🎞️ Cinema: Cães do Espaço (2019)

Cena do filme Space Dog: cachorro vagando pelas ruas de Moscou passando por uma poça d'água
Cena do filme Cães do Espaço

Foi num fim de tarde apressado de outubro de 2019, antes da pandemia de covid-19 que assola todo o globo terrestre, que conseguimos (eu e Vanice Cestari) assistir a uma sessão do documentário Cães do Espaço (2019), de Elsa Kremser e Levin Peter, na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Se àquela época não eram necessárias máscaras e nem distanciamento social, hoje uma simples ida ao cinema ainda é impossível aqui no Brasil, porque a despeito das promessas de um futuro melhor que a corrida espacial parecia nos indicar nos anos 60, estamos no início do século XXI um tanto presos ou amedrontados com a possibilidade de contaminação por uma doença que age ainda de maneira não muito previsível.

Trailer do filme Cães do Espaço

E me refiro a sessão de cinema não só por saudosismo, mas mais para falar um pouco do público que lá estava naquele exato dia (31/10/2019, às 19h10). Todos desconhecidos nossos e dos quais não tínhamos muita noção, se eram homens ou mulheres, jovens ou velhos, por ser, obviamente, uma sala escura, víamos apenas os vultos. Após determinadas cenas do documentário, algumas pessoas se levantaram e saíram da sala. Muito provavelmente não suportaram o que viram: cães que seriam enviados ao espaço pelos soviéticos na década de 50 eram submetidos a sofríveis procedimentos que ligavam aos seus pequenos corpos em válvulas, sensores, cabos, fios e a um duro adestramento. As dimensões do habitáculo que eles iriam ocupar na cápsula que os enviaria ao Espaço era diminuto e eles precisavam de intenso condicionamento para caberem e ficarem quietos nelas.

É assim que o filme avança, misturando cenas de arquivo com cenas atuais das ruas de Moscou, depois de uma bela introdução que reproduzo abaixo. A voz em off do ator Aleksey Serebryakov, no idioma russo, o idioma que o primeiro animal no espaço ouviu durante toda sua breve vida, nos conduz a uma extraordinária experiência fílmica e a uma jornada verdadeiramente filosófica.

“Numa órbita distante do planeta Terra houve uma cadela que flutuava morta numa cápsula espacial. Chamaram-lhe Laika. Era uma cadela vadia que vivera em Moscou. A Laika foi o primeiro ser vivo a ser enviado ao espaço. Mas passando pouco tempo jazia na cápsula. Durante meses a fio flutuou inanimada como os destroços cósmicos na imensa escuridão. Porém, parecia que a Terra se recusava entregar a cadela ao infinito cosmos. Com toda a sua força, ia puxando cada vez mais a cadela para si. Contudo, mal a cápsula tocou na atmosfera foi atingida por tamanho calor que o corpo da Laika ardeu. E nesse momento, a cadela que outrora vagueara nas ruas de Moscou tornou-se um fantasma. Diz uma lenda que o fantasma da Laika caiu sobre a Terra como um cometa e desde então, vagueia nas ruas de Moscou.”

Definitivamente uma das aberturas mais impressionantes que já vi quando combinadas as imagens com os efeitos sonoros numa tela grande. Nos colocar como se nós estivéssemos a fazer o percurso de Laika até sermos novamente agarrados pela força gravitacional da Terra foi incrível, algo que talvez apenas o cinema consiga fazer. E ficou, de fato, parecido com a realidade: depois de cinco a sete horas, Laika não suportou as altas temperaturas e morreu de modo extremamente sofrível. Não houve proteção térmica necessária para ela aguentar mais do que algumas horas, pois a ideia era que ela morresse “tranquilamente” com o esgotamento do oxigênio na cápsula. Na reentrada, após cinco meses orbitando a Terra, dando 2.570 voltas, a cápsula cruzou os céus do mar Atlântico e desintegrou-se totalmente sobre a floresta Amazônica brasileira, já não restando mais nada para atingir o solo, conforme indica o autor Kurt Caswell, no seu livro Laika’s Window: The Legacy of a Soviet Space Dog.

