🐕 Festival de Yulin e uma perspectiva sobre direitos animais e humanos

gatos engaiolados para serem mortos e consumidos no festival anual de Yulin na China.
Festival anual de Yulin, onde milhares de gatos e cães são assassinados para consumo humano.

A cada ano, só no festival de carne de cachorro, também conhecido como festival de Yulin, milhares de cães e gatos são cruelmente assassinados para consumo humano. Relata uma ativista chinesa que, no ano de 2013, mais de 50.000 cães e 10.000 gatos foram mortos.

Se a China recentemente “reclassificou” os cães como animais “de estimação” (e os gatos?), por que estaria acontecendo nestes dias (de 21 a 30 de junho) uma nova edição do festival anual de Yulin na província chinesa de Guangxi?

Por que só os cães passariam a ser “legalmente estimados” (?), sendo que os gatos também são vítimas desse festival? E fora desse festival, cães e gatos continuarão a serem assassinados para consumo humano com essa suposta medida regulatória?

Estas são algumas perguntas contraditórias que podemos fazer e talvez sem respostas, ou pelo menos, sem respostas convincentes.

E, ainda, qual a lógica ou com que direito seres humanos indicam ou estabelecem, legalmente, classes ou categorias “úteis” para outros seres vivos que também possuem interesses próprios inerentes à sua condição de ser vivo? Interesse à vida, interesse à liberdade, interesse em dispor de sua própria vida livre de sofrimentos, de medo, de dor, interesse em ter sua integridade física e psíquica respeitada por serem sencientes, conscientes de si e do mundo à sua volta, interesse em construir laços de amizade e buscar parceiros, enfim, interesses que se materializam em direitos.

Somos animais ditos racionais e assim podemos perceber que temos muitos interesses fundamentais em comum com os animais “irracionais” que subjugamos. No topo de nossa arrogância, achamo-nos as únicas criaturas merecedoras da vida, da liberdade e da dignidade e então passamos a usar esses outros seres incríveis e companheiros como melhor nos convêm, para propósitos menores que podem facilmente serem alcançados sem a exploração de vidas alheias.

Transformamos vidas sencientes e conscientes em objetos, produtos e mercadorias: esses animais nos servem para entretenimento, aqueles nos servem para transporte, esses aqui nos servem para esporte, esses outros para testes de itens produzidos, parte daqueles para meus sapatos e roupas, esses outros para consumo… Mas achamo-nos benevolentes e então elegemos uma ou duas espécies para uma certa consideração, desde que possam nos preencher de algum modo, então “classificamos” alguns animais para nossa estima. Alguns ocidentais estimam cães, alguns orientais consomem cães. Algumas vidas nós estimamos, outras nos odiamos; ou não chegamos a esse extremo porque inúmeras vezes até dizemos que amamos quando essas vidas já foram reduzidas a assados, cozidos em nossos pratos.

Que psicopatia é essa que toma conta da nossa humanidade? Segundo o dicionário Houaiss, uma acepção para psicopatia é a seguinte: incapacidade para amar e se relacionar com outras pessoas com laços afetivos profundos, egocentrismo extremo e incapacidade de aprender com a experiência.

Embora nem sempre de forma consciente, repetimos padrões culturais herdados sem questionamentos e assim nos comportamos com outras vidas que também possuem valor para elas mesmas, aquelas vidas mais vulneráveis e indefesas, o que diz muito sobre essa nossa espécie que se autointitulou de homo sapiens, do latim “homem sábio” que tantas vezes privilegia o egocentrismo em prejuízo da capacidade de amar.

DIREITOS ANIMAIS E DIREITOS HUMANOS

Mesmo após essa suposta nova reclassificação dos cães na China, além do mais completo absurdo e descabimento desse tipo de definição e previsão em uma lei ou norma jurídica, o festival de Yulin está ocorrendo novamente nestes dias enquanto escrevo. Que sentido tem isso? Seria uma nova tentativa de ludibriar os incautos?

De modo geral, quando o assunto é legislação, há sempre diversos interesses envolvidos, seja na China, no Brasil ou em outro país (e imagine só quando há animais não humanos envolvidos em um país como a China, também violador de direitos humanos). Muitos desconhecem o quanto pode haver de semelhanças nessas composições políticas ou falsas transformações da realidade para aqueles que mais precisam. De certa forma isso me lembra o projeto de lei federal brasileiro apelidado de “animal não é coisa”, o típico PL que “parece mas não é”.

Saiba mais: CARTA ABERTA, por Vanice Cestari

Apesar de certas similitudes entre países de economia capitalista, sobretudo quando falamos em tentar garantir, legalmente, os direitos dos animais, todo ativista animalista ou vegano(a) que deseja entender melhor dada situação, a exemplo dessas notícias desconexas do festival de Yulin, deve procurar entendê-las a partir de um contexto mais amplo dos acontecimentos. É que a China é um país bem diferente do Brasil no que se refere às liberdades.

Na China não há liberdade de imprensa, daí a dificuldade de se confirmar se ações do governo são verídicas ou não. A imprensa é um órgão oficial do Estado, tudo comandado pelo autoritário Partido Comunista da China. Não há partido de oposição, não há imprensa independente como no Brasil, portanto, é difícil a apuração dos fatos. A liberdade de expressão do povo chinês é tolhida, ativistas são perseguidos, não há direito de protesto, há censura até mesmo de conteúdos digitais, ou seja, a população chinesa sequer tem acesso livre à internet.

Sendo a defesa dos direitos animais um movimento mais ou menos difícil de se levar adiante, a depender do país (e/ou estado, município) de atuação e a sua pouca compreensão política da perspectiva abolicionista entre os cidadãos locais, que também possuem seus interesses próprios e geralmente pouca propensão a enxergar os animais não humanos como sujeitos ou indivíduos igualmente portadores de interesses próprios fundamentais, como a vida e a liberdade, há uma maior dificuldade de adesão ou obtenção de apoio social, que pode impulsionar as transformações necessárias, sobretudo em um país controlador e autoritário como a China, onde o governo não hesita em prender ativistas pela simples tentativa de manifestação ou protesto.

Isso faz a gente pensar o quão fundamental é a garantia das liberdades humanas também como forma de avançar a garantia dos direitos animais. A inversão dessa premissa é igualmente verdadeira, já que a ideia preconcebida / preconceituosa de diferenças culturais, étnicas, de cor da pele, de gênero… e de espécie, tem sido usada como justificativa para os piores crimes da humanidade, isto é, quando formos capazes de garantir o direito à vida, à liberdade, à dignidade e integridade (os direitos animais fundamentais) daqueles aparentemente mais diferentes e distantes de nós (indivíduos ou pessoas não humanas), possivelmente estaremos mais inclinados à verdadeira inclusão de todos os humanos em nossa esfera de consideração moral porque teremos finalmente compreendido que já não faz mais sentido algum o estabelecimento de quaisquer barreiras discriminatórias entre nós, uma vez que partiremos de outro patamar de compreensão acerca daquilo que somos, vidas interdependentes umas das outras, tendo cada vida o seu valor nessa grande teia.

Ainda há o especismo de grande parte (senão da maioria daqueles que se aproximam pedindo o fim de um festival como o de Yulin, não porque se importam, de fato, com o trágico destino dos animais, mas porque se trata do massacre do “seu” estimado animal, ou ainda, por pura xenofobia), que não se importa com a matança de qualquer animal para consumo (e portanto, resiste à abolição animal), desde que a violência permaneça escondida atrás de muros onde os olhos não podem alcançar, seja no festival de Yulin ou fora dele.

Quando não encontramos compaixão pelos indivíduos não humanos ou pela parte do povo chinês que mata e consome cães, pelas pessoas humanas e todos aqueles povos que ainda sofrem diversas formas de opressão, que tem seus direitos humanos vilipendiados (note-se: o consumo de animais não deve ser considerado um direito humano) podemos afirmar que somos tomados por uma incapacidade de amar os nossos semelhantes. Uma psicopatia?

REGULAÇÃO DO QUÊ?

A suposta proibição da matança e comércio de cães para consumo humano teria ocorrido em 2017 e, notem, apenas uma semana antes do início do festival de carne de cachorro, por iniciativa de Mo Gong Ming, secretário do partido (comunista) de Yulin.

Segundo investigação da National Geographic, esse anúncio teria se dado pelo fato dos holofotes estarem voltados para Yulin (à espera do famoso evento) e assim manchando a reputação internacional do país, expondo as problemáticas condições sanitárias e uma extrema crueldade contra os cães (não há menção de igual proibição para os gatos que também são vítimas da mesma crueldade).

Em primeiro lugar, precisamos entender que há, supostamente, duas situações distintas: a suposta proibição do festival de Yulin em 2017 e a suposta reclassificação de meses atrás sobre a “natureza jurídica” dos cães na China.

Tentando juntar as peças das informações contraditórias sobre a suposta lei de 2017 da China (a que teria colocado fim no festival de Yulin – e sabemos que não colocou – talvez porque inexiste essa lei), e sobre a suposta regulação da “nova serventia de cães” neste ano de 2020, o que vem sendo divulgado e o que é reproduzido entre ativistas, essa confusão começa a fazer mais sentido.

Em uma reportagem da Vice de 2013, uma ativista chinesa em defesa dos animais informa que o festival de carne de cachorro acontece em meio à ilegalidade.

Se o festival de Yulin já transcorre na ilegalidade há anos, significa que não há permissão para acontecer, não havendo necessidade de nenhuma outra medida governamental proibitiva para se encerrar definitivamente o massacre de cães e gatos nesse evento, a não ser fiscalização das autoridades e aplicação das medidas legais cabíveis aos infratores.

