📺 STREAMING: Professor polvo (2020)

Creig Foster interagem com polvo no fundo do mar em cena do filme Professor Polvo
Cena do documentário Professor polvo

Todos sabemos, a esta altura, que os oceanos estão severamente ameaçados pelas atividades humanas: nossas incessantes navegações comerciais, todo o plástico que produzimos, o esgoto que as cidades lançam, os cabos submarinos que fazem a internet funcionar, as perfurações em busca de mais e mais petróleo, as pesquisas estapafúrdias que servem apenas para manter o emprego dos pesquisadores e a verba para as universidades ao redor do mundo, a pesca e a caça intensiva, o material radioativo como no caso da usina nuclear de Fukushima (destruída por um tsunami), testes militares com bombas nucleares (além de submarinos com ogivas e motores também nucleares que afundaram e estão no fundo do mar podendo explodir a qualquer momento) etc. A diversa vida marinha, da microscópica àquela que enche os nossos olhos, está praticamente por um fio graças aos nossos diversos modos de vida modernos.

Em suma, aquilo que não vai parar na panela está morrendo ali mesmo no mar, tendo seu ciclo de vida encurtado ou até com uma espécie inteira sendo extinta (algumas das quais nem chegamos a tomar conhecimento).

A beleza e, principalmente, a delicadeza, do documentário Professor polvo (2020), de Pippa Ehrlich e James Reed, talvez um dos melhores disponíveis atualmente na Netflix, e que concorre ao Oscar de melhor documentário neste ano, entrelaça, a vida de Craig Foster, com a de uma polvo fêmea, a qual ele descobre meio que ao acaso durante seus mergulhos na África do Sul. Essas idas ao mar, para nadar como ele fazia na infância e juventude, restauraram sua energia vital, que estava sendo consumida por um estilo de vida que envolvia muito trabalho e pouca convivência com a família, com o lar e, ao que parece, consigo mesmo.

Trailer do filme Professor polvo

Sua história, que nos é apresentada antes de uma nova missão a qual ele se propôs, a de acompanhar diariamente a vida de um polvo, é singular pelo seu histórico: Craig seguiu, durante muitos anos, a vida de caçadores de uma tribo, a qual eu presumo ser a dos !Kungs, no Kalahari, que tinham uma grande capacidade de rastrear animais e perceber pequenas e sutis mudanças no ambiente.

Trata-se de uma abertura notável no documentário pelo valor simbólico, porque é como se ele tivesse criado uma máquina do tempo e voltado a uma era que talvez tenha sintetizado uma forma de arranjo social, a das sociedades tribais, que tinham mais equilíbrio com o meio ambiente, sem extrair dele nada além do necessário, geralmente. Os !Kungs vivem hoje basicamente como viviam nossos antepassados há 20 mil anos e, por tal motivo, geram tanto interesse e foram alvo do trabalho de Craig. Isto não quer dizer que o nosso passado ancestral seja de todo glorioso e que devemos abandonar tudo o que temos hoje e voltar a viver como nos primórdios da civilização… Não, pois antes de qualquer arma ou veículo ser inventado, a nossa espécie já tinha levado à extinção, por exemplo, a megafauna que habitava este planeta.

O escritor Jared Diamond diz em seu livro, O mundo até ontem: o que podemos aprender com as sociedades tradicionais?, que podemos tentar unir, mesmo com pequenas ações, o melhor do mundo moderno do qual desfrutamos hoje e do mundo tradicional, que ainda existe apenas de modo localizado como no dos !Kungs e outros com os quais ele teve contato. Mudar a alimentação, a forma como criamos nossos filhos, como tratamos os idosos etc.

Não existe uma forma em que nós humanos não causemos algum efeito sobre a natureza, da qual também fazemos parte, mas em nenhuma outra Era fomos tão destrutivos quanto essa de um capitalismo cada vez mais globalizado – um herdeiro direto dos novos arranjos da Idade Moderna. Esse tipo de vida tribal e bem alinhada ao ambiente também era visto por aqui na América do Sul, claro, nas populações indígenas, massacradas pelos europeus e seus descendentes (basta ver a quantidade de bairros e ruas com nomes indígenas habitados por não indígenas nas diversas cidades brasileiras), que se integravam às florestas de forma equilibrada. Elas geravam algum impacto, evidentemente, mas nada comparado ao que temos hoje.

