🎙️ Podcast Saber Animal #003 – Notícias

Três crianças brincam com cachorros num petshop.
Tam Tran / Flickr

No episódio de hoje, falaremos sobre o comércio de animais domésticos e silvestres e, na sequência, sobre os animais no catastrófico acidente nuclear em Chernobyl.

Apresentação: Vanice Cestari / Edição de áudio: Fabio Montarroios. Produção: Vanice Cestari / Roteiro: Vanice Cestari e Fabio Montarroios.


A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) instaurou Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar irregularidades na venda de animais por canis, pet shops e demais estabelecimentos clandestinos, inclusive por meios eletrônicos, no Estado.

É sabido entre muitos defensores e ativistas pela causa animal que a comercialização de animais tem um único propósito: obtenção de lucro para quem faz a reprodução e a venda desses animais. Também não é nenhuma novidade que os criadores e empresários desse ramo apelam para o uso de subterfúgios na defesa intransigente do seu negócio com a finalidade de perpetuar essa prática exploratória imoral que é a constante procriação para o comércio dessas vidas.

Se já nos aproximamos de algum animal, praticamente todos nós, sabemos de longa data o que neurocientistas declararam em 2012 na Universidade de Cambridge, no Reino Unido e na presença de Stephen Hawking: os animais não são coisas, máquinas, objetos, seres inanimados; todos os mamíferos, aves e muitas outras criaturas do reino animal são dotadas de senciência e consciência assim como nós, humanos.

Senciência é a capacidade que um ser vivo tem de sofrer ou sentir prazer ou felicidade.

Aqui, aproveito pra fazer uma consideração legal.

O Código Civil em vigor está completamente obsoleto no artigo que trata os animais como coisas ou bem semoventes (que andam ou se movem por si próprio) e ainda que não tenha sido alterado, este tema pode e deve ser interpretado conforme a Constituição (que impõe a proteção da fauna e veda a submissão dos animais à crueldade). Em alguns casos, o Poder Judiciário já decidiu que, as Varas de Família, tem competência para decidir sobre a guarda compartilhada de animais e regime de visitas quando do término de um casamento ou de união estável, no entanto, a preocupação é garantir o bem estar emocional dos seus tutores e não o bem-estar animal. Ainda há muito a avançar.

Feita esta observação jurídica, retomamos para a questão do comércio de animais. Depois de muitas denúncias de ativistas em defesa dos animais a respeito de maus-tratos e crueldade impingida a cães e gatos em estabelecimentos que abastecem o mercado pet, a ALESP instaurou CPI para averiguar e debater sobre a venda de animais.

A divulgação midiática dos casos de maus-tratos a animais é de fundamental importância, o que não dispensa uma visão mais ampla dessa questão: a crueldade e os maus-tratos não atingem somente a cães e gatos e não estão restritos a estabelecimentos clandestinos. Há um sistema perverso de exploração em toda e qualquer atividade que envolva a utilização e instrumentalização de animais, independentemente de sua espécie.

O comércio de animais, por mais normal e correto que possa parecer aos olhos de quem os vê em vitrines de lojas organizadas e limpinhas, ainda que praticado dentro da legalidade, camufla uma violência sistemática e antiética na medida em que confina seres vivos sencientes e conscientes a fim de reduzi-los a objetos:

  • as fêmeas são tratadas como máquinas de reprodução que, depois de muito uso, são descartadas;
  • os criadouros são locais insalubres não havendo nenhum interesse e quiçá possibilidade de fiscalização do poder público.

A sociedade, de modo geral, ainda não vê problema algum em se comprar uma vida ao invés de adotar e cuidar de um animal que foi abandonado. Muitas vezes agem sem a menor consciência sobre o funcionamento e realidade dos criadouros de cães de raça, por exemplo. Além de que as pessoas, na era da sociedade de consumo, se comportam de modo impulsivo e irrefletido, se arrependendo posteriormente da compra ou ainda o fazendo por status. Isto precisa mudar e educação é papel do Poder Público.

