🗞️ Novo surto de coronavírus, covid-19 nos frigoríficos, assassinato em massa, trabalho insalubre e escravo. Você ainda financia tudo isso?

Homem segura um salmão com expressão de sofrimento após ter sido pescado.
A agonia de um peixe retirado de seu habitat é uma evidência que todos podemos compreender.

Evidências, ignoradas por muitos, sempre se apresentam no mundo real e assim é como se a nossa consciência ou capacidade de discernimento fosse sendo testada, sem que ao menos possamos percebê-las quando estamos completamente imersos nas percepções e sensações coletivas. Isto nos leva a refletir que, muito mais do que possa parecer, sempre temos a oportunidade de escolha à nossa frente exatamente porque a evidência está ali mesmo, plenamente acessível acenando para nós que, tantas vezes, preferimos olhar para o sentido oposto.

Sabedores desse padrão coletivo da “normalidade” e da ignorância sistematicamente deliberada ou não, nós do Saber Animal, somos inspirados a produzir conteúdos que se baseiam em outras percepções de mundo, em outros pontos de vista que não aqueles compartilhados pela maioria que trabalha para a imutabilidade do dito mundo normal.

Com essa pandemia, quando é que as coisas vão voltar ao normal? Essa é uma inquietação que, vez ou outra, acaba pairando na mente de todos nós, em maior ou menor intensidade. Mas antes dessa pergunta é preciso se questionar: o que é a normalidade? Que normalidade é essa que tanto desejamos que retorne? Qual vacina terá o efeito milagroso de nos manter afastados de surtos pandêmicos originados por nosso estilo de vida?

Nas cidades brasileiras, as portas do consumo começam a se reabrir enquanto se noticia o crescimento do número de casos de infectados e mortes pela covid-19, antes mesmo da pandemia atingir o seu pico conforme alertam epidemiologistas e apesar de muitos não terem mais como ficar em casa sob pena de comprometimento de sua própria subsistência (pessoas que precisam de assistência governamental para que possam permanecer em casa pelo tempo necessário), a decisão de flexibilização ocorreu devido à pressão do empresariado bolsonarista que coloca o seu faturamento acima de tudo e de todos.

Desprezo pela natureza e pelas pessoas não humanas (e aqui não me refiro à fictícia “pessoa” jurídica e sim aos animais não humanos) causaram a atual pandemia que atingiu a vida e a saúde das pessoas humanas. A conhecida primatóloga britânica Jane Goodall também compartilha desse entendimento, vale conferir a entrevista que concedeu para a Agence France-Presse.

Saiba mais: O ASSASSINATO E A EXPLORAÇÃO DE ANIMAIS NOS COLOCARÁ DIANTE DE NOVAS PANDEMIAS, por Vanice Cestari

O desrespeito à vida de uns leva o desrespeito à vida de todos.

O sistema econômico apartado de valores éticos e ecológicos nunca levou em conta a vida e a saúde de quem quer que seja e agora não seria diferente por conta do surgimento de uma nova doença, fruto dessa máquina mortífera. Olhamos com maior atenção para a direita e para a esquerda e ao invés de enxergarmos diferenças substanciais, sequer observamos nuanças quando a pauta é crescimento econômico, desejada por ambas, eis que compartilham da mesma visão de mundo produtivista para o atendimento de interesses de setores nefastos que violentam seres sensíveis e em detrimento do bem estar socioambiental, a exemplo do costumeiro estímulo à atividade pecuária, “produtora de proteína animal” ou de mortes, doenças e devastação a depender do nosso ponto de vista.

“O crescimento, hoje, só é um negócio rentável se seu peso recair sobre a natureza, as gerações futuras, a saúde dos consumidores, as condições de trabalho dos assalariados e, mais ainda, sobre os países do Sul. Por isso uma ruptura é necessária. Todo o mundo ou quase todo o mundo concorda com isso, mas ninguém ousa dar o primeiro passo”. [Serge Latouche, em Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno].

