Não é preciso muito para fazer um filme memorável: bons atores, um bom roteiro e paisagens incríveis. Todo o resto, às vezes, parece só um grande acessório que se fosse removido das cenas, talvez não fizesse falta nenhuma. Nem falo dos efeitos especiais, pois estes sozinhos representam, em grande parte dos casos dos filmes de maior popularidade, o seu único atrativo (combinado com marketing pesado). Mas há um tipo de filme que também envolve animais – que, óbvio, não são e nunca serão atores por vontade própria – para representarem um papel, invariavelmente, na condição de coadjuvantes dos intermináveis dramas humanos. Os animais entram nessa categoria “acessório” por mais que eles estejam até mesmo no título de filmes e séries. É o caso de The mustang (2019), de Laure de Clermont-Tonnerre e também de Crin blanc: le cheval sauvage (1953), de Albert Lamorisse, que servirá de referência ao longo desta crítica por também ter como parte central da história a presença de um cavalo selvagem e outros elementos de aproximação. Os filmes, apesar de distantes mais de sessenta anos no tempo, parecem dialogar muito dentro da nossa visão do lugar do animal, em especial o cavalo, em nossas narrativas. Daí que ambos podem nos ajudar a entender o papel do cavalo no cinema estadunidense e mundial.
Veja o trailer de The mustang
Vale dizer: estou me referindo ao nome original do filme, pois no Brasil (e talvez em Portugal também) The mustang aparecerá nos cartazes dos cinemas (agora dificilmente em meio a esta pandemia) e nos serviços de streaming como Rédeas da redenção. Que nome horrível para este filme, sejamos francos! O nome da raça desaparece até do título neste caso e isto diz um tanto sobre a função do animal na ideia de cinema que se tem quando há um na história e que passa pelos filtros do marketing que precisa recalibrar as expectativas de uma novidade quando ela chega a um país estrangeiro ao de sua produção. Por mais que o filme, em parcos momentos, aponte justamente para o contrário, isto é, a comparação do desejo por liberdade sem rédeas do prisioneiro com o espírito livre do animal selvagem, essa expectativa escorre entre os dedos para quem achou que colocar rédeas é uma forma de ter controle do que quer que seja. A metáfora é especista, veja só. Devemos colocar rédeas nas crianças? Devemos colocar rédeas nas feministas? Devemos colocar rédeas naqueles que se opõem? Devemos colocar rédeas nos nossos anseios pessoais? O desejo por controle absoluto é um traço indisfarçável do especismo.
Tanto as cenas iniciais de Crin blanc quanto as de The mustang nos trazem angústia porque envolvem, de modos diferentes, a perseguição a cavalos que vivem uma vida selvagem, mas não natural no continente norte-americano, pois os mustangues descendem de cavalos trazidos da Europa pelos colonizadores. No primeiro caso, temos cavalos sendo perseguidos por homens montados em cavalos com um alvo mais específico: o cavalo com a crina branca. No segundo caso podemos ver até um helicóptero sendo usado para assustar os animais e levá-los para uma emboscada: os que seguem uma determinada rota vão parar num cercado e depois são colocados num caminhão com destino à prisão para fazerem parte do programa mencionado mais abaixo.
O próprio termo selvagem, usado no título do filme de Lamorisse é estranho do posto de vista animalista, pois esta selvageria destinada àqueles animais não humanos que vivem suas vidas longe da escravidão está longe de ser aquela selvageria da qual nós humanos somos capazes de submeter uns aos outros: a lista de genocídios segue sendo atualizada dia a dia. Para cercar o cavalo branco no filme francês não se usa uma máquina, mas ateia-se fogo para ser possível pegá-lo limitando sua movimentação. Essa ideia, de destruir tudo ao redor para se ter o que se quer só parte uma espécie no planeta todo. Não é à toa que temos prisões, justamente para conter, geralmente da pior forma, aqueles que a sociedade considera incapazes de se ter qualquer tipo de convívio (seja real necessidade ou por perseguição a determinados grupos sociais).
No filme de Clermont-Tonnerre nos deparamos com os seguintes alertas antes de iniciarmos a jornada dos protagonistas, ou melhor, do protagonista humano:
MAIS DE CEM MIL MUSTANGUES SELVAGENS, UM ÍCONE DO VELHO OESTE AMERICANO, AINDA EXISTEM NOS ESTADOS UNIDOS.
SUPERPOPULAÇÃO, RECURSOS LIMITADOS E PRIVATIZAÇÃO DE TERRAS PÚBLICAS AGORA AMEAÇAM SUA EXISTÊNCIA.
EM RESPOSTA, O GOVERNO FEDERAL RECOLHE MILHARES DE MUSTANGUES POR ANO PARA AJUDAR NO CONTROLE POPULACIONAL.
A MAIORIA PASSA O RESTO DE SUAS VIDAS EM HARAS E ALGUNS SÃO EUTANASIADOS.
ALGUMAS CENTENAS SÃO ENVIADOS À PRISÕES E ADESTRADOS POR PRESIDIÁRIOS PARA VENDA EM LEILÕES PÚBLICOS.
E ao final do filme temos a seguinte conclusão:
O PROGRAMA “CAVALO SELVAGEM RECLUSO” EXISTE NO ARIZONA, COLORADO, KANSAS, NEVADA E WYOMING.
PARTICIPANTES NO PROGRAMA SÃO SIGNIFICANTEMENTE MENOS REINCIDENTES APÓS A SOLTURA DA PRISÃO.
A despeito do absurdo do projeto que, para preservar, tira os cavalos do seu habitat e convívio social, todos os Estados citados acima, não por acaso ficam depois dos montes Apalaches e além do rio Mississípi. Antigos limites naturais do imaginário de uma jovem sociedade ainda em formação que resolveu, ao longo dos séculos XVIII e XIX, dominar também o Oeste, expulsando indígenas de suas terras ancestrais e dizimando outras formas de vida que estavam no caminho. Milhares de seres humanos foram obrigados a se deslocarem para outros locais ou simplesmente foram mortos resistindo e lutando e milhões de animais pereceram naquilo que o povo que se acreditava escolhido por Deus chamou de "progresso"… E os cavalos, assim como as máquinas que vieram depois, como também as icônicas locomotivas, viabilizaram essas "conquistas" e tornaram os Estados Unidos da América uma nação continental. Apenas a força humana não seria capaz de carregar toda a tralha necessária para construir cidades inteiras e ferrovias e nem seria tangível combater nações indígenas sem a vantagem estratégica da montaria que dava velocidade e alcance aos homens brancos daquela época.
Com essa expansão, um pedaço do México foi tomado, terras foram compradas da França, o Alasca deixou de pertencer aos russos e havia o ímpeto de abocanhar também o Canadá inteiro – que foi perdendo força e deixado de lado. Ambição era grande e refletia o espírito daquela época que via a necessidade de se alcançar a última fronteira, chamando o que vinha pela frente de "terra de ninguém".
O ANIMAL REAL E O ANIMAL EM CENA
A história estadunidense, assim como a de qualquer outro lugar, é riquíssima, mas possui a peculiaridade de ter sido levada ao mundo todo não apenas pelos livros e relatos da imprensa, mas principalmente graças ao cinema – que também era ele próprio uma novidade. Se hoje convivemos e somos tão próximos de super-heróis como o Batman, um justiceiro que age ao arrepio da lei apesar de estar do lado dela (?), já fomos enlaçados por xerifes, mascarados mal-intencionados e cowboys que representavam a honra, a coragem, a ousadia e a virilidade do homem que desbrava terras repletas de selvagens (pessoas, animais e a própria natureza).
Foi o cinema que também desbancou, por exemplo, o grande espetáculo do mundialmente conhecido Buffalo Bill. E o búfalo do nome vem pela habilidade de William Frederick Cody em caçá-los… Seu grande show recriava a conquista do Velho Oeste e viajava por várias cidades americanas de trem e chegou até a ser apresentado do outro lado do Atlântico, em Londres. Mas não deu para Bill e sua trupe competir com as estonteantes imagens que chegavam de modo torrencial e podiam ser reproduzidas milhares de vezes em lugares diferentes e ao mesmo tempo. A imagem abaixo reflete bem isso: na cidade do Rio de Janeiro do início do século XX estava em cartaz um filme western com um super destaque para o ator Tom Mix. O imaginário carioca era atravessado por algo que até pudesse lhe dizer respeito, pois aqui também se avançou para conquistar territórios indígenas, certamente com outras dinâmicas, mas não menos violentas.
A imagem acima está originalmente disponível no site Portal da Crônica Brasileira do Instituto Moreira Salles.
Comentei quando falava em outra crítica sobre o filme A ilha dos cachorros (2018) que foi justamente no filme Jesse James (1939) que passou a valer a vigilância sobre o uso de animais em filmes, pois foi nele em que dois cavalos foram atirados de um penhasco para o horror do público que ficou sabendo daquilo. Aliás, a história dos cavalos no cinema ainda está para ser contada. A máxima “nenhum animal foi mal tratado neste filme”, criada pela American Association’s (AHA) Film and Televison Unit, passou a ser usada para afastar eventuais dúvidas. Ou seja, só a partir do fim da década de trinta do século passado, nos Estados Unidos da América, houve algum cuidado com o uso de animais. Mas é impossível saber quantos cavalos os filmes de western submeteram ao sofrimento e morte para as cenas de perseguição, combate e tantas outras. Em muitas cenas desse tipo de filme vemos os cavalos indo ao chão enquanto corriam, dentre tantas outras cenas perigosas. Os cavalos foram essenciais para a conquista do Velho Oeste e, consequentemente, também para o western: um é derivado do outro e estão unidos no nosso imaginário. Tanto é que até hoje dá brincar com cavalinhos de pau, fantasiar as crianças de cowboy e índio… Apesar da repulsa que esse contexto enfrenta em alguns grupos sociais, esses papéis não se dissiparam a ponto de serem esquecidos e deixados de lado seja pelo abuso animal, ou seja pelo papel dos indígenas nessa fantasia.
Vale destacar que os indígenas do norte da América se viram obrigados a usarem também os cavalos como forma de defesa e sobrevivência, lamentavelmente. Não eram animais que tinham um papel e representação na sua cosmogonia: eles foram um elemento introjetado pelos europeus e descendentes ao longo dos séculos por conta da invasão do Novo Mundo. Não se trata, contudo, de aliviar o especismo de qualquer lado: ao fazerem uso dos cavalos (como ferramenta) e serem explorados por brancos (europeus ou nacionais), pretos (livres ou escravizados) e por povos originários, o resultado era sempre o mesmo para o animal: sofrimento e morte. Mas é importante deixar claro o contexto bizarro onde um animal é "apresentado" para povos que, dadas as distâncias naturais entre os continentes, jamais teriam tido qualquer contato. É o processo de globalização iniciado séculos antes que faz com que os animais (e pessoas, claro), novamente, viagem contra suas vontades e instintos.
Os 60 milhões de anos que colocaram os primeiros antepassados dos cavalos na Terra propiciaram variadas formas de adaptação. Mas menos uma que fosse eficaz o bastante para escapar do que viria a ser o seu mais temido predador: o Homo sapiens. Nosso tempo de transformação social e cultural, especialmente nos últimos 10 mil anos, é totalmente incompatível com o tempo dos processos evolutivos e isto é, por si só, uma catástrofe para os outros animais e seres vivos que dividem seus espaços naturais conosco. E isto inclui, claro, os cavalos que, a despeito de sua força, rapidez e robustez, não têm meios de se verem totalmente livres de nós: eles não possuem camuflagem, não possuem tocas, não são rápidos o bastante para fugir de nossas máquinas ou capazes de escapar das armadilhas que fabricamos e nem ao menos são carnívoros para nos botarem algum medo. Sua condição, encarada por nós como selvagem e bestial é, na verdade, seu último refúgio que de tão simbólico nos inspira um valor que nos é caro: a liberdade ou até mesmo o espírito livre.
