☢️ O PL 191/2020 de Jair Bolsonaro e seus ministros

Indígenas protestam em Manaus-AM

Texto revistado e editado pela advogada Vanice Cestari.

Uma nova investida do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) se materializou no Projeto de Lei nº 191/2020, de autoria de dois de seus ministros: Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Júnior (Minas e Energia) e Sergio Fernando Moro (Justiça). A intenção é de regulamentar os artigos 176, § 1º e 231, § 3º, da Constituição Federal (ver abaixo) com o intuito de indicar de que forma se dará, lamentavelmente, a exploração econômica de diversos territórios indígenas. Os dois artigos estavam “adormecidos” na CF e nunca foram regulamentados, mas isso pode mudar. E para pior, pois as consequências para essas áreas podem resultar na destruição completa ou afetá-las de modo parcial a depender da prática: mineração, extrativismo, agricultura, pecuária e turismo. Apenas a última sendo a com menos possibilidade de danos se for conduzida de modo responsável (coisa que neste governo não parece ser possível). No mesmo dia da apresentação do PL 191/2020, Bolsonaro aproveitou para publicar portaria permitindo a pesca esportiva em unidades de conservação ambiental e excluiu a sociedade civil da participação do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA). Parece cínica a promessa do PL de querer conferir proteção às terras indígenas quando, há tempos, o garimpo ilegal e toda sorte de ameaça já acometem os povos originários.

Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.

§ 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

Não é tão simples precisar as motivações dos dois ministros nesta questão, pois ambos nitidamente têm uma agenda própria e não parecem estar apenas atendendo a um pedido do chefe. Bento Albuquerque, que além de militar da Marinha é físico, tem grande interesse em desenvolvimento nuclear, e já muito ativo durante o processo de transição do governo do golpista Michel Temer para o atual, agora combinado ao interesse dos estadunidenses em vender equipamentos e tecnologia para construção de usinas nucleares em território nacional. Daí que a exploração de urânio (danosa por si só) se faz mais que necessária, porque é com ele devidamente tratado que se põe para funcionar uma usina desse tipo. O fato de áreas indígenas guardarem esse minério (e tantos outros) em seu subsolo, como é o caso das terras dos Waimiri Atroari, dos Kayapó Xikrin, e dos povos reunidos no Parque indígena do Xingu (Aweti, Kalapalo, Kamaiurá, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Naruvotu, Trumai, Wauja e Yawalapiti), evidencia ainda mais a urgência desse Projeto de Lei, classificado como prioritário nas comissões que o avaliarão, para colocar de pé o plano de construção de seis novas usinas nucleares no Nordeste e Sudeste brasileiro.

A Indústria Nuclear Brasileira (INB), que detém o monopólio da pesquisa, da produção e do beneficiamento de urânio no Brasil, estava com sua produção parada desde 2015 por conta da falta de atividade na mina a céu aberto de Cachoeira, em Caetité, na Bahia, pois ela deixou de ser viável economicamente. Novas minas no país com uma das maiores reservas do mundo se fazem urgentes para atender as ambições nesta área, que atenderá o mercado interno e externo gerando recursos para serem reinvestidos no próprio segmento. No vídeo abaixo é possível ver os problemas, que não são poucos, causados pela mineração de urânio:

Reportagem sobre a mina de urânio em Caetité, na Bahia

Alguns dos principais aspectos do PL 191/2020 (TV Câmara):

  • Consultar os indígenas afetados
  • Autorização do congresso nacional
  • Pagamento às comunidades indígenas atingidas
  • Indenização aos indígenas pela restrição de uso de suas terras
  • Conselhos curadores vão gerir o dinheiro e decidir sobre o pagamento da repartição dos resultados e da indenização pela restrição do uso das terras indígenas
  • Os conselhos vão ser entidades de natureza privada e compostos por, no mínimo, três indígenas
  • Perspectiva de os indígenas explorarem economicamente suas terras com agricultura, pecuária, extrativismo e turismo
Infográfico do jornal O globo indicando áreas de mineração e de interesse.
Mapa da Funai indicando terras indígenas

Se o projeto for mesmo aprovado, caberá a combalida Funai, hoje ligada ao Ministério da Justiça de Sergio Moro (falarei dele mais adiante), a interlocução com os povos indígenas, incluindo os povos isolados, explicar e divulgar os estudos técnicos que justificam as ações exploratórias nas terras indígenas que podem resultar em indenizações. Ou seja, ao indenizar os indígenas pela destruição de suas terras, teremos, finalmente, um acordo legalizado com os povos originários para explorar as terras até então protegidas ou permitir aos indígenas o uso delas para atividades econômicas. Nem todos povos aderirão a pecuária ou ao extrativismo, mas alguns povos podem achar vantajoso ou necessário para sua subsistência fazer o que os não-indígenas sempre fizeram: destruir tudo ao seu redor.

