🎞️ Cinema: Contágio (2011)

O ator Jude Law no papel de Alan Krumwiede

ATENÇÃO: Esta crítica contém spoilers de dois filmes!

Praticamente não há mais locadoras para se alugar Contágio (2011), de Steven Soderbergh. E, agora, mesmo se ainda houvesse alguma próxima de mim, ela não estaria aberta, assim como todos os demais estabelecimentos considerados não essenciais que foram fechados pelos governos de tantas cidades brasileiras. Não estamos como na ficção do filme em questão, mas no momento da escrita desta crítica, na São Paulo de 2020, o mês de março tem sido mais quieto de que em todos outros que já vivi, com milhões de pessoas sendo impedidas de sair de casa e tendo que, apesar do contrassenso que algo assim poderia representar noutro contexto, buscar novos arranjos de vida em suas próprias moradas que parecem desconhecer. Os sem-teto? Ah, esses continuam por aí, vulneráveis não só à doença nova da vez, mas a todas as outras que já existem e que, de algum modo, performavam no nosso imaginário de pequenos temores cotidianos.

Desviar de algo enferrujado no meio do caminho para fugir do tétano; não atravessar uma enchente, algo bem comum em muitas cidades brasileiras, para escapar da leptospirose; ficar atento se alguém está com conjuntivite e se afastar um pouco; recear que aquela pessoa que tosse insistentemente possa estar com tuberculose; ler no noticiário que os casos de leishmaniose estão aumentando; cogitar a possibilidade do ebola se espalhar pelo mundo já que o Ocidente fica tranquilo enquanto ele não sai do continente africano; se dar conta que os jovens não mais se preocupam tanto com a AIDS e darem de ombros quando adultos falam de uma série de outras doenças sexualmente transmissíveis; desenvolver as mais variadas formas para manter mosquitos longe de casa para não contrair dengue, zica, febre amarela ou chicungunha; se dar conta que um simples pote de açaí possa conter a doença de chagas se os devidos cuidados com sua produção não tiverem sido tomados; e, por último, ir à farmácia atrás de qualquer remédio para aliviar os sintomas de um gripe comum.

A lista acima, incompleta, e com apenas uma doença entre as vinte que mais matam no país (a AIDS), já seria motivo o suficiente para instaurar uma crise de pânico em qualquer pessoa sensata e que gostaria de viver o máximo possível, mas ninguém pensa nelas quando sai de casa por qualquer razão: trabalhar, estudar, diversão ou ir na padaria. Mas não está sendo bem assim com o coronavírus (SARS-CoV-2, o vírus, e Covid-19, a doença), que até o momento (23/3) matou 21 mil pessoas desde a sua descoberta no fim de 2019. Esse número, no momento da sua leitura, certamente estará desatualizado. Os números não param de crescer e em cada país que o vírus ganha força, os temores aumentam e medidas protetivas precisam ser instaladas o mais rápido possível para evitar a contaminação de mais e mais gente que precisará de atendimento médico. No caso do coronavírus, as pessoas mais severamente atingidas precisam de tratamento intensivo e não há leitos suficientes para todos. Os sistemas de saúde, rapidamente, vão entrando em colapso e as sociedades mais distintas vislumbram a possibilidade do caos sociais se instaurar lentamente.

Olhando para a ficção de Soderbergh, que tenta ser bastante realista, mas que, claro, pinta um cenário impreciso, já que a realidade pode ser (e geralmente é) bem mais cruel, sem chance para salvações milagrosas e atos heroicos de pessoas abnegadas que querem apenas o bem da humanidade, podemos imaginar como seriam as coisas caso toda humanidade estivesse ameaçada por um vírus fatal e sem cura no horizonte. Na verdade, para ser justo, o diretor dá ênfase na mesquinhez de atos de altas autoridades envolvidas no controle de uma nova praga que eles descobrem depois de vários e vários casos de pessoas morrendo rapidamente após infectadas. Os responsáveis pela administração da crise avisam seus parentes do caos que se avizinha ou testam uma vacina em pessoas queridas para garantir a elas a cura mesmo que isso viole códigos de conduta duríssimos. Em meio a qualquer crise, parece evidente que o altruísmo é solapado e proteger a si mesmo e aos seus se torna prioridade para a maioria das pessoas comuns.