Mas antes de prosseguirmos vale uma ressalva. É preciso tomar cuidado em não confundir o documentário Cães do Espaço com a animação russa Belka i Strelka. Zvyozdnye sobaki (2010), de Inna Evlannikova, Svyatoslav Ushakov, ou Space dogs em inglês, ou ainda Cãestronautas na versão brasileira… A animação, voltada para crianças, é uma espécie de propaganda dos feitos da então União Soviética, mas bem ao estilo dos estadunidenses de contar histórias, diga-se, com a ida real de dois cães batizados de Belka e Strelka que orbitaram a Terra e voltaram vivos na Sputnik 5. Tanto que ao final, na subida dos créditos da animação, são exibidas imagens reais de arquivo daquele período. Evidentemente, para o público familiar, nenhuma questão ética é trazida à baila quanto ao uso de animais nesses experimentos. Apenas dilemas morais, muitos deles vinculados ao amor à pátria e ao militarismo, são elencados. Aliar a animação ficcional com as imagens reais de arquivo dão a impressão, pelo menos para o público jovem e, infelizmente, para parte do público jovem adulto, que tudo correu bem no “treinamento” que levava os cães de rua ao espaço, além de coelhos, camundongos, pássaros e ratos que também foram a bordo da Sputnik 5 e dos quais ninguém parece se importar tanto como no caso dos cachorros. Na animação, Belka e Strelka são cães em um circo e parecem trabalhar nele de bom grado… É uma fábula para crianças.

É curioso, então, que os diretores do documentário tenham optado por este nome, em inglês mesmo, para ser o nome original do filme. Talvez tenha sido uma pequena provocação, vai saber. Afinal, eles fizeram uma fábula para adultos.

PRIMEIRO ELES, DEPOIS NÓS

A ideia de mandar um cão ao Espaço se deu justamente para abrir caminho para a ida do homem ao Espaço: os soviéticos, competindo arduamente com os Estados Unidos da América durante a Guerra Fria, que também era uma guerra ideológica (comunistas contra capitalistas), precisariam verificar se era possível sobreviver às duras condições fora do nosso Planeta. Antes de mais nada, os soviéticos conseguiram enviar o Sputnik 1, o primeiro satélite artificial para orbitar a Terra em 1957; depois enviaram o primeiro ser vivo, a Laika, no mesmo ano; e, finalmente, o primeiro homem foi ao Espaço em 1961, Iuri Gagarin, a bordo da Vostok 1. Laika foi a prova viva, ou melhor, morta, de que, sim, era possível sobreviver no Espaço. Outros tantos animais foram enviados para testar cada vez mais os limites dos organismos vivos fora da nossa atmosfera.

O ser humano, há milênios, é capaz de grandes feitos, apesar de sua absoluta fragilidade corporal e sua organização social “civilizada” quase sempre tendendo ao desastre. Não temos nada natural em nós mesmos que nos permita viver fora da Terra – e nem mesmo em certos lugares inóspitos do nosso próprio Planeta. Precisamos de roupas especiais, proteção contra a radiação solar, máquinas, foguetes e toda uma sorte de artifícios para apenas orbitar a Terra, quem dirá ir à Lua, feito já atingido em 1969 pelos estadunidenses com a Apollo 11 e seus três astronautas (Neil Armstrong, Michael Collins e Buzz Aldrin), ou, quem sabe agora, chegar até Marte não apenas com sondas e robôs, mas para colonizá-lo.

Durante o documentário, além de um grupo de cães que os diretores e equipe seguem continuamente, também vemos um outro animal, um chimpanzé sendo preparado para “animar uma festa”. Ele, por algumas horas, será uma fonte de diversão para pessoas que pagaram para vê-lo fazer truques aos quais chamamos de macaquices – que são justamente coisas que os primatas naturalmente não fariam. A ida do animal até um apartamento em Moscou, acompanhando de fora da edificação pelo cinegrafista, alude a um foguete indo ao Espaço, pois ouvimos apenas o som do elevador saindo do térreo e chegando num andar alto com a voz em off do narrador oculto… A metáfora é perfeita! Os estadunidenses insistiram, no seu programa espacial, em enviar chimpanzés ao Espaço, mas eles simplesmente não se adaptavam às dimensões exíguas das cápsulas e a todo o estresse envolvido na operação de preparação/treinamento e de decolagem. Dos 15 chimpanzés usados no programa espacial dos norte-americanos, apenas 7 voltaram vivos…

Para o animal, ter sido tirado de seu habitat, provavelmente ainda filhote, para ir parar num apartamento em Moscou cercado de pessoas equivaleria a mandar um ser humano para um outro planeta e se deparar com uma festa alienígena em andamento. Qual a razão disso?

Chimpanzé levado para festas em Moscou no documentário Cães do Espaço
Chimpanzé levado para festas em Moscou no documentário Cães do Espaço
Edificação serve como metáfora para lançamento de macacos ao Espaço no documentário Cães do Espaço

Tentar enviar um primata ao Espaço foi uma ideia louca que apenas “cientistas” muito perversos poderiam conceber, assim como a de enviar qualquer outro animal (coelhos, ratos, pássaros etc). O que, por exemplo, aquele chimpanzé do filme pensa quando anda de carro e vê as luzes da cidade, veste roupas e é pego no colo para fotos? O que nós pensamos disso na condição de audiência? Quando os documentaristas nos colocam no ponto de vista de um observador externo ao daquelas pessoas envolvidas nas situações registradas tomamos consciência do que fazemos e permitimos que seja feito às outras espécies? Conseguimos fazer o paralelo que o sofrimento que o animal sente ao fazer parte de um programa espacial ou para nos entreter é da mesma ordem do absurdo? Especialmente se vermos os programas espaciais também como forma de entretenimento.

Os cães de rua, vagando em dupla ou matilha pela cidade russa dos dias de hoje, em busca de comida, água, reprodução e algum conforto é também uma metáfora para exploração espacial na qual gastamos tanta energia e recursos. A curiosidade que move os cães se parece um pouco com a nossa se repararmos bem. Se cães pegam coisas que acham e levam para perto de si, em nossas explorações espaciais, a primeira coisa que queremos fazer é trazer amostras de todo tipo para análises. Milênios se passam e seguimos como nossos ancestrais coletores, mas talvez diferentemente deles, ficamos sem saber o que fazer ante o vazio existencial no qual nos metemos tentando explorar a famigerada “fronteira final” (expressão que podemos ouvir em todo início de um episódio de Star Trek dos anos 60, que também é uma alusão para a própria expansão territorial na formação dos EUA), o espaço, mesmo com tanto o que ver e fazer por aqui na Terra.

Como há milhares de anos, o homem coletor (no caso vasculhando lixeiras de Moscou) e o cão seguem juntos em cena de Cães do Espaço

Colocar satélites na órbita do Planeta se mostrou crucial para o domínio militar, para as comunicações, para o transporte e monitoramento de vastas áreas, para o controle social e, claro, para o mercado financeiro. Creio que o satélite, a despeito de tudo que está aqui na Terra, é uma invenção chave, quando combinada com a teoria da informação de codificação, de Claude Shannon, para a revolução da informação que se deu – e se dá – depois da revolução industrial. Os satélites artificiais já são eles próprios um grande feito, mas isso não bastou e colocar o homem no Espaço, outra ideia louca que atravessa diversas civilizações ao longo do tempo, quando colocada em prática deixando o reino da imaginação, do desejo e das aspirações, trazem implicâncias sobre as quais perdemos o controle e não podemos prever os desdobramentos apesar dos alegados ganhos que essas investidas trazem. Graças a essa fortuna incalculável gasta nesses projetos que envolvem seres vivos e todas as vidas perdidas (de humanos e de pessoas não humanas), temos o famigerado travesseiro da NASA. Legal, não?

É, então, cada vez mais provável, tendo em vista esse histórico de uso que os animais tiveram na corrida espacial do século XX, que eles continuarão sendo usados em experimentos para atender as ambições de bilionários como Elon Musk em colonizar Marte por intermédio de sua empresa, a SpaceX. O empresário já vem testando e investindo na exploração animal com sua outra empresa, a Neuralink. Não é de todo improvável que os primeiros seres vivos a serem enviados a outro planeta sejam novamente pessoas não humanas, mas desta vez com implantes cerebrais que possam receber comandos aqui da Terra ou que se organizem socialmente (sim, pois animais são seres sociáveis como nós) através de alguma inteligência artificial os controlando e indicando o que eles devem fazer primeiro.

O que pode parecer um pesadelo bizarro imaginado numa ficção barata com certeza habita a mente e o coração de muitos “cientistas” ao redor do mundo, pois eles também anseiam por prestígio, dinheiro e poder sem limites. Tal evento seria um espetáculo aqui na Terra, bem ao estilo da série Black mirror (2011), de Charlie Brooker.