Sua extinção, contudo, não parece tão improvável assim. Não restam tantos cavalos selvagens no mundo e aqueles escravizados, apesar de serem forçados a se reproduzir, podem também desaparecer se o interesse em explorá-los desaparecer. Por ora, eles seguem sendo usados como tração, como transporte, como terapeutas, como "objetos" de luxo, no entretenimento, nos esportes e… como comida. Fazemos simplesmente de tudo com os cavalos e há quem ainda ouse em não ver nisso uma abjeta escravidão.
O ANIMAL SELVAGEM E A SELVAGERIA DO HOMEM
A diretora do filme, em uma entrevista, disse ter em suas lembranças de infância os filmes do gênero western quando os via com seu pai. Mas não só a lembrança paternal e o bang-bang ficam em destaque evidente em um filme que explora sem disfarçar a estética e as características consolidadas de um gênero ultrapopular e que, mesmo podendo ser localizado no tempo, ainda rende novos filmes inspirados nele. Laure de Clermont-Tonnerre, e aí se revela seu lado original / autoral, tem um curta-metragem em sua filmografia falando justamente da relação de prisioneiras com animais como forma de terapia. Rabbit (2014) é, nitidamente, um preâmbulo do que a diretora viria a filmar em The mustang.
A parte 1 e a parte 2 do curta-metragem mencionado acima estão disponíveis no YouTube.
O que muda, claro, é que passamos do universo feminino de uma prisão para mulheres para o universo masculino de uma prisão para homens. Até isto tem seu lugar neste comparativo que proponho, pois no western estes dois universos são também bem demarcados: como uma prisão para os personagens que têm nos seus papéis uma condição determinada e talvez nunca transposta plenamente.
E só para não perdermos de vista: os EUA têm a maior população carcerária do mundo. São mais de dois milhões de prisioneiros! Aqui no Brasil, que segue no terceiro lugar apenas atrás das China, estimasse que até 2025 tenhamos 1,5 milhão de pessoas na mesma situação – em 2019 o número já passava de 800 mil.
No curta temos uma prisioneira que aparenta ter um histórico violento e conturbado com sua filha e ela não consegue, a princípio, se relacionar com um coelhinho que é deixado sob seus cuidados por uma terapeuta que usa animais para ajudar detentas a encontrarem um caminho. Apenas depois de um tempo, o tempo do animal, ele a aceita e os dois convivem em harmonia numa cela. É um programa prisional que visa fazer as prisioneiras pessoas melhores, usando os animais como forma de ocupação e elo com o mundo em que elas precisam se adequar para reaver a liberdade, como a protagonista que tenta se acertar com sua filha. O trajeto inicial do coelho, de uma gaiola até uma cela, exibe que ele é duplamente prisioneiro (uma jaula dentro de outra jaula), assim como a prisioneira preta, que reflete mais uma justiça que faz perseguição racial de perseguição racial conforme se vê na predominância de uma cor, a preta, na população carcerária estadunidense. Não sabemos que crime ela cometeu, mas a sensação que fica é que ela pode não ter cometido crime algum, assim como o coelho que não merecia ter como destino servir aos nossos interesses.
A diretora estudou e conhecia bem o assunto do uso de animais em prisões, então. Escrever o roteiro do filme (em parceria com outros dois roteiristas) fez sentido, afinal houve ali uma busca realista de como se daria a interação entre cavalo e um prisioneiro violento e condenado por assassinato. Ao longo do filme, claro, nos identificamos com Roman e torcemos pela sua recuperação e reconciliação com sua filha que, eventualmente, o visita na prisão. A relação da filha e do pai é, de algum modo, semelhante a de Roman com o cavalo que ele, depois, batiza de Marquis e vai "domando" aos poucos.
A sua filha, que notamos estar grávida, parece refletir o papel destinado às mulheres no western: donzelas que precisam ser protegidas assim como os cavalos naquele mundo ainda em construção e repletos de ameaças. E não se pode perder de perspectiva que o gênero western é sustentado basicamente pelas brigas (incluindo longos tiroteios), a impressionante paisagem do Oeste norte-americano, as cidades de madeira e, claro, os cavalos. Muitos roteiros deste gênero parecem eles também não estarem muito distantes do que preconizavam os romance de cavalaria da Idade Média.
AS PRISÕES IMAGINADAS E OS CATIVEIROS REAIS
Se o crítico Andre Bazin insiste que mesmo a fantasia do cinema deve ter algum lastro no real, é pouco crível a prisão em que está Roman no filme The mustang. O projeto que busca reabilitar os prisioneiros para a vida em sociedade se dá numa cadeia em que a violência emerge tão somente dos prisioneiros. É só neles, e apenas neles, que pulsa a violência e a reincidência no crime mesmo atrás das grades. O papel dos guardas parece estar vago e suas prevaricações não têm consequência. O próprio sistema legal, o mesmo que colocou todos eles ali encarcerados, aparenta estar ausente… A violência nas prisões, pelo menos nas prisões das Américas e de tantas partes do mundo, é violentíssima e a ausência dessa violência não passa de todo desapercebida até mesmo para olhares não tão atentos.
No filme de Clermont-Tonnerre todos os homens estão reunidos por conta de atos de violência que cometeram. A prisão em que eles estão é distante de tudo, no meio do deserto. Há encontros e visitas, mas há solidão por todos os lados e ela é amplificada nas solitárias para a qual Roman é enviado quando sai da linha. O clichê do homem forte que desaba em lágrimas não é visto comumente, mas é possível imaginar tal situação.
Numa cena vemos os condenados falando com uma terapeuta e todos indicam que bastou uma decisão de poucos segundos para que o resultado dela os colocassem ali. Destruir vidas é algo que decorre num átimo, mas tem consequências duradouras (alguns anos, décadas, a vida inteira ou a própria vida). Nossa intrincada vida social que aprisiona aqueles que tomam péssimas decisões parece ser ainda aqueles mesmos atos fundadores do Velho Oeste em que o embate entre bem e mal é uma das vigas mestras das cidades em vagarosa construção. Mas nos tempos de agora, no informatizado século XXI, apesar de ainda haver crimes horrendos e cidades sendo tomadas de assalto (mas com caminhonetes e carros), a população carcerária é tão grande que ela própria, se reunida num mesmo território, poderia ser chamada nação ou clamar pelo seu próprio Estado. Se bastavam 60 mil habitantes na antiga América em formação, imagine os milhões que estão hoje sob os olhos e mira dos guardas. São tantos os destinos aprisionados que este lado do filme de Clermont-Tonnerre é tocante e deveria mesmo despertar em nós profunda empatia. Pena não ocorrer o mesmo com os cavalos, meros coadjuvantes nessa jornada em que eles são sempre vítimas.
Nesse sentido, e até imagino que a troca para que as coisas se dessem nesses termos, era a possibilidade de usar a prisão como locação para as filmagens. Ok… Se uma realidade violenta por parte da administração da prisão fosse exibida, talvez a diretora do filme não tivesse conseguido a permissão para filmar tudo o que precisava sem apelar a cenários que fazem o orçamento de um filme subir às alturas. A cena dos cavalos numa cozinha real, a que mais amedrontou o ator que dá vida a Roman, Matthias Schoenaerts, pelo risco de estarem todos ali naquele ambiente apertado com cavalos por toda parte, e com a chance de levar um coice, não teria sido tão incrível num ambiente falso. Eram cavalos adestrados e não os cavalos selvagens recém-capturados que vemos nas imagens iniciais de caçada, diga-se. Ou como Hollywood as chama: atores. A ilusão da tempestade, a ilusão do controle dos animais, a ilusão que não nos deixa ver o sofrimento dos animais que em campo aberto, ainda que com medo, estariam seguros no seu grupo social.