Trancado em casa, e por sugestão da Netflix, antes de rever Contágio, revi Pandemia (1995), de Wolfgang Petersen. Ao contrário das facilidades do streaming, conseguir ver filmes fora de catálogo depende da sorte deles estarem sendo compartilhados via BitTorrent para download. Essa prática, considerada ilegal no mundo todo, menos pelos piratas, claro, é a salvação para quem quer ver um filme indisponível de qualquer outra forma que se possa pagar por ele (depois descobri que estava para locação pelo Google, então você não precisa ser um fora da lei para vê-lo). Baixar um arquivo desse jeito, para funcionar, depende que outras pessoas também tenham o filme (ou pelo menos alguma parte dele) em suas máquinas para ir sendo “montado” nas máquinas de outras pessoas que também querem aquele arquivo digital. Você consegue um pedacinho dele vindo de vários lugares do mundo e a velocidade para que o filme completo apareça na sua máquina vai depender da velocidade da conexão de internet dos envolvidos na trama. O medo do Outro que o vírus causa, no caso, é a salvação para cinéfilos que às vezes se esquecem que também podem ter suas máquinas contaminadas com vírus de computador que facilmente podem ser propagados dessa mesma forma: ao lado do seu filme, um arquivo executável colocado ali estrategicamente pode abrir muitas portas do seu computador.

A nossa vida é, alguma medida, mediada por formas de viralização: seja pela doença, seja pela informação em todo tipo de conteúdo. O filme Contágio era um dos mais baixados no momento em que o busquei. Mais que blockbuster do momento. O filme se tornou atraente por nos apresentar um cenário possível, um destino possível. A pretensão realista ajuda a reforçar essa condição.

Agora, Pandemia, outro filme com a mesma temática, beira o cômico, porque em 1995, claro, ninguém dava lá muita pelota para ser realista com um assunto como este. A filmografia dos anos 90 (Twister, por exemplo) é tão louca quanto os próprios anos 90 foram em todos os outros campos da vida. Os clichês militaristas, o clichê do casal divorciado que ainda se ama, o clichê das situações de perigo, que são revertidas de maneira improvável, e por aí vai. Não dá pra levar Pandemia a sério, apesar de, ainda assim, haver uma mensagem ali: os militares são maus, apesar de existirem boas pessoas no meio deles, e o que fazemos com o planeta é feio. Mas algo o aproxima de Contágio e que nos interessa particularmente: os usos dos animais e o desmatamento.