Elon Musk, sempre ele, está construindo também uma incrível rede de satélites pelo mundo com mais uma de suas empresas, a Starlink. Só que são tantos os aparelhos que eles chegarão a dificultar a observação astronômica com eles interferindo no alcance dos instrumentos – os telescópios, por exemplo. O excêntrico empresário é celebrado e odiado ao mesmo tempo pelos entusiastas da temática espacial. Ele já é parte da nossa cultura pop sendo até citado no seriado Star Trek: Discovery (2017), de Bryan Fuller e Alex Kurtzman, que se passa num longínquo futuro, como um grande inventor do passado. Esse amalgama criado em torno dele (e de suas empresas), torna nosso imaginário permissivo às suas investidas sem ética para além dos carros elétricos (com a Tesla) ou sistemas de pagamento online (a Paypal), segmentos no qual ele também se sobressai.

Não à toa, ele almeja logo poder testar os produtos da Neuralink em humanos. Alguém aí se candidata a ter um implante no cérebro ou colonizar Marte com passagem só de ida?

A NOSSA CARÊNCIA É SÓ NOSSA

No Brasil, e talvez em outras partes do mundo, existe a expressão especista “cão sem dono”. Nos colocamos nessa situação quando nos sentimos abandonados e em busca de afeição. Os “cães sem dono” das ruas de Moscou, ou de qualquer cidade do mundo, não parecem se encaixar exatamente nessa condição, pois eles são curiosos, brincam, caçam ferozmente, agem como animais que são e gozam, nos limites que impusemos a eles por conta de tantas interferências na natureza, como os prédios, as ruas e os carros, de certa liberdade. Uma liberdade que desejamos, mas que já não temos quando optamos por esses arranjos sociais tão complexos. Sem falar que eles não precisam de donos, pois não são coisas.

As célebres últimas linhas do romance tcheco, O processo, de Franz Kafka, terminam com o personagem K. dizendo: “Como um cão”. O personagem K. é morto por uma facada e o narrador de Kafka, o autor, ressalta: “É como se a vergonha devesse sobreviver a ele” quando K. profere que morrer como um cão é vergonhoso, indigno. Quando mandamos animais ao espaço, eles não podem dizer não a essa insana aventura que alguns aqui na Terra acham o máximo das nossas conquistas. Dizer que o homem foi à Lua significa que este homem tudo pode? Quando mandamos seres humanos ao espaço, que talvez também não possam dizer não, especialmente se forem militares, tudo será permitido? Mas os animais, como sempre lembramos no Saber Animal, não possuem nem mesmo a chance mínima que nós temos de escapar. A deserção das Forças Armadas é, creio, punida com morte ou grave sanção na maioria dos países, especialmente em época de guerra ou em regimes totalitários – como era o caso dos soviéticos que enviaram Laika e outros animais ao Espaço. Resta somente a nós a vergonha por fazer de outras espécies experimentos, além de vê-los em tantas outras situações degradantes e de profundo sofrimento.

De modo conflitante, cães também são vistos como heróis em nossas sociedades, especialmente aqueles que servem ao Estado na condição de cão farejador ou de resgate, além dos cães que atuam com policiais e militares em conflitos armados. Laika foi alçada a essa condição ela própria e como reforçam os documentaristas, depois dela, os cães de rua de Moscou foram vistos eles também como fortes e corajosos, ou seja, não precisam de ajuda ou amparo.

Os cães usados em experimentos “científicos” raramente são mencionados – exceto pelos ativistas abolicionistas -, pois sabemos que, como aquelas pessoas que se levantaram na sessão de cinema que exibiu Cães do Espaço, talvez não suportando ver os procedimentos cirúrgicos com cães que poderiam ser enviados ao Espaço pelos soviéticos, tantas outras não suportam, apesar de usufruírem dos frutos dessa exploração especialmente através do consumo, saber que um cão é torturado por pesquisadores, pelas universidades e seus “cientistas”, por criadores de cães de raça, por petshops etc.

Os diretores disseram em entrevista que São Paulo se parece muito com Moscou do ponto de vista urbanístico, daí que ver os cães abandonados em Moscou não é muito diferente do que acontece por essas bandas. O ser humano acredita mesmo que pode conquistar o Espaço, o Universo, quando o melhor que ele tem feito é só espalhar mais lixo por aí. A órbita do nosso planeta, diga-se, é repleta de lixo espacial. Sair da Terra hoje é até uma operação cada vez mais delicada dada a possibilidade de colisão com objetos que vagam a velocidades estonteantes e podem por fim em qualquer missão espacial. O filme Gravidade (2013), uma ficção de Alfonso Cuarón, explora essa situação de maneira muito inventiva.

SELVA DE PEDRAS E POEIRA CÓSMICA

Uma parte considerável do documentário Cães do Espaço mimetiza um pouco o acompanhamento de animais em vida selvagem aos quais, em certa medida, nos habituamos ver nos canais públicos ou nos canais pagos à cabo – ou por satélite. Ele também nos entrega a perspectiva dos cães quase sempre com uma câmera na altura dos olhos deles – em equipamento elaborado exclusivamente para essa situação. Os cachorros, longe dos afetos e caprichos humanos, tornam-se quase totalmente selvagens e os vemos desenvolvendo esse lado através do olhar dos diretores Elsa Kremser e Levin Peter que optam por não interferir em nada do que eles fazem pelas ruas. Alguns momentos são até bem duros de assistir, como a captura de um gato por um dos cachorros. Outros, por sua vez, já parecem engraçados, pois evidenciam a personalidade diversa dos cães que, inevitavelmente fazem a audiência rir. Não sei bem se a palavra selvagem caberia a eles que, vivendo em áreas urbanas, não conseguem retomar por completo uma vida em matilha, como seus ancestrais, e podendo exercer controle territorial sobre determinadas áreas que eles acreditam poder dominar. Na verdade, eles não têm controle algum, pois por mais que marquem suas passagens com urina, a vida deles segue a tênue linha entre a nossa indiferença e a rejeição – em especial em lugares como o Brasil com governos que não possuem políticas públicas para evitar o abandono e os maus tratos que eles sofrem de modo inerente ao estarem nas ruas.

Dois cães no documentário Cães do Espaço brigam após matarem um gato

O grande fardo que especialmente os cães carregam, de serem reconhecidos como os melhores amigos dos homens, faz deles animais icônicos em diversas culturas humanas provavelmente desde a Antiguidade. Seus ancestrais, os lobos, que se aproximaram de nós há mais de 100 mil anos em busca de proteção e comida, se tornaram o que são (cães) graças a um processo de adaptação que nos favoreceu em muito ao estilo de vida que mantemos até hoje (basta ver como milhões de cães são usados até hoje como “cães de guarda” patrimonial), mas, em contrapartida, os condenou para sempre a determinadas funções sociais ao limite de serem vistos como comida em algumas sociedades.

Seja na dolorosa morte ao lançá-los ao infinito do Espaço, seja pelo uso que fazemos deles em experiências “científicas” torturando-os das mais variadas formas aqui na Terra, seja por os colocarmos em situações de grande perigo dentro de forças de segurança ou em equipes de resgate em catástrofes de todo tipo, seja para comercializá-los dentro de uma indústria bilionária e torná-los presentes para crianças carentes de afetos de seus pais, seja para vê-los como pragas urbanas que precisam de controle e eliminação… A grande danação dos cães foi justamente ter se tornado “amigo” e se aproximado daquele que tem sido, na maior parte das vezes, o seu principal inimigo.

Talvez esse documentário, Cães do Espaço, para além da triste realidade das ruas de Moscou, com seus milhares de animais abandonados, nos diga algo até mais íntimo. A Sputnik 2 cruzou os céus brasileiros quando estava voltando à Terra. Dá para imaginar, então, que não é só pelas ruas da cidade russa que corre e late o fantasma da Laika como indica a lenda anunciada no filme.

E assim como foi importante notar na crítica que fiz ao documentário Professor polvo, a questão do sonho também aparece aqui. O narrador diz:

“Depois de dias em gravidade zero, os cães começavam a cair no sono. Andavam às voltas no planeta habitat. O seu batimento cardíaco era o único sinal que chegava à Terra. Mas ninguém sabia o que tinham visto lá em cima. E ninguém se questionava sobre o que teriam sonhado nas suas cápsulas espaciais.”

Parece totalmente natural pensarmos nisso: no que os animais sonharam quando adormecem aqui ou mesmo no Espaço. O sonho nos interessa sempre, pois é do inconsciente que tiramos boa parte da nossa imaginação e muitas das nossas ações têm origem nesse mesmo lugar. Os surrealistas nos mostraram algo do tipo através da sua arte, nas mais diversas linguagens (pintura, escultura, cinema etc) e não deixa de ser surreal imaginar a concretude desses feitos que o documentário analisa – a ida ao Espaço, o treinamento dos cães, as jogadas políticas… E não parece despropositado que uma foto de Philippe Halsman de Salvador Dali tenha imaginado uma cena, infelizmente usando animais de verdade, em que todos parecem estar em gravidade zero. Pequenas cordas suspendem alguns objetos no ar enquanto a água e os gatos eram arremessados (foram 26 vezes) até o resultado pretendido ser alcançado. A ideia anterior de Salvador Dali era a de explodir patos com dinamite. Pensando bem, “cientistas” e surrealistas poderiam dar as mãos e irem juntos ao Espaço…

Um cão adormecido em cápsula espacial na órbita da Terra. Imagem de arquivo no documentário Cães do Espaço
Um cão de rua dormindo e sonhando nas ruas de Moscou no documentário Cães do Espaço
Salvador Dalí em Dali Atomicus. Foto de Philippe Halsman, 1948 / Library of Congress, Washington D.C

Um dos cientistas responsáveis pelos animais, Oleg Gazenko, afirmou que usar os cães era fonte de grande sofrimento para parte dos envolvidos e que não se aprendeu nada com os dados obtidos por tê-los enviando-os ao Espaço. Ele se arrependeu por ter feito o que fez no projeto espacial soviético, mas não tinha lá muitas opções dentro de uma ditadura comunista (um regime totalitário) na qual a questão ética que envolve animais não era sequer discutida. Algo próximo do que ocorre atualmente em outra ditadura comunista, a chinesa, com experimentos envolvendo animais e seres humanos, e com os EUA capitalista e suas parcerias entre governos e poderosas empresas (NASA e SpaceX, por exemplo).

O documentário não é apenas sobre a Laika, claro, apesar de se concentrar um tanto sobre ela, que foi o cão mais célebre de todos nesses experimentos. Trata-se mais sobre de cachorros lançados ao Espaço e outros animais e lendas que os cercam como a da tartaruga gigante que nos carrega pelo Cosmos em seu casco. Mas é também sobre as pessoas envolvidas naqueles projetos. Os filmes mudos dos arquivos soviéticos receberem tratamento sonoro e ganharem uma espécie de outra vida. Os registros de arquivo usados no documentário desprovidos de som ou com uma trilha qualquer teria outro efeito na audiência. Arquivo cheio de imagens inéditas, vale reforçar, com uma sonoplastia aplicada pelos documentaristas de Cães do Espaço, ganhou outros contornos no nosso imaginário. Sem as vozes dos agentes daquela época ou mesmo o som ambiente original, mantendo apenas a voz em off do narrador que nos acompanha desde o início do filme, tudo parece ter vindo mesmo de outra era e de uma civilização perdida e não só de algumas décadas atrás de uma corrida que segue sendo reproduzida hoje com novos e velhos atores.

Os diretores optaram deliberadamente, então, por não usar o material mais famoso e conhecido sobre Laika, que é surpreendentemente bem escasso segundo eles. Ao se depararem com um raro material da cadelinha saindo da atmosfera terrestre, optaram por uma trilha abstrata, quase silenciosa. É uma imagem com pouca definição e, coincidentemente ou não, de aspecto fantasmático.

O documentário Cães do Espaço exibe trecho inédito de vídeo com a cadela Laika na cápsula em direção ao Espaço em 1957

Mas há um pequeno mal entendido conforme podemos ver nesta fala de Elsa Kremser e Levin Peterfala em uma entrevista a Leonardo Sanchez, da Folha de São Paulo: “Nós queríamos fugir dos contos de fadas e filmes da Disney, em que os animais são bons ou ruins. Queríamos retratá-los como humanos, com temperamentos diferentes.” Cães devem ser retratados como o que eles são, cães, e, a meu ver, os diretores mesmo mirando em outra coisa acertaram em outra muito melhor: se saíram, talvez sem querer, com um olhar animalista para aqueles cães de rua e para os cães e demais animais usados como experimento na corrida espacial.