Mas como podemos deduzir sem muita demora, o filme The mustang reúne um homem branco, treinado por homem negro, e seguido de perto por um indígena. Todos são unidos pela condição de prisioneiros norte americanos. Um velho homem branco que gerencia o programa, o ator Bruce Dern, ele próprio presente em alguns filmes western contracenando até com o célebre John Wayne, e muito respeitado no set de filmagens por isso, é um homem branco que atuava há tempos com cavalos e viabilizou o programa de "acalmamento" de prisioneiros com cavalos enquanto extrai cavalos selvagens para serem usados nas forças policiais das cidades para, entre outras coisas, oprimirem manifestantes do Black Lives Matter. É um ciclo onde o animal é envolvido que mais revela o lado brutal da sociedade estadunidense do que qualquer outra coisa. Os cavalos, amplamente utilizados pelas polícias do mundo todo, são ainda hoje "úteis" na contenção de manifestações e vê-los montados por policiais nos noticiários diários nos faz ter um pequeno vislumbre do que era uma cidade tomada por eles, puxando carroças ou sendo montados por bandidos e mocinhos.
As cenas que Roman discute ou agride o cavalo são emblemáticas. O protagonista age com o cavalo como se ele fosse uma pessoa: bate nele com um soco, conversa com ele, pede para que ele seja compreensivo, grita com ele e, finalmente, é aceito. O processo todo lembra muito um filme que será tratado em breve aqui no Saber Animal: Free Willy (1993), por mais incrível que seja a relação entre uma orca e um cavalo. Mas para além desta referência um tanto insólita, outro filme que não deixa de irromper quando se está diante de The mustang é o de Albert Lamorisse: Crin blanc: le cheval sauvage (1953).
O cavalo, selvagem e perseguido por caçadores, é também o objeto de desejo de uma criança que sonha em tê-lo para si. Ela também tenta domá-lo e se apossar dele. Seria compreensível o desejo infantil das crianças que querem ser donas dos animais? Não sei ao certo se, na verdade, já não somos educados para querer ter animais como temos brinquedos. O cavalo seria o nosso amigo de infância? Mas assim sendo, não dominamos nossos amigos, pois nossos laços são de outra natureza: de companheirismo, lealdade e vontade de aventura e diversão. Domar um cavalo tem outra origem: é a de tomar algo que não nos pertence. Além do prazer sádico que há, por exemplo, na longa cena em que dois cavalos já cercados, brigam violentamente em Crin blanc. O animal no cinema, assim como em tantas outras atividades humanas, era e é levado a fazer aquilo que não faria naturalmente. Nós os colocamos em situações que reduzem (ou induzem) seus comportamentos e vontades a reações de medo, fuga e nenhum sossego.
Ora, é evidente que os sentimentos humanos atribuídos aos animais são (pelo menos no essencial) uma projeção de nossa própria consciência. Só lemos em sua anatomia ou comportamento os estados de alma que mais ou menos inconscientemente lhes atribuímos, a partir de certas semelhanças exteriores com a anatomia ou com o comportamento do homem. [O que é o cinema?, de André Bazin]
O que aproxima o cavalo com o homem em The mustang é que ambos são vistos como necessitados das famigeradas rédeas. Deixá-los em solitárias uma forma de conseguir isso já que apresentam mau comportamento, isto é, são arredios. Homem e cavalo lutam com suas forças para romper as barreiras que cercam alternando momentos de explosão e conformismo. Essas são situações plausíveis. Mas já o encontro dos dois no reconhecimento do sofrimento um do outro é improvável, pois o cavalo, fantasiosamente, parece compreender, mesmo que por um instante, a luta de Roman contra seus sentimentos de revolta e dor. É uma cena forçada: o cavalo adestrado vai ao encontro da personagem como o cavalo branco de Crin blanc tem que ser puxado pelo focinho por um fio de náilon, como descreve o crítico André Bazin, para aparecer corretamente no enquadramento da cena olhando para o menino Folco (um jovem pescador que convive com outros animais, uma criança ainda mais jovem e um velho que talvez seja seu avô). O mesmo percurso parece aproximar o menino do filme de Lamorrise: ambos são espíritos livres que não podem viver sob a rédea de ninguém e se juntam para fugir de uma condição de opressão, apesar de o menino ter que montá-lo e dominá-lo. A relação de forças, mesmo entre uma criança e um animal adulto, é desigual quando imaginada dessa forma.