Em Pandemia tudo começa com um macaco selvagem: o pobrezinho é hospedeiro de um vírus ultramortal para humanos chamado Mutaba. Ele tem o azar de ser capturado aparentemente por caçadores a serviço de uma empresa que faz testes em animais nos EUA e é despachado por via marítima. O primeiro cara que teve mais contato com o macaco bateu as botas já no navio que o transportava. Um funcionário da empresa Biotest, a mesma que capturou o animal, o furta e no meio do caminho, enquanto dirige no maior gás, leva uma baita cusparada nojenta na cara dada pelo macaquinho que provavelmente queria zoar com aquele mala. Literalmente pagou mico! O cara tenta vendê-lo para um tipo de petshop e o macaco acaba arranhando o dono do estabelecimento. Bem feito – ele também adoece e morre! Quem mandou comercializar animais em petshops? Bicho não é coisa, pô! Depois o funcionário pilantra da Biotest fica parecendo um zumbi e volta pra casa de avião parecendo um zumbi. A ficante patricinha, sem muito amor próprio, beija o cara que está um trapo velho quando o recebe da viagem. Ambos, claro, vão parar no hospital e morrem tipo Romeu e Julieta, mas em um enredo que jamais teria sido escrito por Shakespeare de tão tosco. Outros eventos desastrosos acontecem em benefício do vírus e assim vai. Bom, depois de tanta gente morrendo de modo bizarro e horrível, bravos militares do governo estadunidense, todos brothers, contrariando ordens superiores (essa é do arco da velha!), e mesmo com a possibilidade de irem parar no xilindró, vão lá averiguar e descobrem que aquela desgraça toda está se espalhando numa bela cidadezinha republicana, ou seja, com uma renca de bocós da roça que adoram andar armados para protegerem suas terras. A ex-esposa do major rebelde, funcionária do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) – daí a afinidade entre os dois: eles gostam de vírus – vai lá confirmar e ajudar. E o que vocês acham que vai acontecer com ela? Bem, é certo que vamos precisar de um mocinho para salvar a virulenta, não é mesmo? É 1995, mas poderia ser também A bela adormecida de 1959. Sai a moça enfeitiçada, entra o vírus fatal! Vocês acham que o bravo combatente salva a donzela depois de uma eletrizante perseguição de helicópteros? Como o vírus, deixo a dúvida no ar… Mas adianto que eles acham a cura testando possibilidade em macacos.

No super-realista Contágio, um filme que não é de terror, mas que dá calafrios assim mesmo, os animais surgem de modo mais realista: os macacos são usados para a experimentação científica. Eufemismo para a crueldade com seres que consideramos coisas e que podemos fazer o que quisermos com eles para o nosso próprio bem. Todos somos beneficiários das vacinas e conseguimos com ela grande sobrevida. Sem as vacinas pereceríamos tão facilmente que certamente a nossa sociedade seria muito diferente do que é hoje. Talvez estivéssemos vivendo ainda como na Idade Média – rica culturalmente, mas deficiente de saídas para as doenças que assolaram aqueles tempos. Os animais, ratos, macacos, cachorros, gatos, coelhos, porcos e tantos outros são usados de modo cruel e indistinto na busca por curas para nossos males. Algo que sabidamente não é eficiente, mas que continua sendo utilizado, pois alimenta uma indústria complexa de criação e venda de animais ligada à academia, laboratórios e, claro, cientistas.

O morcego que perdeu seu habitat entra em contato com outros animais
Porcos sendo criados para serem mortos
Porco que comeu uma banana mastigada pelo morcego
Porco morto sendo preparado para ser servido em restaurante
Pesquisadores diante de mais um macaco morto
Macaco sobrevivente da experiência
Pesquisadora cercada de jaulas de macacos usados em testes
Vacinas testadas em animais. Depois de muitas tentativas, uma delas funciona
Pesquisadora injeta vacina em si mesma depois de testes em macacos
A câmera que explica tudo

Diferentemente dos anos 90, os anos 2000 vivem o esplendor da rede mundial de computadores (e também dos smartphones), também conhecida como Internet. À época, ainda sem as famigeradas redes sociais determinando tanto as coisas como agora (o Facebook dava os primeiros passos), as pessoas se destacavam com suas opiniões através, principalmente, de blogs. Sim, não eram os influencers do Instagram que ditavam o que deveríamos achar para contrariar o pessoal da velha guarda que ainda escrevia em jornalões, não… Você ia lá e montava um blog e podia escrever o que quisesse! Isso foi visto de maneira muito otimista como uma forma concreta de democratizar a opinião, antes restrita a poucas empresas de comunicação. Pois bem, o lado obscuro dos blogs é que qualquer maluco poderia ir lá e publicar toda sorte de coisa, especialmente teorias conspiratórias sobre os problemas da vez. No filme Contágio temos exatamente essa situação: frente a grande ameaça pandêmica, um cara alerta as pessoas sobre o que ele acredita ser “as mentiras do CDC” do seu país, a gloriosa América, e que um remédio pode ajudá-los a atravessar a crise: a forsítia. Basicamente homeopatia. E, claro, não dá certo, mas o ajuda a reforçar sua reputação e ele consegue ainda mais espaço, ao ponto de desbaratar autoridades revelando seus podres. Mas é justamente nas falas desse outsider que teremos a visão mais realista do que os animais sofrerão enquanto pesquisadores buscam desenvolver uma vacina:

Blogueiro: Sussman [um pesquisador] será premiado pela Academia Nacional de Ciências e as empresas farmacêuticas vão entrar numa corrida.

Blogueiro: Cultivarão o vírus em todos os laboratórios da Terra.

Blogueiro: É uma época ruim para os macacos de teste.

Blogueiro: Primeiro nós os mandamos para o espaço, e agora os injetamos com topo tipo de vírus.

Curiosamente, depois de quase dez anos da estreia do filme, o projeto Saber Animal tem início justamente em um blog e, bem, os personagens dizem:

Pesquisador: Blogging não é escrever, é pichação com pontuação.

Blogueiro: Sou jornalista e há discussões informadas na “blogosfera”.

De fato encontramos muitas discussões informadas na ainda muito ativa blogosfera. Mas essas discussões se estendem em podcasts, vídeos, redes sociais… E a analogia que usam para indicar o seu sucesso nessas distintas plataformas de conteúdo é, ironicamente, “viralizar”. Enquanto o seu conteúdo não “viraliza”, ele não é relevante.

Lamento e peço desculpas aos que leem esta crítica. É impossível falar do filme e da questão que agora nos tomou a todos de assalto, o coronavírus, sem falar do seu final. Está aí algo que evito e acho chato quando vejo fazerem, mas pondero: estragar a experiência de ver o filme não consiste apenas em se deparar com spoilers, mas ao apreciar a narrativa pela primeira vez, sem conhecimento prévio, o impacto tende a ser maior, mas nem sempre isso é o mais importante de algumas histórias. Só que no caso de Contágio, que tem uma estrutura não linear, com várias histórias correndo em paralelo deixando a trama dinâmica, temos um filme que começa no segundo dia da cadeia de eventos que levam a sociedade ao colapso e isto é proposital. Durante uma parte substancial do filme, pesquisadores e investigadores tentam identificar quando a epidemia mortal começou. Busca-se o paciente zero para, através da ciência, tentar estabelecer as causas de tudo aquilo e, bem, gerar mais informação para, talvez, nos protegermos melhor? É tudo meio vago nessa busca que, no filme, é em boa parte mal sucedida até que se ache uma vacina. Apenas nós, a audiência que à época do lançamento do filme (2011) até que tinha o que temer ante outras ameaças, como a primeira versão da SARS (no vírus SARS-CoV), que explodiu em 2003, e agora, em tempos do novo coronavírus, desde sua descoberta em 2019, tem mais ainda, ficamos sabendo como tudo se deu. É um presente que o diretor nos dá por termos aguentado firme até ali. Merecemos saber, mesmo isso sendo praticamente impossível. Eis que surge um momento deus ex machina (uma máquina fotográfica com fotos esquecidas encontrada ao acaso nos revela tudo com o acréscimo de um retorno no tempo) para ligar todos os pontos da trama:

  • A poderosa empresa multinacional AIMM, empregadora da primeira vítima estadunidense (numa interpretação bastante impactante), uma executiva, é a mesma que desmata florestas na China.
  • Morcegos que habitam essa floresta se veem obrigados a procurar outro lugar para viver.
  • Um deles ruma para uma área de criação de porcos.
  • O morcego comia um pedaço de banana e o deixa cair.
  • Um jovem porco come esse pedaço.
  • O porco é abatido e vai parar num restaurante que prepara um prato usando a carne do porco.
  • O chefe que prepara o prato, sem lavar as mãos, ele apenas as limpa no seu avental, é convocado para falar com uma cliente.
  • A cliente é justamente a primeira vítima: a mulher estadunidense.

O que pega (desculpem o trocadilho) em Contágio é que essa sequência de eventos, que se dá no fim do filme, se dá de maneira muito rápida e se você piscar perde a sequência arranjada para explicar como o vírus, previamente rastreado pelos pesquisadores do CDC estadunidense (sempre eles desvendando tudo), salta de um morcego, para um porco e depois para um humano. O desenvolvimento da vacina é outro ponto do filme, mas aí ele já pende para algo pouco crível: uma pesquisadora, depois de muitos resultados ruins, finalmente consegue fazer um macaco sobreviver aos testes. A vacina de número 57 dá resultados e ela testa em si mesma e depois em seu pai doente. A vacina é preparada, distribuída à população mundial toda adoecida e mergulhada em caos controlado parcialmente pelo militares. Há pessoas imunes ao vírus e as que potencialmente podem adoecer.

A situação na qual estamos, na realidade fora das telas, é tão urgente e grave, que está obrigando as empresas que criam vacinas a pular a fase de testes em animais e ir direto para testes em humanos. Convenhamos, esse é o cenário correto e ético, pois o que os animais têm a ver com os nossos problemas? Insistimos muito nessa questão no Saber Animal e por sermos veganos abolicionistas defendemos que esse seja o procedimento: que os testes sejam feitos diretamente com voluntários humanos, pois esses sim podem escolher se querem ou não participar da solução de um problema que é essencialmente humano. Por que os outros animais (lembrando aqui que também somos animais, ditos racionais) precisam pagar pelos nossos problemas, pela nossa curiosidade e pela nossa fúria assassina? Não deveriam e a situação atual é uma prova de que se quisermos, enquanto sociedade, mudar os rumos das coisas, precisamos agir diferente. Muitos outros aspectos das nossas vidas, agora que desaceleramos, também estão em xeque e agora todos podemos reparar o quão louca e sem sentido é a busca por um infinito crescimento econômico. Logo abaixo mais algumas falas reveladoras do filme:

Pesquisadora: O vírus contém as sequências do morcego e do porco.

Pesquisadora: Em algum lugar do mundo, o porco errado encontrou o morcego errado.

O morcego e o porco são os errados da história! Os humanos, bem, são humanos e parecem estar sempre certos, né? Não! Não há morcego e nem porco errados… Há apenas as nossas ações que levam ao encontro espécies que jamais se encontrariam na natureza, há uma alteração sensível dos mais diversos ecossistemas de modo tão rápido que não há menor chance para a adaptação. Ao mesmo tempo que temos milhares de cientistas alertando para as consequências dessas intervenções, temos tantos outros milhares de cientistas desenvolvendo técnicas e produtos que, além de usarem elementos da natureza como matéria prima que a destroem e degradam quando extraídos, modificam e transformam tudo em coisas que não existiam antes e não possuem um lugar natural no mundo. É um vasto conjunto de artificialidades que criamos que transforma a realidade naquilo que chamamos de realidade! A indústria petroquímica, extremamente poluidora e responsável por espalhar plástico no mundo todo, é altamente científica e transformadora da realidade – para pior, evidentemente.

A voracidade do ser humano, que quer consumir tudo o que há ao seu alcance, relegando aos animais e seu habitat à condição de coisa para o nosso usufruto é uma clara demonstração de dominação, ao mesmo tempo em que ela leva a todos nós para a cova de maneira tão absurda. Nós criamos todo esse desequilíbrio e depois passamos a negá-lo para então iniciarmos buscas por saídas que, geralmente, não atacam o problema principal: o que nós fazemos com os animais. Está identificado que 70% das novas doenças tem origem nos animais. E o que fazemos com eles, todos eles, é errado do ponto de vista ético e também do ponto de vista da nossa própria preservação como espécie. Na natureza é difícil encontrar casos de animais que provoquem tamanha destruição em seu próprio ecossistema. Paradoxalmente, se considerarmos os vírus seres vivos, eles seriam o nosso melhor paralelo para explicar o nosso comportamento em relação ao nosso hospedeiro, o planeta Terra.