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Bolsonaro vem sinalizando esse desejo desde longa data e quando colocou Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente (o último ministro a ser escolhido por ele), jogou uma pá de cal sobre essa questão para quem ainda tinha alguma esperança de que o final fosse diferente. Este outro ministro vem agindo no sentido de também abrir caminho para empresários explorarem regiões protegidas, mas suas ações estão mais centradas em sucatear, deslegitimar e desmontar tradicionais órgãos de proteção como o IBAMA e o ICMBio. Salles, mais um negacionista das emergências climáticas, também ficou famoso ao sabotar o ingresso de dinheiro da Alemanha e Noruega que financiavam ONGs que protegiam a floresta amazônica. O ministro também vem usando seu cínico sorriso para causar mal estar em fóruns internacionais. Vale lembrar que ao ser entrevistado no programa Roda Viva, ele disse que não dava a mínima para quem foi Chico Mendes.

OS MILITARES VOLTAM A MARCHAR

Há, vale frisar, precedente no fato das questões indígenas serem tratadas por militares no Brasil. Por estarmos vivendo numa espécie de democracia com pendor ao militarismo, não deixa de ser sintomático a questão estar de volta nas mãos de um militar – o almirante Bento Albuquerque. Mas ao invés de armas e estradas, como foi o caso da violenta construção da BR 174, este novo de regime que vivemos usa dos recursos da democracia para avançar sobre direitos consolidados dos cidadãos e dos povos indígenas. É oportuno, portanto, um projeto de lei feito sob encomenda para atender os planos de investimento de 30 bilhões de dólares em energia nuclear e com urânio garantido sendo extraído de terras indígenas! O impacto ambiental será indelével, a indenização a qual os indígenas terão direito apenas acelerará o fim de suas etnias e culturas.

Os Waimiri Atroari, durante muito tempo, estiveram presentes no imaginário do povo brasileiro como um povo guerreiro, que enfrentava e matava a todos que tentavam entrar em seu território. Essa imagem contribuiu para que autoridades governamentais transferissem a incumbência das obras da rodovia BR 174 (Manaus-Boa Vista) ao Exército Brasileiro, que utilizou de forças militares repressivas para conter os indígenas. Esse enfrentamento culminou na quase extinção do povo kinja (autodenominação waimiri atroari). A interferência em suas terras ainda foi agravada devido a instalação de uma empresa mineradora e o alagamento de parte de seu território pela construção de uma hidrelétrica. Mas os Waimiri Atroari enfrentaram a situação, negociaram com os brancos e hoje têm assegurados os limites de sua terra, o vigor de sua cultura e o crescimento de sua gente. [Waimiri Atroari, de Povos Indígenas no Brasil]

O Brasil já é detentor de todo o ciclo de produção de combustível nuclear graças a… Marinha Brasileira e seus projetos na área, da qual o Bento Albuquerque era almirante até ontem. Só não se tem controle, porque o Brasil não tem capacidade de produzir urânio enriquecido o suficiente para atender as demandas das usinas que já operam por aqui e também para futuros submarinos nucleares, que aumentariam o poder bélico das forças armadas brasileiras, isto é, não tem capacidade de escalar a produção.

Art. 21 (CF). Compete à União:

XXIII – explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:

a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional;

O ex-almirante e atual ministro pôde ser visto na inauguração da 7ª cascata de ultracentrífugas de enriquecimento de isotópico de urânio em 2018. Essas cascatas são necessárias para enriquecê-lo artificialmente, tornando útil para criar o combustível das usinas (seus excedentes também podem ser convertidos em plutônio para construção de bombas!). Esse ímpeto tem o intuito de garantir ao Brasil a autossuficiência no enriquecimento do urânio, que, para tanto, precisa de mais urânio e mais cascatas (sem trocadilho). É algo bem complexo, restrito a pouquíssimos países no mundo, o qual o Brasil faz parte do seleto grupo de apenas 4 países (com EUA, China e Rússia) que tem urânio e tecnologia para lidar com ele. É algo estratégico e que nos coloca na mira dos americanos em busca de acordos e gordos contratos que envolverão o governo e a iniciativa privada. O BNDES entrará nessa novamente em ação para nos levar para um futuro sinistro – com todo mundo pagando essa conta…

QUEREMOS JUSTIÇA, MAS NÃO ESTA QUE AÍ ESTÁ!

Sergio Moro, que apesar de não ser tão inteligente quanto seu par, entra nessa história de duas formas diferentes (ambas argutas o bastante para colocá-lo por cima). O Brasil tem duas usinas nucleares: Angra 1 e Angra 2. A construção da Angra 3 foi interrompida pela Lava Jato, força tarefa do Ministério Público Federal do Rio Janeiro que, posteriormente, viemos a saber, graças ao The Intercept Brasil, tinha como líder de fato o então um juiz federal de 1ª instância, o próprio Sergio Moro. E como já observei mais acima, a Funai está ligada ao Ministério da Justiça. Não era esse o desejo de Moro, contudo, que queria se ver livre da Fundação Nacional do Índio, entregando-a para a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. A falta de interesse de Sergio Moro em maio de 2019 refletia a sua falta de contato com lideranças indígenas que faziam questão da permanência da Funai na sua pasta. Seu descaso pela Funai e por tudo aquilo que foge do seu projeto pessoal de poder já era nítido na época em que era juiz e, já contrariando a Constituição Federal e também o código de ética da magistratura, tinha deixado a isenção de lado e dado início ao movimento político que tornou Bolsonaro presidente e ele ministro… Hoje a situação é outra e a Funai, agora, lhe serve para dar cabo dos direitos indígenas e pavimentar o “progresso” do país através de, entre outras coisas, a ascensão da indústria nuclear em um período crítico de necessidade de preservação das florestas, fauna e flora e não a sua destruição.

