🕹️ Game – Ape Out (2019)


No antigo jogo Donkey Kong (1981), de Shigeru Miyamoto, o gorila tem início da sua “vida” como antagonista para, ao longo do tempo, tornar-se um protagonista. O que parece ser só um animal agressivo que precisa ser derrotado tinha outro sentido na mente do criador japonês: Donkey Kong era gorila aprisionado que sequestrou Pauline para se vingar de Jumpman, um carpinteiro (aprisionador de gorilas?), que depois se transformou no mundialmente famoso Mario Bros., já na figura de um simpático encanador. É um pouco confuso, sim, mas faz algum sentido dentro da história do início do desenvolvimento dos jogos de vídeo game. Sem falar que na década de 80 do século passado, as limitações dos equipamentos (Arcades e Atari, por exemplo) não davam tanto espaço assim para narrativas complexas. O jogador, especialmente as crianças daquele tempo, tinham muito o que preencher com a imaginação por conta própria dado os poucos elementos que cabiam dentro de um jogo tão básico.

Mas não é o caso, quase 40 anos depois, de Ape Out (2019), de Gabe Cuzzillo, Bennett Foddy e Matt Boch, que explora de maneira estonteante as diversas fugas de um gorila de situações diversas, sempre tendo como trilha o gênero jazz. A cada embate do gorila com um humano (quase sempre na condição de um guarda armado que atira sem hesitar), o resultado, quando não fica só num empurrão, é violentíssimo: os humanos no jogo são destroçados com um golpe e sobram apenas uma poça enorme de sangue e membros humanos, que podem ser carregados pelo gorila e arremessados nos inimigos humanos para distraí-los por tempo o suficiente para fugir ou atacá-los. A cada morte de um inimigo, acontece uma batida da bateria e, num ritmo frenético, as fases terminam ou recomeçam a cada morte do jogador. Tudo te impele a continuar jogando! O estilo deste jogo lembra outro, igualmente violento e viciante, chamado Hotline Miami (2012), da Dennaton Games, e outro, não tão violento assim, Teleglitch (2013), da Test3 Projects. Todos eles tem a perspectiva de mostrar a ação por cima e não de lado como costuma ser na maioria dos jogos 2D.

Vendo algumas entrevistas do desenvolvedor, Gabe Cuzzillo, não ficou claro para mim a fusão entre o jazz e o gorila que precisa escapar. Qual o ponto de encontro entre a fuga assassina de um animal, que não é assassino de fato se o animal representado for um Gorilla gorilla, sendo apenas o 12º primata mais violento que mata outros de sua própria espécie, e um ritmo musical tão sofisticado? Gabe, que por ignorância acha que gorilas fazem isso, fala de que no jogo você precisa improvisar o tempo todo e isso realmente é a característica principal do jazz moderno. Mas será só isso? Se assim fosse, outros elementos, mais próximos ao estilo musical e seu contexto poderiam ter sido adicionados ao jogo, como a presença de vários músicos e instrumentos diferentes, os solos e uma diversidade incrível de ritmos. Em Ape Out ficamos só com a bateria… E a fusão é, no mínimo, inusitada. Buscar sentido nela é algo que sempre me pareceu um pouco forçado, como uma música do Kenny G.

NO RITMO DO PRECONCEITO

Bom, mas pensei numa possibilidade, passível ela própria de muitas críticas, pois não tenho informações sobre a postura ética das pessoas as quais citarei, é o fato do desenvolvedor enxergar no jazz, especialmente aquele tocado por músicos negros, o mesmo que os autores do livro O livro do jazz, de Günther Huesmann e Joachim-Ernst Berendt: um produto “selvagem” (as aspas são dos autores) quando tocada por negros. O animal, um gorila que se controla no jogo e que não age como um animal por justamente ser controlado por uma pessoa (o jogador) e, assim, faz coisas que um animal jamais faria. Para quem joga é só um personagem fugindo dos ataques de inimigos (humanos armados com escopetas, lança-chamas, revólveres, metralhadoras, espingardas e bombas). O ritmo do jogo, conforme já disse, é marcado pelo progresso do jogador que, a cada morte, produz, além de um splash de sangue de um oponente quando é estraçalhado pelo primata, um som de prato da bateria.

O jogo se resume, então, a isso? Sim… O fato do estilo de bateria que está sendo tocado ser idêntico a de um Warren “Baby” Dodds, como já disse tachado de selvagem (entre aspas), pelos autores de O livro do jazz – ou daquilo que se convencionou chamar “a bíblia do jazz”. E só posso dizer que a situação ali é, no mínimo, complicada e potencialmente racista, pois os autores do livro, quando se dedicam a falar da importância da bateria no jazz, indicam uma dualidade entre jazzistas negros e brancos, com os primeiros sendo velozes, furiosos, duros, selvagens e os segundos intelectuais, complexos, profundos, europeus. Essa diferença nos adjetivos…, sinceramente, aponta para uma forma mal disfarçada de preconceito. Como se a musicalidade objeto de análise não fosse fruto do intelecto de um jazzista negro (afinal, ele tem um cérebro de um homo sapiens, certo?). É como se mesmo velocidade, fúria, dureza e a dita selvageria não fossem previamente pensadas e expressões autenticamente artísticas quando apresentadas. Ora, se o que os jazzistas negros, em especial os bateristas, têm a oferecer a um dos gêneros mais sofisticados do mundo são apenas habilidades motoras há algo de muito errado nisso, porque simplesmente não faz sentido dada a importância dos artistas negros para o gênero e a própria importância da bateria nesse estilo musical.

Daí que cogito que a escolha do gorila, somada a essa leitura do jazz dos autores Günther Huesmann e Joachim-Ernst Berendt, que parece ter sido feita também pelo desenvolvedor em suas pesquisas e não têm relação alguma com o jogo Ape Out, colocam o gorila na mesma condição equivalente a de um homem negro. Seria polêmico demais se controlássemos um homem negro em fuga de policiais assassinos? Não, talvez ao contrário, porque poderia ser uma forma de crítica social bastante válida, afinal é exatamente isso o que acontece: negros são perseguidos e mortos pelo Estado (em diversos países, não só aqui ou na terra do desenvolvedor estadunidense). Só que ao colocar um gorila, um dos primatas mais ameaçados do mundo e à beira da extinção, em diversas situações caricaturescas (fuga de prédio, escritório, laboratório, selva, navio e um zoológico), qual a mensagem que se quer passar nessa maçaroca de referências?

No que se refere ao ponto levantado acima, não se trata de um palpite furado: o trompetista, compositor e produtor Christian Scott aTunde Adjuah fala justamente sobre quando foi perseguido pela polícia, por várias quadras, de maneira totalmente gratuita e abordado com o intuito dele ser intimidado. Ele compôs uma música sobre a traumática experiência e ela se chama K.K.P.D.. Ouça abaixo a história e a música:

A presença da música You’ve got to have freedom, interpretada por Pharoah Sanders, que está presente no jogo é apoteótica. E parece ser uma homenagem do desenvolvedor ao gênero musical ao escolhê-la como uma espécie de síntese do que o jogo representaria: a busca pela liberdade encarnada pelo gorila. Mas gorilas não buscam a liberdade como nós buscamos a nossa… Gorilas, e toda sorte de animais silvestres, são naturalmente livres. Eles só se encontram na condição de aprisionados por conta da nossa característica predatória, do contrário, eles estão sempre na condição de livres e jamais buscam a liberdade, que lhes é inerente. Animais não humanos buscam a fuga tão somente. O resto é invenção do homo sapiens.

QUAL O NÍVEL DO JOGO?

Entendo plenamente que jogos de vídeo game são entretenimento e que apenas alguns poucos buscam atingir (propositalmente ou não) níveis incríveis em suas narrativas e levam esta linguagem (a dos jogos) a um nível artístico tranquilamente equiparável a outras como a literatura, o cinema, o teatro etc. Ape Out não tem uma história, apesar de dar elementos de uma em seus cenários labirínticos e coloridos gerados de maneira procedural – isto é, a cada nova rodada ele é totalmente diferente da anterior no percurso e no posicionamento dos inimigos -, pois sem narrativa e falas, os textos que se limitam aos títulos das fases apresentados numa tipografia dentro do que poderíamos esperar de um álbum de jazz muito cool de uma gravadora como a Blue Note Records e seu célebre design gráfico em capas que são reconhecidas facilmente e que o jogo mimetiza a cada nova fase.

Tive certa dificuldade em escrever sobre esse jogo, que me tomou apenas sete horas para ser zerado (concluído). É pouco para a média de jogos de grandes desenvolvedoras, mas de acordo para jogos indies, que são jogos feitos por empresas pequenas ou por apenas algumas pessoas, quando não por uma pessoa só. A dificuldade nasceu justamente em tentar encontrar algum sentido no jogo. Aparentemente não há, pois o lance é só a diversão em conseguir passar por momentos bem difíceis. O jogo é tachado de repetitivo, mas o elemento procedural atenua isso e jogá-lo várias e várias vezes até passar conseguir adiante é recompensador. Mas sem uma mensagem clara e talvez até mesmo vazio. Não é assim com todos os jogos, claro, e o intuito destas críticas de jogos é analisar aqueles que envolvem animais nas mais diversas situações.

“Bem, não tenho dúvida de que os videogames de hoje realmente melhoram a inteligência visual e a destreza manual, mas as virtudes dos games vão muito além da coordenação visual-motora. Quando leio esses relatos ostensivamente positivos sobre videogames, penso que seria o mesmo que escrever sobre os méritos dos grandes romances destacando que a leitura melhora nossa capacidade de soletrar. É verdade, acho, mas isso não faz justiça à rica e complexa experiência da leitura de romances. Há uma cegueira semelhante na maneira como os videogames vêm sendo tratados pela mídia até hoje. Apesar de tanto debate sobre a cultura dos videogames, a experiência de jogar propriamente dita tem sido representada de maneira estranhamente inadequada. Ouve-se muita coisa sobre o conteúdo dos videogames: a carnificina, os tiroteios, as fantasias adolescentes. Mas raramente ouvimos descrições acuradas sobre qual é a sensação de se passar o tempo nesses mundos virtuais. Preocupo-me com o hiato de experiência que existe entre as pessoas que mergulharam nos videogames e as que apenas ouviram relatos de segunda mão, porque esse hiato torna difícil discutir de maneira coerente o significado dos videogames. Isso me faz lembrar o que a crítica social Jane Jacobs sentia a respeito dos prósperos bairros urbanos que ela documentou na década de 1960: ‘Quem conhece bem essas animadas ruas da cidade sabe como é. Quem não conhece sempre vai conceber uma imagem um pouco errada – como as antigas ilustrações de rinocerontes feitas a partir de descrições dos animais.’ Então como são realmente os rinocerontes? A primeira e última coisa que se deve dizer sobre a experiência de jogar os videogames atuais, aquilo que quase nunca se ouve nos principais meios de comunicação, é que os jogos são terrivelmente, às vezes enlouquecedoramente, difíceis.” [Tudo que é ruim é bom para você: Como os games e a TV nos tornam mais inteligentes, de Steven Johnson]

O fato de Ape Out ser fácil de jogar, mas difícil de avançar em certas fases, presta pouco serviço ao jogador para além do desenvolvimento motoro e da pura diversão. Este ponto esbarra um tanto na questão do jazz, pois ele próprio demanda, especialmente do baterista, muita coordenação motora. O escritor Steve Johnson, na citação acima, atenta para o fato dos jogos de vídeo game serem uma experiência difícil de explicar sem que eles sejam jogados. Isto é um fato e creio que valha o mesmo para quem nunca apreciou o jazz com suas nuances e energia vibrante. Só que o jogo em análise não nos dá muito de nenhuma das duas experiências, pois ele é fácil, mas demanda bons reflexos e um bocado de sorte por conta dos cenários que mudam a cada rodada: trombar de repente com um inimigo pode ser fatal e isso anula o ritmo do jogo. Seria como ouvir um baterista de jazz que, de tempos em tempos, derruba as baquetas das mãos e tem que recomeçar a música outra vez. A junção das duas coisas, do jogar o jogo e do jazz, criou algo esquisito, que até poderiam ser interesses se tudo fosse pensado de outra forma… O êxito do jogo, contudo, ficou restrito ao mimetismo da questão estética (já apontada mais acima) que, esta sim, pode existir sem prejuízo ao estilo musical ou mesmo à jogabilidade.

O ANIMAL JOGADO

Deixando o lado que impressiona no jogo (a bela parte gráfica combinada com a música), o animal em Ape Out pode ser visto apenas como uma forma de entretenimento. É como se estivéssemos no circo ou em qualquer outra atividade na qual é possível interagir com um animal silvestre. Talvez não seja do seu conhecimento, mas os animais sofrem demasiadamente no circo, pois como relata Tom Regan em seu livro Jaulas Vazias, eles passam por privações as mais diversas: são espancados durante o adestramento, vivem em espaços exíguos, são afastados do convívio social de suas espécies etc. Circo com animais representa sofrimento puro para eles. Daí que assumir a pele de um gorila, num jogo, mesmo que virtualmente, vai no mesmo sentido de tornar cômico e ridículo um animal – no plano simbólico neste jogo, mas que facilmente é transposto para a realidade cotidiana. Não sabemos nada sobre os apuros que o gorila passa no contexto do jogo em nenhum dos lugares dos quais ele está fugindo… Não seria necessário, claro, porque um gorila deve estar na selva, seu habitat natural, ponto. Todas as outras situações, inclusive a do circo ou do zoológico, são estranhas, indesejáveis e para as quais ele não está adaptado. Nenhum gorila abandona, exceto por fome ou por algum tipo de armadilha que possa enganá-lo, seu contexto que lhe é próprio. Qualquer coisa no sentido contrário é especismo. Qualquer tentativa de relaxar uma situação assim é uma violação ética.