Alguns cães voltaram vivos do Espaço, vale reforçar. Nas imagens dos arquivos os vemos andando e agindo novamente como cães, como nunca deixarem de ser, mesmo sendo vistos como heróis, desbravadores e outros títulos tolos que damos a eles diante de uma imprensa sedenta por mais e mais novidades “científicas” – naquela época e hoje seguindo a mesma toada. O que os arquivos exibem é que aqueles cães, bastante machucados depois dos procedimentos cirúrgicos de adaptação às cápsulas espaciais, só querem proteção, comida e conforto. Apesar do que fizemos (e fazemos) com sua espécie, lá estão eles confiantes novamente que receberão carinhos e afagos… As mulheres que aparecem nas imagens, sempre elas, demonstram afeto com os animais na interação com eles. É como se os homens, responsáveis por aquele terror para os cães, não tivessem essa habilidade ou apenas não houvesse lugar pra ela num duro regime como o soviético. Deles não vêm afeto, mas apenas ordens.

Mulheres são vistas interagindo com cães do programa espacial soviético em imagens de arquivo no documentário Cães do Espaço
Mulheres são vistas interagindo com cães do programa espacial soviético em imagens de arquivo no documentário Cães do Espaço

A NASA NÃO APRENDE AS LIÇÕES, MAS QUER ENSINAR

No recente documentário da Netflix, Challenger, o voo final (2020), de Steven Leckart e Glen Zipper, vemos a tentativa do programa espacial estadunidense, em 1984, para não perder sua relevância com um público já acostumado com homens orbitando a Terra apesar da permanente complexidade das tarefas, enviar uma professora civil ao Espaço. Diferentemente de Laika, claro, Christa McAuliffe quis (ou foi compelida pelo entusiasmo da época) e escolheu participar de um grande processo seletivo que a tornaria, mesmo que por um curto período, uma célebre astronauta. A ideia, em termos de publicidade deu certo, e sua presença, com outros seis experientes astronautas (incluindo outra mulher, um afro-americano e um nipo-americano), chamou a atenção do país e do mundo todo!

A professora da rede pública, Christa McAuliffe, morreu na explosão do ônibus espacial Challenger em 1986

Notem a relação: os estadunidenses buscaram, no sistema de ensino do serviço público, uma candidata adequada para a empreitada, já os soviéticos saíram as ruas em buscas de cães de rua adequados para a empreitada deles. Me parecem que ambos os governos veem cães e professores como seres passíveis de experimentos sociais e artífices de seus intuitos de ter mais e mais poder, não? E, claro, ser comparado a um cão não é uma ofensa por si só, afinal, somos animais também, mas entendo claramente que, em determinados contextos, a comparação com animais tem sentido racista ou preconceituosa. São manifestações especistas que ganham outros contornos e camadas em discursos de ódio.

Contudo, o terrível desastre que aconteceu no dia 28 de janeiro de 1986, uma grande explosão de um dos dois tanques de combustível sólido, poucos segundos após a decolagem, a deixou novamente numa situação parecida com a de Laika. Ambas (duas fêmeas) tiveram apenas um pequeno relance do Universo. Aquilo que parecia uma boa ideia a princípio, estimular o interesse pela ciência entre os jovens da nação, colocou a vida de uma pessoa que não compreendia exatamente os riscos envolvidos em uma jornada de extrema complexidade ao contrário dos profissionais que viajariam com ela.

O documentário demonstra, ao longo de quatro episódios, o quão negligente a NASA foi ao preferir manter um apertado cronograma ao invés de estudar adequadamente e repensar aquilo que posteriormente descobriram ter sido causa do acidente: anilhas de vedação de áreas de junção dos foguetes de apoio. Fora os alertas dos efeitos das condições climáticas naquele dia (frio extremo) do lançamento feito pelos fornecedores dos foguetes terem sido praticamente ignorados. Se é desse jeito com humanos, não é difícil imaginar que a vida dos animais estará sempre em jogo quando o assunto for “a conquista do Espaço”. Familiares, amigos e milhões de pessoas viram, atônitas, o desastre riscar o céu de forma que aquela imagem espetacular estar bem vívida na memória de quem assistiu ou viu os desdobramentos da investigação nos anos 80. Algo tão drástico nos EUA, creio, só viria a acontecer depois, no fatídico 11 de setembro, com a queda das Torres Gêmeas em Nova York por obra de atentados terroristas.

Explosão do ônibus espacial Challenger em 1986

A NASA tentou aliviar e abafar o caso o tanto quanto pôde, mas não deu… Houve muita pressão para que investigações apontassem responsáveis e trouxessem melhorias. Mas o documentário deixa implícito que isso aconteceu, sim, mas não por muito tempo, já que um novo desastre aconteceu em 2003, com o ônibus espacial Columbia, devido a negligências da mesma natureza.

