Em 2018 votamos na Mandata Ativista para a Assembleia Legislativa de São Paulo e, de certo modo, nutríamos entusiasmo com a relativa novidade. Não fomos os únicos: outros 149.842 eleitores tomaram a mesma decisão quando foram às urnas. Um mandato, ou melhor, mandata, que reunia diversas correntes de pensamento e bandeiras, incluindo a possibilidade dos Direitos Animais emergir como uma delas na pessoa da codeputada Paula Aparecida, parecia bastante adequada ante a modorra dos políticos profissionais prometendo o de sempre outra vez. Sem falar que se tratava de uma votação particularmente difícil para representantes de qualquer coisa que não lembrasse a mais pura barbárie, pois a eleição de Jair Bolsonaro e a ascensão do bolsonarismo (um fascismo à brasileira) precisava desesperadamente ser contrabalanceada com algo que representasse, talvez, a esperança.
Depois do #EleNão, movimento que levou milhões de mulheres (e alguns homens) às ruas do Brasil clamando pelo voto consciente e destacando o grande erro que seria eleger misóginos e machistas, a frustração foi grande. Nem mesmo um forte apelo como aquele foi o suficiente para dissuadir a maioria das 77 milhões de eleitoras a não permitirem que alguém como Bolsonaro, um político profissional que sempre odiou mulheres e amou militares, votasse nele e o ajudasse a garantir a sua eleição – que parece seguir até 2022.
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Se são as mulheres a grande aposta para um futuro diferente do que se desenha ante as emergências climáticas, pois sabemos bem aonde políticas feitas por homens nos levarão, não deixa de ser lastimável que uma experiência como a Mandata Ativista tenha falhado nesse sentido em tão pouco tempo por conta de disputas políticas internas mal resolvidas e de decisões que não são coerentes com as próprias propostas que todos os nove representantes levaram à ALESP.
A expulsão sumária de uma das codeputadas, a Raquel Marques, foi um duro golpe naqueles que votaram não apenas em uma única pessoa, a representante oficial da mandata, Mônica Seixas, mas, vale reforçar, em um coletivo formado por nove cabeças pensantes. As explicações depois da expulsão não eram propriamente explicações. Na verdade, foram apenas acusações, de transfobia, que removeram uma pessoa que, inclusive, não teve nem a oportunidade de se defender segundo ela própria. Esperar tal comportamento da direita ou da extrema-direita, parece o normal, mas vale não perder de perspectiva que o germe do autoritarismo também está presente na esquerda brasileira – e não é de hoje.
A acusação de transfobia é grave. Diria até que é gravíssima, tendo em vista a situação terrível que pessoas trans se encontram no Brasil: elas são perseguidas, vítimas de violência simbólica, não têm direitos assegurados, possuem baixa representatividade em cargos públicos, são perseguidas por organizações religiosas de modo sistemático, não conseguem seguir com os estudos, são assassinadas em grande número etc. Carregar a pecha de transfóbico sem o ser pode levar uma pessoa não apenas ao cancelamento em redes sociais, que são voláteis e, em larga medida, problemáticas por si só, mas também podem arruinar toda a história de lutas de uma pessoa.
Por conta das eleições de 2020, a Mandata Ativista, já deixou de contar justamente com Erika Hilton, a representante da população trans do grupo. Quem votou nela em 2018 e esperava sua atuação em âmbito estadual já não pode mais contar com isso. Candidata a vereadora, numa reprodução da mandata em outro grupo com nova configuração, ela se elegeu com votação expressiva de 50.508 votos, revelando o desejo, de parte da sociedade paulistana, de dar voz às pessoas trans e, através da política, transformar a realidade de milhares de pessoas que, até então, não tinham representação efetiva na Câmara Municipal de São Paulo. Isto é, em termos de alcance de suas ações, ela regrediu um nível ao deixar o estadual e ir para o municipal, sendo que o movimento natural seria ir para o federal (como deputada ou codeputada) na próxima eleição (2022) e aumentar o poder de sua voz e suas ações. Raquel Marques seguiu pelo mesmo caminho, mas não conseguiu se eleger com 4.704 votos.
Pode ser que as experiências que acredito serem voltadas à representatividade mais amplas do eleitorado, na verdade, para alguns dos participantes, sejam apenas novas formas de plataformas políticas para investidas solos na eleição que está por vir. Para aqueles que quiserem esse caminho, evidentemente, pois há quem seguirá firme no compromisso de se manter na mandata até o fim de 2022 e trabalhar para aquilo que foram efetivamente eleitos: representar a diversidade de seus eleitores da melhor forma possível. E, com efeito, apenas atacar o governo da vez sem propor, sem inovar, sem buscar alianças fortes e coerentes, parece não ser nem um pouco interessante.
Me parece totalmente aceitável, portanto, que haja disputas políticas internas dentro de partidos políticos e mesmo dentro de mandatos coletivos multipartidários como é o caso da Mandata Ativista, pois, oficialmente, existe apenas uma pessoa eleita e ela é a representante oficial para todos os efeitos legais, ponto. Agora, transformar essa disputa legítima em acusação não faz sentido. Se a codeputada Raquel Marques acredita que uma única pauta não pode ser dominante, no caso os direitos LGBTQI+, não quer dizer, obviamente, que ela seja contra essas pautas, as quais ela está, nitidamente, alinhada dentro do espectro dos Direitos Humanos. Ora, expressar-se e protestar também é um direito, não?
Em uma interação por e-email feita pelo Saber Animal com a Mandata Ativista em 10/9/20, por conta do PL 558/18, já foi possível observar um tom evasivo na resposta, dada em 14/9/20 e, a nosso ver, equivocado, como posteriormente destacou Vanice Cestari no texto Como fica a defesa dos Direitos Animais em ano de eleição?.
Mesmo que a expulsão em algum momento possa ser revertida, a Mandata Ativista, infelizmente, está se mostrando, ela própria, mais do mesmo ao optar por posturas e atos que conhecemos tão bem na política brasileira.