Roman, em momento de reclusão na solitária, consegue uma revista especializada em cavalos, através de um intrincada rede de troca de objetos entre prisioneiros por fios arremessados de cela em cela. Eles cruzam o pátio ao cair da noite e mantém ativo uma espécie de mercado ilegal. Bom, o personagem tem algum interesse em cavalos a ponto de estudá-los minimamente. Ele se depara com um artigo que parece tratar do animal do ponto de vista histórico. "A criação de cavalos no século XVIII" é o título do artigo que destaca uma frase de William de Cavendish, o Duque de Newcastle que, segundo Alexander Nevzorov, autor de The Horse Crucified and Risen, diz o seguinte sobre ele: "For all his life he struggled to be a true master, but all these struggles were vain. Although he had called himself one of the pillars of Haute École whenever it was possible, we still remember the spur wheels which he attached to the tail of the chambrière, his constant use of serreta, the habit to “bend the head to the boot” and other manifestations of Newcastle’s cruelty, which always stood in contrast with the true spirit of the School." Mas, aparentemente, Roman só consegue depreender do que lê um nome para o cavalo que não é e não será seu, pois tem como destino o leilão.
Aquilo que parece ser o ponto crucial dos filmes deixa claro que, independente da idade do protagonista, e da do espectador, ao nos identificarmos com as histórias que usam os cavalos como elo, podemos domar a nossa natureza selvagem e tudo aquilo ao nosso redor que considerarmos também passível de ser domado. Um self-made man, tão caro na conquista do Velho Oeste, repaginado ano após ano como se fosse uma sina. Transformar o mundo ao nosso redor em ferramenta para a viabilização dos nossos planos e/ou correção dos nossos defeitos. Por que o garoto sonha em dominar o cavalo, afinal? Por que o homem se apazígua apenas após perder a paciência com o cavalo aprisionado? O que no nosso imaginário está cristalizado dessa forma para vermos na imagem do animal a contraditória possibilidade de dominação e libertação no mesmo plano? Por que para que o nosso espírito seja, enfim, livre de amarras precisamos aprisionar outros?
O sofrimento do animal ao longo da nossa história em que os homens o escravizaram naquilo que chamamos de modo eufemístico de domesticação, foi particularmente cruel com os cavalos. Se a morte vem a cavalo e a nossa liberdade simbólica também, para o cavalo só vale a primeira máxima ligeiramente alterada: a morte vem ao cavalo. O final aberto de Crin blanc é talvez a melhor síntese dessa condição para o animal: o garoto e o cavalo se lançam ao mar numa fuga que talvez só tenha um desfecho, isto é, a morte de ambos. Já o fim de The mustang, que não vou adiantar para não estragar a “surpresa” é, no mínimo, fantasioso e volta ao ponto de que os animais são gratos a nós, apesar do mal absoluto que fazemos a eles… Vale, como sugestão, ficar com a imagem abaixo em mente quando The mustang estiver sendo exibido:
Ao término das filmagens de The mustang, a diretora, seguindo a ordem natural das coisas, comprou um dos três cavalos (sempre usam mais de um parecido nas filmagens envolvendo animais para facilitar o trabalho) “atores” e o levou para seu haras particular em Los Angeles. E o ator Matthias Schoenaerts disse que esta foi a primeira vez que se apaixonou por outro ator com quem trabalhou… O cavalo, pelo visto, conquistou a todos, só não conquistou a sua própria liberdade – a real.