Jacques Cousteau, o terrível

Vale dizer que para quem já assistiu a qualquer um dos documentários sobre vida animal, especialmente aqueles sobre a vida marinha, deve ter notado que, especialmente depois de Jacques Cousteau, houve uma sofisticação dos recursos para filmagem e mesmo da própria abordagem do que se observava evitando interação excessiva com animais ou capturas. É assim em produções como Planet Earth e Blue planet, ambos da BBC.

Assistir ao ganhador do prêmio Palma de ouro, O mundo silencioso (1956), dirigido pelo mergulhador e pelo célebre diretor Louis Malle, dois franceses, nos dias de hoje, é ver, sempre tentando manter um olhar animalista, um espetáculo de absoluta predação humana e não de uma pretensa “pesquisa científica” ao qual se propunham os tripulantes do famoso navio Calypso.

Em uma das cenas, por exemplo, os “pesquisadores” usam dinamite(!) para conseguir pegar o maior número de espécimes possível e indicam que esse era o único método disponível… Eles dizem que para a pesca tal prática era proibida, mas para pesquisa tudo bem explodir centenas ou milhares de peixes. A barbárie sobre a terra, claro, também foi levada ao fundo do mar com esse viés de “pesquisa”. Ver a pequena explosão me lembrou imediatamente dos testes com bombas nucleares no Atol de Bikini, uma agressão numa escala mil vezes maior, mas que não deixa de ter semelhanças simbólicas.

Jean-Michel e Jacques Cousteau, filho e pai em atividade de mergulho, 1948

Quando criança e adolescente, ao assistir muitas dessas “aventuras” pelo canal público de televisão, não me dava conta, claro, dos danos que eles estavam causando à fauna por onde passavam. Confesso que também não me recordo de ter visto nada tão horrendo quanto este filme que uso aqui a título de comparação, pois Jacques Cousteau fez 70 filmes só para a televisão e pode ter mudado sua visão em relação aos animais e passado a nutrir preocupações ecológicas. Mas neste caso de O mundo silencioso, tudo era mal disfarçado por uma edição ágil e uma trilha sonora triunfante. Seria quase como se tivessem filmado as invasões dos europeus nas Américas no século XV e depois nos vendessem os registros como produtos “educativos”. Bom, na verdade, fizeram isso, não com filmes, claro, mas com uma vasta iconografia que tende a ser tirada de contexto quando fora das boas aulas de história e fazendo crer, entre outras coisas, que a escravidão era algo justificável dentro do sistema econômico colonial. As imagens são muito poderosas e não à toa são tão usadas e possuem tanto valor.

O tal “mundo silencioso” que dá nome ao filme é totalmente equivocado, portanto, pois o caos que aqueles marujos paspalhões (praticamente uns piratas da natureza) sob os auspícios de Cousteau causavam era puro terror para os animais que tiveram o azar de se deparar com eles. As lagostas capturadas foram parar no almoço da tripulação, uma tartaruga marinha foi agarrada e “galopada” na água (depois fizeram isso também em terra com outras tartarugas), atropelaram um filhote de baleia em alto mar o ferindo gravemente e arrancaram tubarões (que atacaram o filhote morto) do mar violentamente e os matavam a pauladas ou os deixavam simplesmente sufocar na embarcação para coletar mais indivíduos. Muitas outras cenas mostram os peixes morrendo lentamente fora da água com uma narrativa em off explicando e justificando a matança de maneira muito polida.

Colocar O mundo silencioso ao lado de Professor polvo beira o surreal, pois as posturas de Jacques Cousteau (naquela época) e Craig Foster (agora) são de níveis absolutamente distintos. Um registrou, destruiu e interferiu, o outro registra, não interfere e tenta preservar.