“Cada pessoa é um superorganismo, uma coletividade de espécies vivendo lado a lado, em cooperação, para controlar o corpo que nos sustenta. Nossas células, embora bem maiores em volume e peso, são superadas à razão de dez para uma pelas células dos micróbios que moram dentro da gente e sobre nosso corpo. Esses 100 trilhões de micro-organismos – conhecidos como a microbiota – são predominantemente compostos por bactérias: seres microscópicos constituídos de uma só célula. Junto com elas, há outros: vírus, fungos e arqueias. Os vírus são tão pequenos e simples que colocam em xeque o conceito do que seria necessário para constituir “vida”, pois dependem das células de outras criaturas para se replicarem. Os fungos que vivem em nós em geral são levedos, organismos mais complexos do que bactérias, mas ainda assim unicelulares. As arqueias formam um grupo semelhante às bactérias, mas suas diferenças, em termos evolutivos, são tão significativas quanto as que separam as plantas dos animais. Juntos, os micro-organismos vivendo no corpo humano somam 4,4 milhões de genes – esse é o microbioma: o genoma coletivo de nossa microbiota. Esses genes cumprem seu papel no controle de nosso corpo junto com nossos 20 mil genes humanos. Segundo esses números, você é apenas 0,5% humano.” [10% Humano, de Alanna Collen]

A atual onda do coronavírus muito provavelmente nasceu num mercado de animais em Wuhan, na China. Do que se pôde ver na internet, vídeos esparsos mostram um lugar com várias espécies diferentes, sendo abatidas ali mesmo, com muito sangue e circulação de pessoas. É uma bomba-relógio, que explodiu silenciosamente e só foi percebida quando foi tarde demais. No ocidente, ficamos todos horrorizados, especialmente quando vemos gatos e cachorros à espera da morte. Os animais ali serão servidos das mais variadas formas e geralmente são comprados por pessoas com muitos recursos, pois são caros e atendem a demandas supersticiosas ou paladares insaciáveis. Os demais animais possuem suas doenças, claro, eles não vivem num mundo mágico de paz e harmonia. Os animais vivem seus próprios dilemas e quando atravessamos suas existências com a nossa fúria cega, não saímos incólumes, porque não somos tão diferentes deles assim. Ora, também somos animais e para os vírus, que poderíamos entender talvez como entidades em busca de sobrevivência e perpetuação, tanto faz o hospedeiro, contanto que ele possa dar as condições que ele precisa para se multiplicarem. O vídeo abaixo mostra a dinâmica dentro de uma perspectiva histórica desse mercado de animais e ajuda a entender as bases reais da ficção que há em Contágio.

É essa situação a qual, compreendida num nível extraordinário dado todo o nosso conhecimento acumulado por séculos, deveria nos fazer ainda mais cuidadosos e respeitosos com a natureza. Mas caminhamos justamente no sentido contrário quando transformamos animais em recursos. Tanto que se tudo no filme, e na realidade, começou mesmo com um vírus em um morcego, não é tão à toa que estejamos todos vendo o mundo como eles veem: de cabeça para baixo.

🎞️ Cinema: Contágio (2011)
Filmando o invisível
10
Qualidade das histórias paralelas
7
Como o filme foi arrematado
6
Em comparação com outros filmes do mesmo gênero
9
Pontos positivos
Bom ritmo
Bastante didático
Grande elenco
Pontos negativos
O arremate
Algumas atuações
Previsibilidade
8