Atenção senhoras e senhores legisladores! Vida não é mercadoria por simples questão ética, seja comércio legal ou clandestino. Os criadores, para obtenção de lucro máximo em seus negócios, não querem abrir mão desse filão exploratório e devastador de vidas vulneráveis.

Para expressiva parcela da sociedade, apenas os cães e/ou os gatos (espécies escolhidas para alguma estima e consideração) são merecedores de direitos, alguns, como o de não serem espancados ou fisicamente agredidos, o de receberem alimentação e abrigo. Por outro lado, há quem acredite, por ingenuidade ou interesse escuso, que é possível a regulamentação ou credenciamento de criadouros visando atender o bem-estar animal.

Para entender o quão irracional e antiético é comercializar vidas animais, é preciso desapegar dos conceitos antropocêntricos (isto é, o ser humano ocupando uma posição de centralidade em relação a todo o universo, em relação a todos os outros seres vivos de outras espécies e em relação a natureza). É preciso tirar o foco do ser humano, tirar o foco no desejo ou qualquer motivo pessoal que possa levar alguém a querer comprar um animal no sentido de ter a posse, a sujeição, o domínio de um animal doméstico ou silvestre, sem se preocupar com o contexto e implicações dessa transação comercial.

Mudando esse padrão cultural antropocêntrico, podemos ampliar o nosso horizonte, nosso olhar a respeito das necessidades individuais, sociais e comportamentais dos animais não-humanos, seja lá de qual espécie ele for. Podemos olhar para o animal não-humano, ser vulnerável e frágil, e nos colocarmos por uns instantes no lugar de sua vida, senciente e consciente como a vida da gente, nos afastando do pensamento dominante antropocêntrico que privilegia injustamente a humanidade em seus gostos pessoais, individuais e egoísticos em detrimento dos interesses animais mais fundamentais: vida com dignidade e liberdade.

E assim podemos começar a perceber que, se temos a capacidade de sofrer, os animais de outras espécies também a possui. Tão logo, veremos o sofrimento e crueldade intrínsecos às atividades que envolvem a exploração de animais. Se não queremos ser exploradas ou explorados, devemos ser os primeiros a não explorar. Nosso corpo X corpo deles. Nossa vida X vida deles. O respeito ao próximo inclui o animal não-humano. O comércio de animais (que, a propósito, ocorre após uma reprodução forçada) é exploração, portanto, é atividade imoral e antiética.

No caso de cães e gatos em canis ou gatis os fatos se repetem: animais confinados em espaços muito pequenos, encarcerados muitas vezes em grades ou gaiolas, fêmeas exploradas sexualmente de modo a se manterem em contínua e constante procriação (afinal, quanto mais crias, maior o lucro). E aqui um paralelo necessário (atenção feministas!): a exploração de fêmeas animais guarda um estreito vínculo com a objetificação socialmente dispensada às mulheres dentro de uma cultura patriarcal.

Os filhotes são desmamados prematuramente, e assim, privados do contato com as suas mães, ocasionando-lhes deficiências e traumas psicológicos desde cedo. A saúde das fêmeas escravizadas e compelidas a reprodução não é levada em consideração, sendo comum o desenvolvimento de doenças sem que recebam assistência veterinária simplesmente porque isto significaria queda nos lucros, além de serem tratadas como como coisas. Por essas e outras, quem ama cães e/ou gatos ou outro animal doméstico não os compra se adquirir consciência, não fomenta um comércio degradante e cruel.

Ante tais constatações, parece claro que não existe a menor possibilidade da existência de criadores “éticos, sérios ou conscientes” que mercantilizam vidas animais.

Logo, a regulamentação da venda de cães e gatos é descabida em sua origem, de modo que inexiste a possibilidade de se evitar o sofrimento ou a crueldade intrínseca a essa atividade lucrativa. Proibir a comercialização de animais domésticos e promover massivas campanhas de conscientização pública, promover e incentivar a adoção de animais que foram resgatados em situação de abandono, são tarefas do poder público, além da formulação de políticas públicas para se evitar o abandono e os maus-tratos a animais, programas eficientes de controle populacional de animais por meio ético como a cirurgia de castração etc.

Vale esclarecer que, por parte de quem compra um animal, propiciar abrigo, água e alimento é insuficiente, não é necessariamente fazer o bem para o animal, que requer uma série de cuidados específicos a depender de sua espécie, de suas necessidades sociais e comportamentais, de seus eventuais traumas psicológicos, além de reforçar a continuidade da exploração ininterrupta das fêmeas e demais animais que permanecem em sofrimento nos criadouros. Não há respeito a vida animal e tampouco amor em tais circunstâncias.

Por outro lado, o argumento geralmente usado por pessoas que tem dificuldade em vislumbrar uma mudança social efetiva por falta de vontade política ou outro interesse escuso de que “sempre vai ter quem queira comprar um animal” não se justifica para se permitir a perpetuação do comércio de animais. Do contrário, seria o mesmo que afirmar “não se pode proibir a exploração porque sempre haverá quem queira abusar de um vulnerável”, “não se pode reprovar o estupro porque sempre haverá quem queira estuprar”, “não se pode reprovar o assassinato porque sempre haverá quem queira matar” e assim por adiante.

Ao que se sabe, a proibição da reprodução comercial de cães e gatos já foi adotada na Austrália*, apesar do país ser um grande explorador de animais de outras espécies como já falamos em episódio anterior.

Os animalistas abolicionistas que se conscientizaram sobre as múltiplas facetas da exploração animal lutam pelo fim da objetificação de todas as espécies de animais, sem exceção, onde logicamente também é reconhecida e incluída a necessidade do fim do comércio de cães e gatos e demais animais domesticados, ampliando o debate em defesa da vida animal senciente e consciente.

*(Obs.: a proibição da reprodução comercial de cães e gatos foi adotada apenas no estado de Victoria e não em toda a Austrália).

Comércio de Silvestres

O comércio de animais silvestres é outro tema que merece absoluta atenção. Muito do que falamos até aqui sobre comércio de animais domésticos (como os cães e os gatos) pode ser estendido e aplicado aos animais silvestres, guardadas as devidas adaptações.

Tanto na questão do comércio de cães e gatos quanto na questão do comércio de animais silvestres, o problema principal não está na clandestinidade, mas na sua origem: a atividade mercantil. Novamente, há ausência de ética e também há presença de graves prejuízos ambientais quando falamos em comercialização de animais silvestres.

O comércio de animais silvestres, ainda que efetuado dentro de todos os parâmetros legais e administrativos, é uma questão gravíssima que ultrapassa o sofrimento do indivíduo selvagem. Os pássaros, por exemplo, nascem chocados em incubadeiras em fábricas de ovos para depois serem comercializados e mantidos em cativeiro domiciliar (um sofrimento ininterrupto e humanamente inconcebível dada a violência antinatural de seu nascimento, assim como a natureza não domesticável do silvestre, o que já seria o bastante para qualquer pessoa sensata se opor a essa nefasta prática comercial).

O habitat natural desse indivíduo animal fica comprometido já que o silvestre não pode exercer a sua função ecológica proveniente do seu estado de liberdade, ou seja, a retirada de um animal silvestre da natureza para comercialização acarreta num desequilíbrio ambiental incalculável, um prejuízo que se alastra em efeito dominó, já que muitos deles vivem em bandos, além de desequilibrar a cadeia alimentar e ainda fomentar o tráfico desses silvestres como já explicitado por especialistas e profissionais que estão a frente dessa situação caótica no seu dia a dia.

Os animais silvestres em seus ambientais naturais é que fazem a preservação da própria espécie por meio de sua natural reprodução, não fosse a destrutiva intervenção humana! O animal humano, no exercício de sua arrogância e ganância, não respeita a vida, não compreende a sua importância e destrói a vida selvagem, os comercializa, tira proveitos da vida e da liberdade alheia por meio do aprisionamento. Uma vez retirados do ambiente natural para viverem confinados em domicílios ou em grades, esses animais perdem a função que exerciam na natureza, além de viverem uma longa vida em contínuo sofrimento.

Animais que evoluíram para viver em grupo, a exemplo dos psitacídeos (papagaios, araras, maritacas, calopsitas e afins) não tem a menor possibilidade de terem atendidas as Cinco Liberdades conforme preconiza a ciência do bem-estar animal que tem por pilar fundamental o estabelecimento de alguns parâmetros avaliativos da sua qualidade de vida.

Todo animal, inclusive o silvestre, precisa estar Livre de Fome e Sede (alimentos adequados à espécie); 2. Livre de Desconforto; 3. Livre de Dor, Ferimentos e Doenças; 4. Livre de Medo e Stress; 5. Livre para Expressar seu Comportamento Natural (também de acordo com as necessidades de sua espécie).

Animais silvestres em estado de cárcere privado num domicílio qualquer, ainda que fora de uma gaiola, grade ou jaula, são impossibilitados de expressarem seus comportamentos naturais como por exemplo construir ninhos, escolher seu parceiro sexual, percorrer grandes distâncias em busca de alimentos, dentre outras atividades primordiais que possam garantir a sua qualidade de vida, sempre considerando-se as características próprias e naturais de sua espécie. Muitos acabam sendo destinados para outro final triste: vão parar em zoológicos, pois muitas pessoas cansam de cuidar de um animal silvestre, mudam de residência os deixando pra trás, falecem antes deles ou simplesmente não conseguem mantê-los.

Segundo a Ong Renctas, o comércio de animais em petshop´s é a modalidade que mais incentiva o tráfico de animais silvestres no Brasil. Mais uma vez, apelamos para a ética. Nem tudo o que queremos, podemos ou devemos. A questão é simples quando se coloca o foco no lugar certo: o verdadeiro bem-estar do animal silvestre e a preservação ambiental, derrubando-se a barreira do especismo e do antropocentrismo. Os animais silvestres pertencem tão somente a natureza e é nela que devem permanecer. Mais uma vez, o Poder Público necessita de conscientização para conscientizar. Quem ama um animal silvestre por sua beleza ou exuberância, o respeita em sua natureza e liberdade. Vida silvestre também não é mercadoria.

Foi produzido o documentário Silvestre Não É Pet com a participação de organizações em defesa animal e especialistas no tema trazendo a conhecimento público o sofrimento desses animais mantidos em domicílio como se domesticáveis fossem, além do inestimável desequilíbrio ambiental. Conforme afirmam agentes da polícia federal, a grande maioria dos criadouros legalizados estão diretamente ligados ao tráfico,motivo pelo qual não há uma garantia segura da procedência legal desses animais, daí porque o comércio de animais silvestres, ainda que atividade legalizada nos dias atuais, deve ser proibida, até mesmo como forma de coibição do tráfico, já que se traduz num prejuízo inestimável para os animais, para os ecossistemas e toda a humanidade.

Quem compra financia essa cadeia exploratória e cruel.

No Brasil é permitida por lei federal a comercialização de silvestres e a Lei de Crimes Ambientais pune o comércio de animais silvestres desde que provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente. A atividade comercial é regulamentada.

Abaixo da lei está uma Resolução do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) de nº 394/07 que estabelece critérios para a determinação de espécies silvestres a serem criadas e comercializadas como animais de estimação.

A legalidade é mera questão de poder, logo nem tudo que é legal acompanha o que é ético, justo ou correto. Todavia, precisamos que a lei traga em seu escopo princípios éticos, uma lei que proíbe uma forma de exploração animal por exemplo.

Porém, nenhuma lei ou ato administrativo tem o condão de alterar os fatos naturais da vida. Por mais que seja permitida mediante lei ou regulamentada a criação e comercialização de animais silvestres como domésticos, a genética e evolução desses animais tem implicâncias diferentes em seus comportamentos naturais.

A desinformação pública na questão animalista é alarmante e geral, nos órgãos públicos não seria diferente já que nestes estão os membros representativos da sociedade. Urge um sistema público educacional que contemple o animalismo e o ambientalismo, que considere a ética animal. O movimento animalista abolicionista com suas múltiplas frentes de batalha tem muito a contribuir e a conscientizar neste sentido.

Desde já é possível a mudança de paradigmas na sociedade que ainda enxerga o animal silvestre como um objeto de desejo ou, no caso dos comerciantes e traficantes, como fonte de lucro.

Necessária se faz a compreensão do consumidor sobre o que está por trás das aparências no quesito bem-estar animal quando um animal silvestre é retirado da natureza para ser criado e tratado como pet. Atenção Poder Público! Queremos o fim da comercialização dos animais silvestres! Nossas vozes precisam ser ouvidas para o bem do coletivo.

É indispensável a conscientização ética em respeito à fauna silvestre na natureza, e além das questões ecológicas fundamentais e o respeito a vida senciente do animal, que sem dúvida alguma, sofre por não estar no seu meio natural, ainda há a questão gravíssima do fomento ao tráfico desses animais. Até quando negligenciaremos o respeito a vida em todas as suas formas e manifestações?

Referências:

CPI Venda de Animais – Alesp

Documentário Silvestre Não É Pet  – Sozed-SP

Tráfico de Animais Silvestres – Renctas


As outras vozes de Chernobyl

Talvez você não saiba, ou não soubesse, mas não só as pessoas não tiveram muita chance logo após o desastre em Chernobyl: os animais também não tiveram. Ocorrido em abril de 1986, a explosão de um reator nuclear na antiga União Soviética vitimou, de imediato, pessoas que trabalhavam na usina naquele fatídico momento e, em seguida, com uma imensa onda de partículas radioativas lançadas ao ar, a vida de animais selvagens e domésticos foi destroçada em nível molecular. Não se sabe ao certo o número de vítimas humanas, que pode girar entre 4 mil ou 96 mil segundo diversas estimativas, em contraposição aos, pasmem, 31 mortos indicados pelos dados oficiais. A vida animal perdida não parece ter sido quantificada, mas é possível deduzir que ela também ocorreu aos milhares ou milhões, a depender da escala que se escolher. Para os animais esses números pouco importam, porque eles foram mais uma vez vítimas da nossa ambição.

Na esteira do sucesso mundial da minissérie da HBO, Chernobyl (2019), de Craig Mazain, é extremamente oportuno lembrar que independente do tipo de evento que provocamos no planeta, a vida animal é igualmente ou até mais impactada. Nessa história, e em especial no quarto episódio, The happiness of all mankind, acompanhamos o destino dos milhares de animais domésticos da cidade de Pripyat (um local quase utópico para trabalhadores da usina nuclear gozarem do melhor que o comunismo podia oferecer à época: uma vida organizada, abastecida, tranquila, sem sobressaltos e totalmente previsível). Diferentemente das pessoas que deixaram a cidade, três dias após a explosão, os animais ficaram. E ficaram porque o governo não informava às pessoas sobre a gravidade do ocorrido. A promessa aos cidadãos era de que tudo voltaria ao normal em apenas três dias. A saída da cidade, sem relutância a princípio, parecia até razoável, mas não foi o que ocorreu. A cidade, até os dias hoje, não tem permissão para ser reabitada dado os ainda altos índices radiativos que se encontram por lá, mesmo após a contenção e a limpeza de áreas gigantescas. E talvez fique assim para todo o sempre.