Assim como os soviéticos, que esconderam por décadas o verdadeiro destino de Laika: uma morte terrível há poucas horas do lançamento foi revelada apenas em 2002. Só que em 1958 houve, sim, protestos quando souberam da morte dela – a notícia era propositalmente postergada para fazer com que as pessoas acreditassem que ela poderia voltar viva quando as autoridades soviéticas já sabiam que ela estava morta. Cartas foram enviadas a Moscou e às Nações Unidas e algumas sugeriam que tivessem mandado o líder soviético Nikita Khrushchev ao invés de Laika quando indicaram que a cadelinha havia sido sacrificada por “questões humanitárias”. Certamente houve quem também pensou que teria sido melhor terem enviado Ronald Reagan, presidente estadunidense, naquele mesmo voo fatídico que tirou a vida de Christa.

Não à toa, assim como Laika, a professora (sempre com os outros colegas de voo) teve a oportunidade de passar alguns momentos com sua família: todos ficaram hospedados numa casa de praia próximo ao local da decolagem. Pelo que conta o documentário estadunidense, era até uma tradição essa situação. A cadelinha Laika, os soviéticos sabiam, não sobreviveria de modo algum e Vladimir Yazdovsky, chefe da missão, resolveu levá-la até sua casa para que ela pudesse brincar com seus filhos e ter o seu último dia vivendo como um cão normal viveria, isto é, recebendo afeto e atenção de seus tutores.

Os estadunidenses, claro, esperavam que seus astronautas voltassem vivos, como em muitas das outras vezes que foram ao Espaço, mas era sempre uma viagem arriscada, daí esse grande encontro com a família ser também a possibilidade de ter alguns “últimos momentos” se algo desse errado. Afinal, voar no ônibus espacial não era como pegar um simples voo comercial seguro no qual, todos os dias em todos os lugares do mundo, os aviões decolam e pousam em segurança sem sobressaltos.

Também me parecem situações muito parecidas as decisões governamentais em busca de apelo para poder e verbas, pois Laika seria uma grande atração ao ser o primeiro ser vivo no espaço mesmo não havendo tempo hábil para desenvolver uma cápsula capaz de mantê-la segura, assim como termos a primeira professora civil no espaço, custe o que custar. E mesmo demonstrando grandes avanços nas décadas seguintes ao início da corrida espacial, ela simplesmente não parece ter linha de chegada. Se ontem o competidor era a antiga União Soviética, agora é a poderosa China. E o que o país asiático, que tem permitido medonhos cruzamentos genéticos entre homens e macacos, fará para se destacar com seus planos de também ir à Marte ou fazer a sua base na Lua?

ELES APENAS SOBREVIVEM

O final do documentário é incrível. Sempre sendo levados pela narrativa em off, vemos uma situação de maus tratos ao mesmo tempo em que corrobora, em parte, o mito da resistência dos cães de Moscou. O triste destino que grande parte daqueles, que elegemos serem os nossos melhores amigos, é algo que deve nos assombrar como um fantasma, ainda por muito tempo. Por isso Cães do Espaço, de Elsa Kremser e Levin Peter, se encaixa na ideia de um filme animalista (mesmo não sendo o propósito original dos diretores), que coloca as pessoas não humanas no centro (ou quase) da reflexão, ética e filosófica, dos nossos feitos e conquistas do passado e o custo que eles representam para todos os envolvidos.

Filhotes em local abandonado na cidade Moscou no documentário Cães do Espaço

Uma obra rara e necessária dentro de uma larga tradição da linguagem audiovisual de confrontar aquilo que é dado, por tantos, como certo: o tal do progresso, os ditos avanços científicos e as ambições sem limites da nossa espécie.

🎞️ Cinema: Cães do Espaço (2019)
Mostra uso de animais sem filtros
9
Aborda uma questão global: cães de rua
9
Questiona indiretamente feitos ditos científicos
8
Tenta colocar a audiência no lugar dos cães
8
Pontos positivos
Mesmo sem querer, aborda questões animalistas
Narrativa em off e montagem
Explora material histórico ainda inédito
Pontos negativos
Usa animais fora de seu habitat (tartarugas)
Ausência de legendas no material de arquivo
Determinar contexto fica para a audiência
8.5