Ape Out, em alguns momentos, me lembrava o célebre filme King-Kong (1933), de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, que no alto de um prédio o gorila precisava ser abatido por representar uma ameaça aos novaiorquinos que queriam vê-lo apenas como uma atração bizarra. Esse filme, diga-se, também serviu de inspiração para Miyamoto criar seu Donkey Kong! Há no imaginário coletivo uma forma de ver os gorilas como uma ameaça terrível e que é necessário caçá-los, destruí-los, porque, ora, eles são ferozes, duros, fortes, rápidos quando correm e, claro, selvagens. No caso do antigo filme de 1933, o gorila, um ser gigante e que de fato não existe, exceto na imaginação dos criadores e da plateia, fica encantado com uma mulher (branca e com traços europeus, claro) e a sequestra tendo como destino final uma morte dramática… Outro jogo, *Ape Escape* (1999), da SCE Japan Studio, também tem humanos atrás de primatas. Um deles, Specter, torna-se inteligente após colocar um capacete especial e o utiliza para controlar a mente de outros macacos e formar um exército que só aprontam. É preciso capturá-los e restaurar a ordem. Nesse caso, a única violência da qual me lembro é o ato de pegá-los com uma rede – sem carnificina. O destino dos primatas nos jogos não é o dos mais fáceis. Talvez a exceção seja a virada da narrativa do próprio jogo Donkey Kong, que passou a ser um protagonista e herói. Poderemos falar só dele em algum momento!

A VIOLÊNCIA IMAGINADA

O gorila, sempre em fuga, deixa um enorme rastro de sangue e pedaços de corpos atrás de si, reforçando o estereótipo de uma violência que não faz parte do comportamento desse animal. Por onde ele passa, quando não se esquiva de seus perseguidores, e tem que confrontá-los, o resultado é uma carnificina. Por quê? Um animalista revoltado com o que nós fazemos com os animais não humanos poderia sentir algum regozijo nessa matança virtual: seria a vingança merecida de quem agride os animais. Sinceramente, tirando o fato “divertido” de ver os inimigos soltarem uma espécie de gritinho, ao serem arremessados de um prédio ou de um navio, não se pode tirar prazer de algo assim nesse sentido de uma “vingança animal” ou mesmo animalista. Exceto se você for um psicopata entediado, claro.

Uma das fases implica em fugir, mas, ao mesmo tempo em que se escapa de um zoológico, é possível libertar outros animais quebrando o vidro de suas jaulas. Esses animais, mais difíceis de identificar (há uma cobra, ratos, tigres ou leopardos), quando libertados também atacam os inimigos (só os inimigos humanos, não o gorila), tornando a sua fuga mais fácil. Depende do jogador libertar os animais. Enquanto joguei soltei todos eles, sem exceção e eles “me ajudaram” matando os inimigos. Os animais libertados não tinham a mesma movimentação dinâmica e desenvolta do gorila. Eram bem travadões, na verdade. E ajudavam na medida em que apenas avançavam ou tumultuavam o cenário, que é sempre visto de cima, como é possível ver no trailer do jogo. Novamente, um animalista poderia encontrar algum conforto nesse ato (eu mesmo os libertei ao invés de apenas fugir), mas ainda assim ele é fora de contexto, pois animais, num zoológico, estão fora do seu habitat, com muitos nascendo ali mesmo e nunca tendo tido a chance de viver em seu ambiente natural, ou seja, eles apenas fugiriam dessa anomalia que é o zoológico. O jogo, portanto, não chega a subverter a ideia do zoológico ao permitir que o jogador o ataque e ataque seus visitantes, pois nesse ambiente não há apenas inimigos. E disso resulta outra questão, que o desenvolvedor parece alheio: a Cruz Vermelha até tenta desestimular que jogadores, em jogos de guerra ou de tiro, “matem inocentes”, sugerindo que as desenvolvedoras punam os jogadores por “cometerem crimes” nas partidas. E não seria o caso de Ape Out? Mesmo sem ser um jogo que se presta a esse tipo de violência bélica, é possível matar não-inimigos ao som de um animado jazz sem que isso configure uma violação, afinal, você “é” só um gorila selvagem do qual é difícil sentir alguma empatia. Especialmente se ele é tão poderoso e mortal, coisa que de fato não acontece na natureza.

#FICAADICA

O documentário Virunga (2014), de Orlando von Einsiedel, aos interessados na temática real com a qual os gorilas convivem.

🕹️ Game – Ape Out (2019)
Jogabilidade
7
História e sentido
3
Originalidade
5
Situação do animal
3
Pontos positivos
Visualmente bonito
Fácil de jogar
Barato
Pontos negativos
Sem contexto
Repetitivo
Violentíssimo
4.5