou falando de apenas uma gata). Felizmente meu outro filho felino de 7 anos é vigoroso, cheio de saúde e energia e não visita o veterinário há uns anos…
Daí podemos tirar algumas reflexões que se estende a outros gatos e cães em situação delicada de saúde, parecida com a da Belle, que estão sofrendo agora mesmo com questões parecidas (e esse é o propósito deste artigo) sobretudo, aqueles animais que não tem tutores ou, se os têm, e considerando a realidade média da população brasileira, estes não podem arcar com cuidados veterinários dispendiosos sem comprometer a sua própria subsistência e/ou de outros membros humanos (ou não humanos) de sua família, o que é o caso dos chamados “protetores de animais”. Aliás, qual será a qualidade efetiva dessa proteção quando não há nenhum acompanhamento ou colaboração dos órgãos públicos?
Como esses cães e gatos podem ser protegidos por pessoas que, apesar de terem muita boa vontade e empenho para fazerem o melhor que podem pelos animais abandonados que retiram das ruas, quando estas, em sua grande maioria, também não possuem amparo social para si mesmas?
Além das pessoas que fazem esse trabalho de “proteção animal” e às vezes também nem contam com aparato mínimo de uma organização (Ong) estruturada, os cães e gatos (para ficar somente nessas espécies, que “na sorte” recebem o mínimo de atenção do poder público – a depender de quem está no comando -, em detrimento das muitas outras espécies animais que são negligenciadas por interesses outros… embora todos os animais possuem direitos garantidos por leis, conforme já abordei aqui em outros textos…), listo abaixo alguns pontos que considero interessantes para registro:
1 – política pública para controle populacional ético (castração) de cães e gatos, sem dúvida que é uma pauta muito relevante e necessária, tanto particulares quanto o poder público já sabem muito bem disso nos dias atuais, porém está bem longe de ser a única política para se buscar proteger esses animais de abandono, maus-tratos ou crueldade;
2 – dada a minha experiência relatada acima que compartilhei aqui, não é óbvio e nem exagero registrar que o controle populacional ético de gatos e cães difundido através de políticas públicas com eficiência para todos os estados federados é apenas o começo do começo, o mínimo do mínimo, para que comece a existir com seriedade um comprometimento e cuidado do Estado para com a saúde pública de modo geral, que beneficia os animais em questão, a população e o meio ambiente;
3 – do mesmo modo também me parece importante escrever aqui que gatos e cães já nascidos precisam de muitos outros cuidados (como a minha gatinha, por exemplo, que teve a sorte de receber amparo médico particular por todos esses anos que necessitou), que vai muito além de uma política eficaz e ética de controle reprodutivo, que igualmente devem ser pensados e universalizados por meio de políticas públicas;
4 – como incentivar ou promover eventos de adoção de cães e/ou gatos sem orientar muito bem os interessados acerca da grande responsabilidade com esses seres depois que forem adotados ou, ainda, como o Estado acha que tem legitimidade para culpabilizar / punir pessoas que abandonam animais se não oferece o mínimo de dignidade, informação / conscientização e incentivo para que os animais, uma vez adotados, permaneçam até o final de suas vidas com seus tutores?
5 – é inadmissível que o Estado (e aqui me refiro aos parlamentares, chefes de governo, pois são os representantes do Estado e também já incluo candidatos/as à mandatos eletivos) se ocupe em fazer apenas campanhas de “cadeia para maus-tratos” ou campanhas divulgando que condutas como abandono e maus-tratos é crime, quando ele próprio (Estado) se abstêm de fazer a sua parte que é educar as pessoas humanas e proteger os indivíduos não humanos, além de cometer, ele próprio, constantes crimes de crueldade e maus-tratos com os animais, tanto cães e gatos (que perambulam à própria sorte pelas ruas da cidade, que lotam laboratórios e centros de pesquisa acadêmicos etc…) quanto (e principalmente) crimes ininterruptos contra os animais de outras espécies, sem ao menos considerar o impacto avassalador e brutal de uma economia ultrapassada devido a emergência de questões ambientais e sanitárias da atualidade estritamente relacionadas com a pauta da defesa dos direitos animais.
6 – o momento atual requer mudanças coletivas consistentes, que podem ir se fazendo através do ajuste (a autêntica justiça) de nossas lentes individuais no resgate de valores essenciais, como a solidariedade, fraternidade, o amor ao próximo e a si ao mesmo tempo (pois estamos todos no mesmo planeta)… E assim se perceberá que é emergencial começar a se pensar a trabalhar em políticas públicas de proteção animal, humana e ambiental de maneira integrada em diferentes setores sociais, econômicos e culturais, como por exemplo integrando a proteção animal com a assistência social à pessoas protetoras de animais. Outro exemplo: políticas públicas de incentivo à alimentação verdadeiramente saudável e sustentável que não se baseie em proteína animal, mas sim na biodiversidade das plantas alimentícias, criando e provendo uma educação e cultura de paz e harmonia entre os seres vivos, em benefício do todo e inclusive como medida de combate à fome, pois os campos destinados ao pasto e à monocultura de soja para alimentar rebanhos são uma das principais causas da fome neste país. Do contrário, é o Estado fomentando a crueldade e os maus-tratos com seres humanos, com os animais e com o nosso planeta.
E por fim eu deixo aqui o convite para que as pessoas, que lidam diariamente com o resgate e cuidados de animais (cães, gatos e outros) – e muitas vezes até comprometem a qualidade e dignidade de suas vidas particulares com essas atividades pelo fato do poder público ainda ser omisso e negligente na questão da formulação de políticas públicas protetivas eficazes (apesar de haver direitos constitucionais para os animais e legislação protetiva federal, estadual e municipais há mais de século, conforme já trouxe aqui em outros artigos), possam aqui acrescentar algo acerca de suas experiências ou se manifestarem livremente a partir deste artigo nos comentários do site ou nas redes sociais do Saber Animal.
P.S.: e enquanto isso… a ocupação da classe política é colocar etiqueta em embalagem de ração para coibir maus-tratos. Se sentir de opinar, deixe nos comentários se você acredita que esse tipo de projeto de lei pode ajudar efetivamente os animais.