Alguns são críticos ferrenhos do agronegócio, mas geralmente só na parte da agricultura com veneno e do desmatamento sem o estabelecimento da ligação com o problema raiz dessa questão: o desejo de todos pela chamada proteína animal. Sem “carne” no prato, sem boi e sem soja no pasto significa floresta em pé, vidas e saúde preservadas. Proteína por proteína, nossos corpos humanos também são constituídos por ela, ainda que nos alimentemos exclusivamente de plantas e seus derivados.

Além da defesa animalista abolicionista (uma questão eminentemente política que, na sua inteireza, desinteressa ambos espectros políticos – por sinal, mais uma evidência reveladora), inúmeras são as denúncias sobre as insalubres condições dos trabalhadores que são inerentes à atividade pecuária.

Saiba mais: PARA ALÉM DA “OPERAÇÃO CARNE FRACA”: ESCRAVIDÃO ANIMAL E HUMANA NA INDÚSTRIA DA CARNE, por Vanice Cestari

Não à toa, esse tema continua atualíssimo, pois nada parece demover a prática de continuar financiando a objetificação dos corpos dos vulneráveis e consumindo, literalmente, a vida desses indefesos inocentes, nem mesmo a pandemia em curso originada do consumo de animais que ainda agravou muito mais a frágil e debilitada saúde desse trabalhadores no Brasil e no mundo que, de certo modo, também tem as suas forças vitais consumidas porque integram o que podemos chamar de um dos piores subempregos existentes, já que a pecuária é conhecida por concentrar a maior incidência de trabalho escravo no Brasil.

A manipulação desses corpos mortos e a inconsciência humana que também notamos no tom da reportagem acima é absurdamente chocante, mas a esmagadora maioria segue anestesiada e ignorante, completamente indiferente ao horror que causa, quando muito refletindo sobre um pequeno aspecto dessa realidade onde a única anormalidade mostrada é a falta ou impossibilidade de distanciamento entre esses trabalhadores, camuflando e normalizando toda a barbárie restante.

Há quem denuncie a tragédia que seus olhos alcançam sem mexer no seu prato, no papel de coadjuvante de uma violência desmedida que atinge as pessoas não humanas e humanas, sem deixar de colaborar com a continuidade desse subemprego desprezível, contribuindo para a manutenção do estado de pobreza e miserabilidade humana e participando de um monumental desequilíbrio ecológico.

A indiferença com as vidas alheias segue o seu curso e enquanto uns “não aguentam ficar em casa” e outros tantos lucram ou se beneficiam da morte, todos com a geladeira abarrotada de “proteína animal”, um novo surto de coronavírus acaba de ser detectado em um mercado comum em Pequim, mais precisamente em uma tábua usada para cortar salmão importado.

Tão logo surgiu esse novo coronavírus, antes de examinar atentamente a própria geladeira, muitos passaram a reclamar das preferências alimentares alheias devido ao consumo de morcegos, pangolins, cães e outros animais não humanos de diversas espécies. E agora com uma possível nova onda da covid-19 partindo de um local em que se manipula salmão, qual haverá de ser o motivo da queixa?

A volta à tal normalidade que leva o consumo de corpos mortos retalhados por humanos que, definitivamente, não precisam consumir esse tipo de “alimento” não durou muito por lá, haja vista autoridades da China afirmarem que o novo surto em Pequim é extremamente grave, tendo levado à suspensão das vendas de salmão em grandes redes de supermercados, a retirada do peixe dos cardápios de restaurantes, bem como o isolamento emergencial de onze bairros, dentre outras medidas anunciadas.

Será que o novo coronavírus e outras novas doenças vieram para ficar, se somar as já existentes que são produzidas pela pecuária, até que finalmente reconheçamos as suas reais origens para finalmente mudarmos nossos hábitos cotidianos que vão muito além do frequente ato de lavar as mãos? E até quando vamos continuar “lavando as mãos” como resultado de uma ilusória consciência tranquila?

Ficar em casa sem passar maiores dificuldades em um país desigual como o nosso acabou sendo o mais novo privilégio. Por isso, a depender das condições, é fácil “aguentar” ficar em casa. O mais difícil de aceitar talvez seja toda essa cegueira deliberada, o individualismo desvirtuado e a dita normalidade que nos trouxe e nos traz a esse estado de coisas.