A National Geographic e a sua maldita crittercam

Ainda vislumbrando um pouco o que nos deixa atordoados ao ver um documentário como este de Pippa Ehrlich e James Reed, o nível da barbárie apenas diminuiu nos registros que continuei vendo ao longo da minha vida com uma invenção de Greg Marshall, o criador da famigerada crittercam, um aparato que, acoplado a um animal selvagem, registra a sua vida por longos dias. O aparelho, claro, é um estorvo e fonte de grande perturbação para qualquer animal que, sem oportunidades de defesa ou reação, não consegue se desvencilhar daquilo que lhe penduram ou grudam ao corpo. O objetivo do aparelho, além de produzir imagens estonteantes e vendê-las pelo mundo em gordos contratos de televisão, é “reunir dados” para “pesquisas científicas”.

Com certeza essas imagens me impressionaram e quando as vi não pensei nos animais, pois sob o efeito do que via, do espetáculo que só os humanos são capazes de compor numa tela, esse show de horrores para ser exibido para toda a família, ansiava por ver mais e mais. Muitas outras produtoras se especializaram nisso e lembro que não só na televisão pública, mas em uma emissora como a Rede Globo, no programa Fantástico, tínhamos acesso a conteúdos que exploravam a vida selvagem. E explorar, me parece a palavra certa nesse contexto. E sem saber dos bastidores dessas produções é sempre muito difícil mensurar o impacto que elas causaram.

Greg Marshall mostra a crianças, no National Geographic Explorers Camp, como funciona a sua invenção, a crittercam, 2009

Apesar do grande prestígio da publicação americana, a National Geographic, a qual nós inclusive já recorremos a algumas reportagens para produção do nosso conteúdo aqui no Saber Animal, ela também não deixa de ser especista ao interferir de tal modo na vida de outro ser vivo apenas pelo ímpeto da curiosidade e de finalidades enganosas como as da “preservação” através do conhecimento. Professor polvo, nesse sentido, serve quase como um manifesto contra essa abordagem fílmica tão invasiva e perigosa para os animais. A sensibilidade deles e sua interação com mundo é delicada e apenas uma abordagem igualmente delicada é a mais adequada para incomodar o mínimo possível.

Craig Foster, no documentário da Netflix, anuncia que mergulhará diariamente sem cilindros ou qualquer outro aparato além da câmera para não perturbar um habitat que não é o seu. Tanto é que ele opta deliberadamente em não interferir quando sua amiga polvo fêmea é atacada por um predador natural, um tubarão, algo que nos gera grande aflição, pois até nós, a audiência, já temos afeição pelo animal que ele, àquela altura, depois de tantos mergulhos diários, estima e, sem medo de errar, podemos dizer que até ama. Depois, em novas investidas do predador, graças a não interferência do mergulhador, conseguimos vislumbrar o quão inteligente ela é em conseguir se esquivar, enganar e sobreviver a mais um ataque que poderia ser, desta vez, fatal. É como se estivéssemos assistindo a algo imaginado por um roteirista de uma animação de tão engenhosa que é a polvo fêmea em ludibriar seu poderoso perseguidor.

Diferente de um animal do qual somos tutores, aos quais chamamos de “animais de estimação”, a aproximação com um animal selvagem deve ser evitada e não estimulada (dando comida, por exemplo), pois isso gera um desequilíbrio num ambiente já resolvido graças a milhões e milhões de anos de evolução natural. Querer saber mais sobre outras espécies não é um problema, muito pelo contrário, quanto mais sabemos, mais podemos aprender a sermos melhores e vivermos com algum equilíbrio, por mais desvantajoso que seja para os animais que não podem escapar da nossa voracidade por seus corpos e conhecimento. Agora, o problema é transformar isso numa outra coisa, que vai além da curiosidade e passa a ser um empreendimento como a manutenção de uma revista como a National Geographic ou mesmo a fama de Cousteau e suas dezenas de filmes.

O polvo fêmea sonha com os humanos?

Durante o filme, Craig Foster, pergunta se os polvos sonham. É uma pergunta que podemos responder sim ou não a depender da nossa imaginação. Eu creio que sonhem, sim, e isso me basta. É bem provável que sonhem, pensando bem. Porque são nitidamente muito inteligentes e apesar de serem moluscos e não mamíferos, podemos ao menos presumir que outras formas de vida bem diferentes da nossa conseguem fazer coisas parecidas como sonhar. Polvos são seres sencientes, ora… Mas a pergunta que deveria ficar no exclusivo campo da especulação filosófica é posta à prova por aqueles que, conforme já disse em outros momentos, possuem o mesmo sentimento que Joseph Mengele tinha em seu coração quando direcionava sua curiosidade à crianças judias gêmeas. Mengele talvez possa ele próprio ter se perguntado em algum momento se crianças gêmeas têm o mesmo sonho e, para desvendar sua curiosidade, poderia ter aberto o crânio de algumas delas, ainda vivas, para ver o que poderia tentar descobrir com sua “pesquisa”. Não consigo pensar em nada mais abjeto que isso, mas muitos pesquisadores levam algo assim adiante com animais, todos os dias, em suas “pesquisas”.

Recolher esses animais de seu habitat natural já é uma tremenda agressão a eles. Quando Craig derruba acidentalmente a lente de seu equipamento de filmagem e assusta sua amiga polvo, ela foge desesperada e, inclusive, muda de esconderijo ficando fora de vista por uma semana inteira. Sua sensibilidade é tanta que ela interpreta o brusco movimento como uma ameaça à sua breve vida (dois anos) e à sua integridade. O ser humano ali é, para o polvo, um ser estranho, ao qual ele não sabe identificar como sendo um predador, uma presa ou nenhuma das duas coisas. Daí que remover os polvos de seu habitat representa o que a eles? Certamente é uma violência equivalente a que nós humanos experimentamos quando somos expulsos ou temos que fugir de nossas casas ou países quando alguma ameaça surge no horizonte – a ascensão do nazismo, por exemplo.

Será que os polvos capturados sonham em voltar para o mar?

Sinto, então, cada vez mais desprezo por essas “pesquisas” que servem apenas a saciar a curiosidade humana num nível extremamente cretino… É o caso do brasileiro Sidarta Ribeiro, que, conforme ele mesmo diz, desde o fim de seu doutorado, nos anos 2000, queria estudar os polvos. O “pesquisador” é muito celebrado por estas bandas por “pesquisas” relacionadas ao sono dos humanos. E ele, mesmo não fazendo absolutamente nada inovador, consegue angariar prestígio à custa da tortura de ratos de laboratório. Ele insere, como muitos outros “pesquisadores” fazem no mundo todo, eletrodos nos cérebros dos pequenos mamíferos para saciar uma curiosidade que é financiada por universidades privadas ou públicas. “Estudar” tão somente o sono e o sonho dos humanos não basta. Eles precisam explorar macacos, ratos e polvos…

O “pesquisador” tem a cara de pau de achar engraçado o fato de não conseguir usar os mesmos métodos que aplica em ratos (e outros mamíferos) num molusco:

“O problema é medir isso diretamente. ‘Quando comecei a pesquisa, achei que ia conseguir registrar dados sobre os neurônios dos animais com métodos parecidos com os que uso nos ratos, mas foi um ledo engano. Até agora falhamos miseravelmente na hora de tentar estabilizar eletrodos nos bichos, é tudo mole e escorregadio, e eles não aceitam nenhuma tentativa de imobilização. Simplesmente não há ossos onde se possa firmar um parafuso ou resina. Problemaço!’, lamenta o neurocientista [Sidarta Ribeiro].” Polvos têm diferentes estágios de sono, assim como os humanos, e parecem até sonhar, por Reinaldo José Lopes

Quero crer que qualquer pessoa atenta que tenha assistido a Professor polvo ficará incomodada com essa curiosidade sádica quando tomar conhecimento desse tipo de “pesquisa”. Se ficar, o documentário teve algum efeito positivo em demonstrar a individualidade de ser tão diferente da gente.

Nem tudo é um mar de rosas

Como preconiza o autor Randy Malamud, no texto Animais no cinema: a ética do olhar humano, que, para mim, tem sido uma referência quando escrevo sobre o ponto de vista animalista analisando um filme ou documentário, o ideal é que nem conseguíssemos ver o animal objeto de interesse; que não tivéssemos contato com ele e que a nossa curiosidade não fosse saciada. Mas, num mundo imagético e espetacular como o nosso, isso é bem pouco provável de sustentar e justificar na mesa de negociação de executivos de grandes publicações, canais de televisão ou mesmo produtores de filmes… E alguns animais, mesmo os selvagens, sempre estarão ao alcance das nossas vistas já que estamos cada vez mais perto de seus habitats. Seja no mar, na terra ou no ar, poderemos vê-los em seu esplendor diretamente ou por produções como Professor polvo. Alguns, aqueles com vida noturna ou mais sorrateiros, talvez nunca sejam vistos, sem contar os milhões de insetos, e reinem apenas no mundo da fantasia, como já foram os mares nunca navegados e que enchiam de medo as tripulações com as ameaças de monstros que poderiam destruir caravelas.

No igualmente interessante documentário Homem urso (2005), de Werner Herzog, em que o registro da vida de Timothy Treadwell, um homem que acreditava ser amigo dos ursos, termina de modo trágico com ele e sua namorada sendo atacados e mortos por ursos que não estavam tão habituados assim com a presença deles em uma região um pouco distante da qual ele costumava frequentar no Alaska (EUA). Para os ursos eles não eram amigos, eram apenas presas das quais poderiam se alimentar – tanto que o fizeram. Herzog nos poupa dos detalhes desse ataque, que ficou registrado, principalmente o áudio, no equipamento que Timothy levava consigo e no qual fazia um diário. Ironicamente, essa quase crittercam, mas pendurada em humano e não em um animal não humano, foi excluída da audiência pelo horror que carregava dentro de si conforme a avaliação de um experiente documentarista, apesar do seu valor documental. Depois de se emocionar, Herzog sugere, inclusive, que o áudio seja destruído.

Também já tivemos muitas notícias de aventureiros experientes, que buscam contato com animais selvagens de maneira bem agressiva, e acabaram mortos. Foi o caso de Steve Irwin, que ficou mundialmente famoso por atormentar répteis e por fazer shows no Crocoseum, uma espécie de SeaWorld, com crocodilos na Austrália… Ele acabou sendo atacado por uma raia enquanto mergulhava e morreu ao ser atingido pelo ferrão do animal diretamente no coração. Seu filho Robert e sua filha Bindi, infelizmente, não aprenderam a ver esse contexto de outra forma e seguem os caminhos do pai. Mas, quase como o avesso dessa história, também vemos uma relação de pai e filho em Professor polvo. O filho de Craig Foster, Tom, aparece nadando com seu pai e tendo seu primeiro contato com um filhote polvo – que Craig acredita ser de sua amiga querida. Os dois garotos, Robert e Tom, e a garota Bindi são praticamente da mesma geração e possuem influências extremamente distintas. Quem sabe um dia eles não se encontram e convergem para a verdadeira preservação animal, isto é, preservando seus habitats sem incomodá-los e sem explorá-los.

Steve Irwin e seus filhos, Robert e Bindi, ainda pequenos: ambos, atualmente, seguem o caminho do pai, morto em 2006 por uma raia
Tom e Craig Foster, filho e pai com interesses comuns: preservar

O contato com outras espécies é temerário, para ambas, pois o limiar entre a aceitação e a tolerância, que entre humanos é calcada na confiança estabelecida pela linguagem, nas regras de cada cultura e em sutis arranjos sociais, é inventada praticamente do zero com animais que não passaram pelo longo processo de escravização (como bois, cachorros, cavalos etc). Assim como ursos, os polvos já atacaram pessoas no mar. Os casos são raros, assim como ataques de tubarão ou de qualquer outra espécie que temos em nosso imaginário como “assassinos” ou “monstros”. Craig Foster poderia ter sido mordido caso um laço de confiança não tivesse sido estabelecido. E, ainda assim, a tendência é projetarmos as nossas emoções, e a nossa compreensão dela, variando de cultura para cultura, para a reação dos animais diante da nossa interação. Esse encontro sempre estará numa zona cinzenta de compreensão – a nossa e a deles, certamente.

Quando o polvo fêmea vai em sua direção e o toca ou mesmo quando ela fica em seu peito, talvez demonstrando absoluta confiança em Craig, temos um contato que não parece o ideal apesar de ter toda essa carga de emoção que é importante para nos demover de nossas ações predatórias. Comer um polvo é uma diversão para muita gente, mesmo o animal sendo tão sensível e inteligente. Talvez algumas pessoas abandonem esse hábito após ver esse documentário, quem sabe? Seus neurônios estão espalhados pelo corpo ao invés de se concentrarem apenas no cérebro, sua habilidade incrível de mudar de cor, sua grande velocidade e perspicácia na caça de caranguejos… Percebemos isso graças ao registro cotidiano do mergulhador que, aproveitando o embalo, criou uma fundação preservacionista para manter aquele habitat seguro, a Sea Change Project.

Essa aproximação é um dilema e faz parte daquilo que podemos problematizar nos filmes dessa categoria sem esgotar o intrínseco valor documental.

Aprendendo com os animais

Diferentemente de outras referências que trago comigo, e que já tiveram caráter “educativo”, sinto que Professor polvo, este sim, terá um papel muito importante não apenas para novas gerações de documentaristas, mas também para muitos outros profissionais que, como Craig Foster, conseguiu enxergar a individualidade de um polvo fêmea que, diante de seus olhos, se revelou como dificilmente faria ante um “pesquisador” cheio de “boas intenções” como Sidarta Ribeiro. Ele, muito provavelmente, viu o mesmo em tantos outros seres daquela espetacular fauna da False Bay (na África do Sul) e sua floresta de algas submersa repleta de vida e segredos que, sinceramente, podem continuar nessa condição, para que possamos sonhar, à distância, sob a influência dessa obra.

Os polvos, além de irem parar no prato de muitas pessoas, já foram sacaneados de outras maneiras que deixam claro o quão cruéis nós ainda somos.

No mesmo canal educativo em que vi os documentários do Jacques Cousteau (os que ele fez especialmente para televisão e não para o cinema), busquei a lembrança de um fato que envolveu o inusitado encontro de um polvo e o futebol. Creio que, além das vuvuzelas, todos devem se lembrar que na Copa do Mundo de 2010, realizada na mesma África do Sul do documentário, um polvo em um aquário era deixado lá para adivinhar qual time ia ganhar numa determinada partida. O polvo se agarrava a um objeto com a bandeira de um país participante e seus acertos faziam a diversão das pessoas que o viam como um “polvo vidente”. Era como levar um polvo a um circo, mas, desta vez, um circo que é visto pela televisão, no mundo todo. Ninguém parece ter cogitado, em momento algum, que o lugar daquele indivíduo, que era chamado de Paul, era o mar, pois, como diz erroneamente a reportagem, ele não se “radicou” em país algum, na verdade ele foi extraído e levado de um país a outro para terminar sua breve vida confinado num pequeno aquário.

Temos, de fato, muito o que aprender com os animais não humanos, principalmente educadores, jornalistas, documentaristas e pesquisadores. Respeitar a vida e o direito de viver em seus habitats naturais já seria um bom começo.

Favorito ao Oscar

Além de Professor polvo, que já vem recebendo prêmios pelo mundo, o documentário Gunda (2020), de Viktor Kosakovskiy, também esteve na pré-lista da premiação do Oscar, mas não foi escolhido. É uma pena não termos, então, dois filmes com viés animalista na disputa. Para mim, esta sim, seria uma escolha difícil. Se ganhar, o filme, que está disponível em streaming, certamente será ainda mais visto e isso é muito bom dada a sua proposta. Fico na torcida para que Gunda fique também tão acessível quanto, pois os cinemas seguem fechados por conta da pandemia e são bem mais caros.

📺 STREAMING: Professor polvo (2020)
Uma visão preservacionista
9
Extremamente delicado
10
Apresenta o habitat
9
Excelente desfecho
10
Pontos positivos
Mostra a relação de pai e filho
Se desdobra em projeto de preservação
Uma bela fotografia
Pontos negativos
Há algum contato direto com o animal
Trilha sonora emotiva
Deveria ser gratuito
9.5