Com isso, a minissérie que tentar ser fidedigna aos eventos históricos e, claro, bebe de muitas fontes, mas principalmente da obra da prêmio Nobel, Svetlana Aleksiévitch. Na verdade, Svetlana merecia ser até creditada na série, como revelou o jornal El País, não o foi… A Vanice vai ler, então, um trecho do livro Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear (2016), desta consagrada bielorrussa que ouviu pessoas que tiveram suas vidas diretamente impactadas:

Do capítulo: *Entrevista da autora consigo mesma sobre a história omitida e sobre por que Tchernóbil desafia a nossa visão de mundo.

“Na terra de Tchernóbil, sente-se pena do homem. Mas o bicho dá mais pena ainda… Não estou denegrindo, vou explicar. O que restou na zona morta depois que as pessoas foram embora? As velhas tumbas e as fossas biológicas, como chamam os cemitérios de animais. O homem só salvou a sua pele, todo o resto ele atraiçoou. Depois que as populações partiram das aldeias, pelotões de soldados e caçadores foram lá e abateram os animais. E os cachorros acorriam à voz humana, e também os gatos… E os cavalos não podiam entender nada. E eles não tinham culpa, nem as feras nem os pássaros, e morriam em silêncio, isso é ainda mais terrível. Houve um tempo em que os índios do México e mesmo as populações russas pré-cristãs pediam perdão aos animais e aos pássaros quando os sacrificavam para se alimentar. No Egito antigo, o animal tinha direito a se queixar do homem. Num dos papiros guardados nas pirâmides está escrito: ‘Não há nenhuma queixa do touro contra N’. Antes de partir para o reino dos mortos, os egípcios liam uma prece que dizia: ‘Não ofendi nenhum animal. E não o privei nem de grão nem de erva’.

O que a experiência de Tchernóbil nos deu? Terá nos conduzido a esse mundo secreto e silencioso dos ‘outros’?

Certa vez, vi como os soldados entraram numa aldeia já evacuada e começaram a atirar. Os gritos impotentes dos animais… Eles gritavam nas suas diversas línguas. Sobre isso já se escreveu no Novo Testamento. Jesus Cristo chegou ao templo de Jerusalém e lá viu animais preparados para o ritual de sacrifício: com o pescoço cortado, esvaindo-se em sangue. Jesus gritou: ‘Haveis convertido a casa de orações em covil de bandidos’. Poderia ter acrescentado: ‘em matadouro’. Para mim, as centenas de fossas biológicas abandonadas na zona são o mesmo que os túmulos funerários da Antiguidade. Mas dedicados a que deuses? Ao deus da ciência e do conhecimento ou ao deus do fogo? Nesse sentido, Tchernóbil foi mais longe que Auschwitz e Kolimá. Mais longe que o Holocausto. Tchernóbil sugere um ponto final. Não se apoia em nada.

Observo o mundo ao redor com outros olhos. Uma pequena formiga se arrasta pela terra, e ela agora me é próxima. Um pássaro voa no céu e também me é próximo. Entre mim e eles, o espaço se reduziu. Não há mais o abismo de antes. Tudo é vida.

Lembro-me também do que me contou um velho apicultor (e depois ouvi de outras pessoas): ‘Saí pela manhã ao jardim e notei que faltava algo, faltava o som familiar. Nem sequer uma abelha… Eu não ouvia nem uma abelha! Nem uma! O que é isso? O que está acontecendo? No segundo dia, elas não voaram. E também no terceiro… Depois nos informaram que tinha acontecido um acidente na central atômica, que era perto. Durante muito tempo não soubemos de nada. As abelhas sabiam, mas nós não. Agora, se noto algo estranho, vou observá-las. Nelas está a vida’.

Outro exemplo. Eu conversava com pescadores junto ao rio e eles me contaram: ‘Nós esperávamos que nos explicassem pela televisão, que dissessem como nos salvar. E as minhocas. Minhocas comuns. Elas entravam na terra, desciam fundo, meio metro, talvez um metro. E nós não entendíamos. Nós cavávamos, cavávamos. Não conseguíamos nenhuma minhoca para pescar’.

Quem de nós é o primeiro, quem está mais sólida e eternamente ligado à terra, nós ou eles? Devíamos aprender com eles como sobreviver. E como viver.”

No episódio que nos interessa mais pela temática, observamos que escolher um jovem, recém alistado como liquidador, ou seja, ser um dos 400 mil indicados com a função de limpar o estrago do desastre, não é à toa. Pavel, como ficaremos sabendo, não sabe nada da vida e da morte – ainda. Sua ingrata missão é atirar naqueles animais domésticos que foram deixados para trás e que, agora, se tornaram uma ameaça por estarem altamente contaminados. Aprendendo a manipular um rifle em companhia de calejados soldados (dois combatentes no Afeganistão), ele recebe uma ordem direta: “não os faça sofrer”. Missão impossível, o jovem sofre, mas depois se acostuma um pouco e os animais, da ficção televisiva, parecem até bem saudáveis, o que aumenta a nossa angústia em vê-los morrer com um tiro certeiro (mesmo que de mentirinha, pois segundo o autor da série, nenhum animal sofreu maus-tratos durante as filmagens). Só que os animais, assim como as pessoas, já estavam condenados pela radiação que os atingiu logo após a explosão do núcleo do reator: permanecer na cidade abandonada pelas pessoas só estava agravando a situação de todos. O que ocorria ali é o seguinte: suas vidas estavam sendo abreviadas com intuito exclusivamente sanitarista – diferentemente da dos humanos, as quais, em outros episódios, vemos morrer lentamente no mais profundo sofrimento físico e psíquico em áreas de frágil isolamento hospitalar. De novo, a desgraça, ali, foi completa para todas as formas de vida.

Tão ou mais perigosa que a devastadora radiação, a presença humana, para os animais, é um sinal de alerta. Na nossa ausência, portanto, a vida selvagem retorna às cercanias de Chernobyl e parece conviver pacificamente com os átomos que fugiram do nosso controle. No texto de Ángel L. León para o jornal El País, podemos ter uma ideia de como quando não estamos presentes, a natureza parece se recuperar bem apesar dos pesares. De acordo com o pesquisador ouvido pelo jornalista, James Beasley, que é ecologista da Universidade da Geórgia, e que está estudando os animais selvagens na vasta área de exclusão de Chernobyl, ressalta-se que os dados que ele anda obtendo são o “testemunho da resistência da vida selvagem quando é liberada das pressões humanas diretas”. Uma outra fala no texto, dessa vez com Jim Smith, professor de ciências ambientais na Universidade de Portsmouth, salta aos olhos: “isso [a recuperação da vida animal na zona de exclusão] não significa que a radiação seja boa para a vida selvagem, mas apenas que os efeitos da vida humana, incluindo a caça, a agricultura e a silvicultura, são muito piores”.

Mas não podemos ver os efeitos em plenitude, por exemplo, nas fotos de Vasily Fedosenko e Gleb Garanich reunidas também no site do jornal El País, pois os efeitos da radioatividade são de longo prazo. Algumas pesquisas apontam essas anomalias: vendo bem de perto é possível, por exemplo, observar tumores em pássaros e até mesmo alteração na coloração de insetos como podemos ver em um vídeo-reportagem do jornal The New York Times, que acompanha os trabalhos do pesquisador Timothy Mousseau.

E vale lembrar: todas essas referências que citamos no Podcast Saber Animal estão no post desse episódio no site saberanimal.org.

Bom, voltando à minissérie Chernobyl, o autor Craig Mazain, no podcast especial que eles preparam pra falar apenas dessa nova produção da HBO, diz que não se tentou passar uma mensagem antinuclear com a história que contaram. O interesse estava mais concentrado nas questões políticas e humanas do regime comunista que colocaram a vida de milhões de pessoas e de animais em risco com a negação constante da realidade e da tentativa de não serem humilhados com o fracasso de tamanha proporção através da manutenção da propaganda de uma nação perfeita (novamente, graças ao comunismo). Os animais, curiosamente dentre tantas outras cenas que foram cortadas por falta de tempo, ganharam destaque especial e nas palavras da colunista Luciana Coelho, da Folha de S. Paulo, eles foram “protagonistas de alguns dos momentos mais tensos da série”. E foram mesmo! E não só no quarto episódio. Mas toda história ficcional, felizmente, permite várias interpretações. E com essa não seria diferente. Vale, sim, o alerta para os perigos da energia nuclear que, independente do regime político ou dos padrões éticos que possam conduzir uma atividade desse tipo, podem atingir até mesmo o mais perfeito dos projetos. Foi o caso na que talvez seja a mais organizada sociedade do mundo, a japonesa. Em março de 2011, a usina nuclear de Fukushima (que funciona com tecnologia americana e não a russa e seus problemas, digamos, peculiares) foi atingida por um tsunami. E mesmo lá, num Japão livre de qualquer traço do comunismo, houve desinformação e improvisação ao momento seguinte de um acidente que envolveu índices de contaminação similares ao de Chernobyl (sem falar que a empresa responsável pela usina demorou a admitir que não conseguiu conter o vazamento de água radioativa para o oceano Pacífico em 2013, afinal, o capitalismo também apronta das suas).

E eis algo para nos questionarmos: o ser humano pode, de fato, construir um sistema capaz de funcionar sem erros? A resposta é bem simples: não pode, porque simplesmente não consegue prever tudo. Erros humanos e mesmo catástrofes naturais (cada vez mais recorrentes) podem acometer uma usina nuclear (ou mesmo silos com armas nucleares em locais secretos pelo mundo) a qualquer momento e a depender do estrago pode não haver nenhuma chance de contenção… Por que não, então, investir em energia limpa e que não traga consigo esse potencial devastador? Precisamos mesmo de tanta energia? E o que estamos fazendo com toda energia que temos disponível para nos arriscarmos tanto assim? Que tipo de vida realmente queremos? Podemos fazer uma lista ainda maior de perguntas para vermos o quão nocivos são esses nossos esforços, mas não é mais necessário. Os dados da realidade, e também a ficção, já nos dão todas as respostas que precisamos.

Referências:

A vida abre caminho no ecossistema radioativo de Chernobyl, de Ángel L. Léon – El País

O ecossistema de Chernobyl 30 anos depoisEl País

Podcast sobre o seriado com a participação do Craig Mazain (em inglês)HBO

Chernobyl’ chega ao fim na HBO com alerta para o futuro, por Luciana Coelho – Folha de S. Paulo

Vozes de Tchernóbil: A história oral do desastre nuclear, de Svetlana Aleksiévitch Edição digital / Edição impressa

The Animals of Chernobyl (em inglês)The New York Times

Chernobyl Legacy, fotos de Paul Fusco – Magmum Photos / Chernobyl Legacy, Paul Fusco fala sobre as suas fotos (em inglês).

Returning to FukushimaNational Geographic


Músicas:

Despicable Dog, Whashed Out

Cats and dogs, Gorilla Biscuits

The black market (Brandon Barnes, Joseph Principe, Tim Mcllrath, Zach Blair), Rise Against

The door (Hildur Guðnadóttir), Hildur Guðnadóttir

Líður – Chernobyl Version (Hildur Guðnadóttir), Hildur Guðnadóttir

Farawell to Pripchat (Tim Dennehy), Christy Moore