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Não seria necessário dizer, mas ao mesmo tempo que desprezam os indígenas e seus interesses, Bento Albuquerque e Sergio Moro ignoram a fauna silvestre que será eliminada com a exploração das terras indígenas. Não dão a mínima para importantes ecossistemas e dão de ombros para a enorme biodiversidade que fica sob risco ante tamanha agressão que o PL 191/2020 traz em seu bojo. Cabe, então, ao Ministério Público Federal, se ele ainda tiver vontade própria, intervir em favor dos indígenas, dos animais não-humanos e da natureza. E conforme indica o portal de notícias Radar Amazônico, o MPF pareceu mesmo incomodado e tudo indica que vai fazer valer o que diz a nossa Carta Magna:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

V – defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;

Agora, como as comunidades indígenas terão capacidade de analisar e compreender o impacto e a dimensão dos estudos técnicos que nortearam as atividades exploratórias? A Funai será capaz de explicá-los? Como se dará essa função para valer? As etapas necessárias para garantir a indenização serão acessíveis a todos os povos indígenas se esse projeto avançar? E o mais importante: com a negativa indígena, o Presidente, único com a prerrogativa de enviar ao Congresso o pedido de permissão de exploração e autorizado a aprovar os trabalhos, será dissuadido a seguir com a empreitada? Provavelmente, não. Não fica nítido no Projeto de Lei como se dará o processo se não houver o consentimento dos indígenas apesar do Art. 33 indicar que ele é necessário, ele parece valer apenas para a atividade garimpo e não para as outras (agricultura, pecuária extrativismo e turismo), ou seja, os indígenas não terão pleno poder de veto. O poder público vai forçar os indígenas a aceitarem ou vai aceitar tranquilamente a recusa deles? Veremos mais sangue dos povos originários sendo derramado em pleno século XXI, depois de tantos séculos de exploração caso a coisa fique realmente complicada? Os indígenas poderão resistir? Como será feita essa interação em áreas em que há distintos povos indígenas e interesses divergentes (os indígenas não são um corpo único e possuem além de culturas e línguas diferentes, interesses divergentes e toda sorte de liderança)? Quem aprovará a exploração nesses casos? A situação é demasiadamente complexa para um projeto de lei feito para burocratizar a Funai e fazer dos indígenas povos sem ação, vontade e direitos.

A OPOSIÇÃO PRECISA SE ARTICULAR O QUANTO ANTES

Os dois ministros, cada um a seu modo e cada um dentro do seu espectro de ação, assinam um projeto que certamente destruíra biomas e centenas de povos indígenas se avançar no Congresso e no Senado. Não faz parte dos planos do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM) pautar projetos deste tipo, mas ele não terá mais o cargo em 2022, quando não terá mais direito a uma nova chance de se candidatar à presidência da casa e o novo ocupante pode facilitar as coisas. Até lá o projeto já deve ter passado por todas as comissões e, infelizmente, a chance dele ser aprovado sem grandes mudanças é grande, pois a oposição continua desmantelada e desarticulada. Ela quase não conseguiu impedir o projeto anticrime, de autoria de Sergio Moro, sem alterações importantes. Num esforço quase isolado de alguns parlamentares da oposição, como Marcelo Freixo (PSOL), itens abomináveis foram removidos, mas outros tantos passaram. E, novamente, é o PSOL que se manifesta contra o PL 191/2020… Desconfio também que essa mesma oposição (e diversos movimentos sociais, ativistas e interessados na temática) não cruzou esses dados do interesse estadunidense e o desenvolvimento do programa nuclear brasileiro encabeçado pela Marinha (que não é de hoje!). Parece que nada pode deter a vontade de destruição deste governo. Que os xapiripë nos ajudem!

Derrubaram toda a floresta de sua terra para fazer roças cada vez maiores. ‘Omama’ tinha ensinado a seus pais o uso de algumas ferramentas metálicas. Mas já não se satisfaziam mais com isso. Puseram-se a desejar o metal mais sólido e mais cortante, que ele tinha escondido debaixo da terra e das águas. Aí começaram a arrancar os minérios do solo com voracidade. Construíram fábricas para cozê-lo e fabricar mercadorias em grande quantidade. (…) Por quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite. Fechou-se para todas as outras coisas. Foi com essas palavras da mercadoria que os brancos se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar a terra e a sujar os rios. Começaram onde moravam seus antepassados. Hoje já não resta quase nada de floresta em sua terra doente e não podem mais beber a água de seus rios. Agora querem fazer a mesma coisa na nossa terra. [A Queda do Céu, palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert]