📸 “Pigs” assassinos e porcos assassinados

Homem preto segura cabeça de porco em protestos na cidade de Minneapolis (EUA). Foto de Jeff Wheeler

Quando dos protestos pela revoltante morte de mais um afro-americano, a de George Floyd em 25/5/2020, desta vez pela polícia de Minneapolis (EUA), foi possível ver em imagens televisionadas um homem preto, quase de relance, segurando a cabeça de um porco em sinal de oposição a violência policial que aflige a população preta de modo sistemático. A cena, que foi registrada também pelo fotógrafo Jeff Wheeler (de 27/5/2020), será o mote para refletirmos sobre o uso do corpo morto de um animal não humano em um protesto legítimo e como eles se tornam também vítimas – reais e simbólicas – de nossas ações.

Qualquer um que tenha visto o policial Derek Chauvin assassinando por asfixia ao colocar seu joelho sobre o pescoço de um homem que não apresentava resistência por oito minutos e quarenta e seis segundos, ignorando seus apelos de que não conseguia respirar, deve ter morrido um pouco por dentro também por perder a fé na humanidade e em suas instituições que, a despeito de seu pretenso desenvolvimento, não foi capaz de superar algo como o racismo em pleno século XXI. George Floyd não havia cometido crime algum até aquele momento em que foi parado pela polícia e mesmo que tivesse não deveria ter sido executado. E quando a violência parte do Estado temos um problema ainda maior, porque o cidadão comum, como era o caso de Floyd, tem quase nenhuma chance de se defender seja nas ruas, seja nos processos jurídicos que se desenrolam quando as vítimas não foram assassinadas.

A onda de protestos que tomou várias cidades estadunidenses ganhou grande repercussão e motivou, pelo mundo todo, uma forte adesão ao movimento BLACK LIVES MATTER. E como era de se esperar, o execrável presidente estatunidense, Donald Trump, condenou as manifestações e sinalizou que enviaria tropas nacionais para conter as revoltas. Trump nunca se mostrou ao lado da população preta de seu país, ao contrário, ele é fortemente associado aos supremacistas brancos.

Agora, nos concentrando na imagem em questão, por que não, ao invés da cabeça de um animal, os manifestantes não levantaram o capacete de um policial em sinal de vitória ou resistência? O capacete, que se usa na cabeça, é um símbolo tão forte ou tão mais forte que a cabeça de um porco – um animal indefeso e alheio aos nossos problemas, e uma das mais numerosas vítimas da indústria da carne, da indústria que realiza experimentos científicos, da indústria do entretenimento e tantas outras formas de exploração, sendo sempre submetidos a intenso sofrimento e abatidos aos milhões todos os anos em muitos países. Erguer um capacete, em termos simbólicos, é o equivalente ao levantar a cabeça de um oponente. É tomar do inimigo aquilo que lhe protege o que lhe é mais vital: o cérebro. Sem falar que capacetes carregam insígnias do Estado ou da corporação ao qual os agentes fazem parte. Tais insígnias (muitas delas aludindo à morte, como é o caso do B.O.P.E., no Rio de Janeiro, e sua infame “faca na caveira”) são elas próprias atributos de poder. Tomá-las é enfraquecer simbolicamente o oponente!

O porco, um animal não humano, é também, nos EUA, um símbolo para representar o policial branco como observa o antropólogo Hélio Menezes no texto A face animal da brutalidade racista ao também analisar esta mesma imagem: “Pig‘ é justamente uma gíria empregada para designar, de modo ofensivo, agentes policiais nos EUA. A associação também está fortemente presente na cultura visual norte-americana, tendo encontrado nas gravuras de Emory Douglas dos anos 1960 e 1970 um discurso visual poderoso que atrelou em definitivo o pobre mamífero à figura da polícia racista.” [grifo nosso]

Por pig, então, entende-se, pejorativamente, que o policial equivale ao porco, um animal, incorretamente associado a imundice. Não à toa, no nosso idioma, temos a expressão porcaria para designar algo invariavelmente negativo. Chamar alguém de porco no Brasil, e ao norte do continente é, basicamente, uma ofensa. O porco, como muitos já se deram conta, é um animal inteligente e sociável, além de não gostarem de sujeira. Suas “habilidades matemáticas”, apesar de ser algo totalmente desprovido de sentido averiguar, já foram comprovadas. Sua inteligência é até maior que a de um cachorro e ela seria o equivalente a de uma criança. Assassinar porcos por serem porcos, sobre qualquer pretexto, equivaleria, portanto, a assassinarmos crianças por serem crianças.

Não podemos deixar escapar também a expressão “porco capitalista”, outra forma de ofender, se vincula à obra do escritor britânico George Orwell, A revolução dos bichos. Nela, cabe aos porcos o papel de vilões por oprimirem os outros animais da fazenda enquanto eles levam uma vida boa depois de se rebelarem ao controle dos humanos. Trata-se de uma alegoria em referência a revolução russa de 1917 e, portanto, inofensiva aos animais.

Seguindo adiante e mirando nossas questões sociais, é próprio do machismo, seja vindo de homens brancos ou pretos, querer impor sua força uns aos outros quando há algum tipo de embate. E não é à toa que a imagem só ganhou todo este destaque, porque é um homem, e não uma mulher, que segura a cabeça do animal morto.

Quando um homem preto na cidade de Minneapolis, que aparenta ser forte, ao contrário dos comumente obesos policiais fortemente armados que vemos através da imprensa internacional, aparece com a cabeça de um porco em suas mãos, sinalizando que aquele é o símbolo da opressão (os policiais, os pigs) ao qual ele apenas simbolicamente derrotou, pois a opressão e os assassinatos de afro-americanos continuam, temos inequivocamente uma demonstração de força e não propriamente de resistência… Se observamos detidamente, o homem é acompanhado na imagem por uma mulher preta, quase no mesmo plano e que segura um celular, símbolo do nosso avanço tecnológico comunicacional e vetor de tantos protestos organizados em redes sociais, com mais algumas pessoas ao fundo que, sendo elas brancas, indicam terem aderido ao movimento B.L.M.. A mulher parece dizer algo e sua presença ali não recebeu destaque algum.

O alvo (e vítima) ali, contudo, foi o animal não humano e não o policial ou a polícia. O simbolismo daquela imagem, apesar de forte e mexer com os sentimentos de qualquer um que a veja, não arranhou a imagem das forças do Estado. Não fez nem cócegas nas autoridades que, no máximo, podem ter sentido que se tratava de mais uma provocação apenas, se é que viram algo naquele instante do protesto. Não deixa de ser possível conceber que com a presença dos fotógrafos, as pessoas façam coisas para se exibirem… E esse exibir-se para as câmeras encontra eco na obra Diante da dor dos outros, de Susan Sontag: “A caçada de imagens mais dramáticas (como, muitas vezes, são definidas) orienta o trabalho fotográfico e constitui uma parte da normalidade de uma cultura em que o choque se tornou um estímulo primordial de consumo e uma fonte de valor.”. Tal imagem só chegou a nós por ter sido congelada pelo clique do fotógrafo, pois ela também apareceu num vídeo e aparentemente sua repercussão não vem da imagem em movimento, mas do instante decisivo do homem que ergue a cabeça do animal morto em sinal de provocação ao outro lado.

Em junho de 2013 no Brasil, em meio as revoltas articuladas inicialmente por movimentos sociais de esquerda e que foram aos poucos sendo usurpadas pela extrema-direita e por protogolpistas, a imagem de um policial ferido (o PM Wanderlei Vignolli fazia a proteção do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo naquele momento) por uma pedrada na cabeça serviu para que, no dia seguinte e em mais uma sequência de protestos, a polícia fosse extremamente violenta com os manifestantes na cidade de São Paulo. Um policial, de uma polícia militarizada e historicamente violenta, ferido, é como um combatente alvejado numa guerra e que não pode ser deixado para trás pelos seus companheiros de farda. A imagem, estampada na capa dos grandes jornais, que se opunham às manifestações, serviu para instigar as tropas e a população civil sofreu as consequências. Observa-se, contudo, que o policial, apesar de estar sangrando, detém um manifestante colocando seu joelho sobre ele, também aponta uma arma de fogo para as pessoas próximas. Uma mão, que aparece na imagem, indica para que ele se acalme.

Essa imagem representou algo equivalente a uma agressão a todos os policiais do Estado. Algo totalmente inverídico, pois policiais feridos foram a minoria em todos atos convocados pelo Movimento Passe Livre.

Resistir pode ser, entre outras práticas, atear fogo em símbolos representativos de poder (vale queimar carros também: algo comum em manifestações em Paris, França), como foi feito em uma delegacia (uma edificação; desprovida de vida, portanto) que, ao arder e levar aos céus suas labaredas, evoca a fúria do cidadão injustamente agredido pelas instituições que devem existir para protegê-los e não assassiná-los por ódio, racismo e preconceito. Os números de homens e mulheres pretos mortos pela polícia estadunidense é assombroso. A população preta encarcerada é escandalosa. O sistema judiciário da pátria da liberdade é seletivo e livra agressores brancos e sentencia com as penas mais duras diversas gerações de pessoas pretas. A situação no Brasil é ainda pior e aqui temos um verdadeiro genocídio da população preta orquestrado pelo Estado.

É possível resistir de maneira pacífica como fez Martin Luther King Jr. nos anos 60? Sim, mas esse tipo de ação talvez tenha ficado restrito a outra época em que a não-violência e a desobediência civil tinham sentido (e significado) dentro de uma sociedade com uma liderança pacifista. Hoje, com a confusão das redes sociais que incitam o ódio através de suas plataformas coloridas e cheias de emojis (Facebook, Instagram, Twitter, YouTube etc), o que temos são milhares de curtidas para um jovem com a camisa estampando o rosto de Martin e partindo para o combate e dando um soco em, segundo um relato, um fascista.

Como muitos outros que em algum momento levantaram suas vozes contra sistemas opressores, ele próprio, o homem preto pacifista assassinado por um racista e intensamente vigiado pelas autoridades de seu país, se tornou um símbolo de resistência pacífica que é, hoje, deturpado pela fúria de quem também vê no protesto uma forma de extravasar sua condição de oprimido e perseguido. Socar a cara de um homem branco com tendência fascista pode nos trazer algum alívio porque estamos do outro lado do espectro ideológico, mas não resolve o problema. Vamos socar todos eles? E depois do soco eles se corrigirão e passarão a ver a coisa como ela deveria ser vista, isto é, com menos ódio e sem racismo? Não… O máximo que teremos é mais um fascista de olho roxo e um novo meme para rir e compartilhar. Na mesma toada, adianta matar um animal para que ele simbolize algo ou alguma coisa? Não… Só teremos mais uma vítima inocente que pagou com a vida para nada mudar.

Daí que se elencarmos uma pessoa como Ventura Profana, uma multiartista, que usou em uma de suas obras a imagem de animais mortos (incluindo porcos) pela indústria da carne, para serem comercializados e consumidos pela população em geral (de pretos e brancos), os contrapondo à imagem do execrável Presidente Jair Bolsonaro numa colagem digital, o que temos é uma criação a partir de imagens de outras pessoas que resulta numa outra com significado diferente do original quando vistas isoladamente. E como diz novamente Sontag em obra já citada neste texto: “As intenções do fotógrafo não determinam o significado da foto, que seguirá seu próprio curso, ao sabor dos caprichos e das lealdades das diversas comunidades que dela fizerem uso.

Ao retrabalhar as imagens, entregando através de uma “intertextualidade imagética” algo muito mais poderoso que apenas trabalhos isolados de fotógrafos ou fotojornalistas, ela revela uma face do governo que é regido sob o signo da morte e da destruição (de humanos e animais não humanos): os animais mortos pela indústria da carne atrás do presidente tossindo e parecendo um morto-vivo em sua decrepitude indisfarçável. É algo totalmente contrário à imagem do homem que segura a cabeça do porco assassinado, que contrapõe sua vitalidade a do animal morto sabe-se lá em que condições! A destruição da vida, qualquer vida, não é motivo para se celebrar ou se contrapor ao horror praticado pelo Outro. Não se ostenta cadáveres de agressores para se elevar moralmente aos assassinos dos seus, exceto por perversão ou para demonstrar que se domina o Outro de forma absoluta quando uma guerra se inverte e passamos de derrotados a vitoriosos. Tal situação é comum em embates genocidas em que um quer o extermínio completo do Outro seja por qual razão for: étnica, territorial, política etc.

Ventura Profana, vale dizer, defende que todas as formas de vida devam ser respeitadas e protegidas, inclusive dentro de uma perspectiva cristã. E, para a surpresa de muitos, é justamente no discurso de uma pessoa trans e preta, que assume ela própria múltiplos e complexos significados, vemos um discurso pró-vida – de todos os seres vivos, sem exceções.

Signos e símbolos são compreendidos, verdadeiramente compreendidos, apenas por humanos. Se experiências (violentas e que trazem sofrimento aos animais) com gorilas e macacos indicam que eles podem dominar parte do nosso sistema de linguagem isso não tem valor para eles, pois não é da natureza deles esse anseio em se comunicar uns com os outros, de sua própria espécie, por intermédio da linguagem de outros primatas – os homo sapiens no caso.

Quando Menezes, ao analisar o registro fotográfico de Jeff Wheeler, ainda diz que se “no plano do real a violência genocida da polícia tem tornado vidas negras alvos da repressão, do encarceramento e da morte, no plano reversivo do simbólico é o animal-policial que aparece abatido, vencido, inanimado”, ele se equivoca ao evocar um “animal-policial”, pois tal coisa, no plano real, inexiste de fato, mas no plano simbólico, neste caso e em tantos outros que usam animais para preencher o vazio dos signos e símbolos humanos, é um animal que estava vivo e tinha uma vida a ser vivida que escora o aludido simbolismo.

A vida do animal vale menos que a de um homem preto? Ou a vida do animal vale menos que a de um policial branco? Não, a vida de um animal não vale nem mais e nem menos, ela apenas tem valor em si mesma e deveria ser respeitada como tal. Se o animal é símbolo de algo, que seja pela via da representação da poderosa imaginação humana: um boneco do animal poderia muito bem servir para tanto ou um desenho num cartaz, não o cadáver vilipendiado de um animal que pagou com sua vida para ser algo com significado apenas entre nós humanos (policiais = pigs). Os animais já pagam um alto preço por viverem entre nós: os porcos, os bois, as galinhas, os peixes e tantos outros são explorados das mais variadas formas (como alimento, como diversão, em práticas religiosas de distintas religiões, em pesquisas “científicas” etc) e vivem uma situação que já dura mais de dez mil anos. Não chega a nos surpreender, portanto, que seriam (e são) explorados também no plano simbólico.

E ainda cabe uma observação: a queixa de que as populações pretas são animalizadas se inverte, pois é o homem preto que, através do animal morto, agora animaliza os policiais ao indicar que eles são pigs e não, talvez, uma horda de sádicos a serviço do Estado. Tirar das instituições e seus agentes a sua humanidade esvazia de sentido suas torpes ações contra as populações pretas. Ora, se eles são animais “animalizados” por nós, eles agem conforme a sua natureza. Não, não é caso: a polícia e seus agentes sabem perfeitamente o que estão fazendo: oprimindo, perseguindo, matando para dar cabo a um projeto de eliminação das populações pretas num processo de branqueamento que, em várias partes do mundo, segue em marcha ao longo de séculos. Essa reação especista presente no protesto em Minneapolis não muda a condição da polícia e, a certos olhares, pode até atenuá-la… São atos humanos, contra os humanos, que regem as ações violentas da polícia em reação a ação dos manifestantes: seja pelas vias concretas do protesto, seja pela via do discurso.

A mudança social libertadora exigirá que nós, como minorias [homens e mulheres pretas, nos EUA, ao contrário do Brasil, são minoria], mudemos também nosso pensamento. Se sabemos que o racismo e o sexismo são questões sistêmicas que afetam a todos, por que pensaríamos que os brancos são os únicos que precisam reavaliar seus comportamentos e conceitos? O sistema nos contagiou a todos. É ilógico falar de ‘estruturas’ numa tacada só, e depois ter nossa defesa estruturada em disciplinar os brancos individualmente. A libertação exigirá que todos nós atuemos de forma diferente e reavaliemos como fomos treinados para entender quais são os problemas reais e suas soluções. A mudança não será apenas um evento externo, mas acontecerá também internamente. A Libertação exige que derrubemos o muro que colocamos em torno de nossa própria opressão como povo preto para que possamos ver o largo território da supremacia branca e como ela afeta muitos outros grupos marginalizados.1 [Aphro-ism: Essays on Pop Culture, Feminism, and Black Veganism from Two Sisters, de Aph Ko. Tradução e grifo nossos]

Então, o que resta aos animais? Não resta muito, mas para nós restam os incontáveis signos de violência que inventamos para tornar nossa comunicação persuasiva e dominadora de animais humanos e não humanos. Nós podemos organizar protestos, praticar a contestação, desobedecer, derrubar muros, organizar movimentos sociais, encorajar a luta etc, mas sempre deixando os animais fora disso quando eles não forem a razão própria do levante.

No Saber Animal apoiamos todos os movimentos sociais que não têm os animais como joguete de suas articulações e disputas de narrativas dentro ou fora do campo político, afinal, os animais não se revoltam ou se rebelam – exceto nas ficções criadas por nós, humanos. Os animais não humanos apenas fogem ou se defendem, às vezes e quando seus corpos permitem, de nossas covardes investidas, mas outros, nem isso, pois são tão mansos, amistosos e curiosos que seguem sendo abatidos para todos os fins, sejam eles simbólicos ou não.


Nota

1. “Liberatory social change will require us, as minorities, to change our thinking as well. If we know that racism and sexism are systemic issues that impact everyone, why would we think that white people are the only ones who need to reevaluate their behaviors and conceptual frameworks? The system has infected us all. It is illogical to talk about “structures” in one breath, and then have our advocacy structured around disciplining individual white people. Liberation will require all of us to act differently and to reevaluate how we’ve been trained to understand what the actual problems are, and their solutions. Change won’t just be an external event, but will happen internally as well. Liberation requires us to knock down the wall we’ve placed around our own oppression as black people so we can see the expansive territory of white supremacy and how it impacts many other marginalized groups.” (grifo nosso)

Texto atualizado em 12 de Janeiro de 2024.