Portanto, se essas informações procedem, o anúncio da suposta proibição do festival de Yulin pelo governo chinês em 2017 não passou de uma grande farsa. Usando essas mesmas fontes de informação e contextualizando a defesa política dos direitos animais na China, bem como a repercussão negativa em países ocidentais sobre o consumo de carne de cachorro e, mais recentemente, a preocupação oriunda da pandemia que tomou conta da humanidade, é muito provável que essa nova regulamentação anunciada recentemente também não passa de mais um ardil, um expediente para enganar os críticos do festival de carne de cachorro. Ou pior, talvez a regulamentação tenha vindo exatamente para não se abolir o consumo da carne dos cães.

Fazendo aqui um juízo meramente especulativo, o que pode ter ocorrido agora em 2020 é uma determinação de que os cães que possuem tutores (aqueles que, via de regra, são estimados) não possam mais ser consumidos, ou seja, não se descarta a hipótese de ter havido um tipo de regulamentação para a continuidade do consumo de cães e/ou legalização do festival de Yulin, esperando assim que os ânimos se acalmem, já que muitos não se opõem ao assassinato desses animais para consumo, especialmente na China, mas sim o modo como é feito, com toda violência exposta e totalmente à margem da lei.

Em certo ponto deste vídeo da Vice, um senhor afirma que acha desnecessário comer “cães de estimação” ou pet, sendo favorável à regulamentação do uso de “cães comuns” para comida (criados com esse propósito, abandonados etc), não vendo nada de extraordinário nisso. Sempre esperamos que não, mas essa ideia pode facilmente se transformar em um consenso no festival de Yulin, já que em outras regiões da China também se consomem esses animais conforme as tradições locais. O que é ilegal se tornaria legal desde que devidamente regulamentado. E aqui sem dúvida pesa a questão cultural prevalente: outros povos consomem outros animais e contra este fato incontestável, nada há a ser feito, senão o que veganos já vem fazendo.

Fato é que, para as sociedades especistas, toda essa exposição em si (e não a realidade propriamente dita) não pega bem, o incômodo é grande porque ainda não somos capazes de nos responsabilizar por nossos atos. Agora também há maior pressão pelas questões sanitárias (especialmente depois da Covid-19), é comercializado um grande número de animais mortos, dentre os quais há relatos de cães doentes, idosos e não se sabe a procedência dos animais, não existe nenhum controle, ou seja, o festival de Yulin é um mercado tipicamente “clandestino”. Por isso, toda essa situação lamentavelmente pode ser explorada por aqueles que desejam a regulamentação do comércio e não a sua imediata proibição, a exemplo de grupos que atuam na defesa do chamado bem-estar animal. Alguém duvida?

PORQUE SÓ CÃES E/OU GATOS MERECEM LIBERDADE?

Nas reportagens sobre o festival de Yulin, na imprensa brasileira que, a cada ano, repercute o assunto e, sobretudo, nas supostas medidas governamentais chinesas, não vemos notícias sobre os gatos, embora ativistas locais relatam que milhares deles também são capturados e assassinados nas mesmas condições para consumo. E desde quando a liberdade de um animal e/ou espécie passou a ser importante para organizações bem-estaristas? Aqueles a quem estimamos, nos inclinamos para ajudar. Aqueles que não estimamos, não concedemos direitos. Se essa mesma lógica fosse transposta para humanos, o que seria da nossa sociedade?

Como se pode problematizar quase tudo nessa vida, eu não deixo de observar a presença de uma organização bem-estarista nessa conversa entre suposta proibição e/ou regulação do consumo de cães na China, a Humane Society International.

Fazendo uma pequena observação para quem não é animalista / vegano e não está familiarizado com os termos abolicionismo e bem-estarismo mas é minimamente politizado, basta dar uma olhada nesta recente notícia ou nesta outra mais antiga para entender o motivo pelo qual abolicionistas veganos se insurgem e denunciam essa aproximação de supostos defensores de animais com certas instituições do sistema exploratório, bem como o engodo desse discurso “vegano estratégico” que descaradamente beneficia o agronegócio no mundo inteiro (já que as organizações bem-estaristas, não à toa, estão estabelecidas em diversos países) e assim vão eternizando a perversa escravização dos animais (daqueles “classificados” como animais “de produção”) por esses grandes conglomerados industriais, travestida de respeito e defesa de direitos! Direitos para quem? Para os bilionários e respectivos consumidores das dores dos outros. Aqueles outros não estimados.

Como as vítimas são cães (e gatos), nesse caso teria alguma organização bem-estarista decidido colaborar com a libertação desses animais? Participariam ou não de uma possível medida regulatória para o comércio de “carne de cachorro sustentável”?

Enquanto ONG´s bem-estaristas trabalham para regulamentar (e assim perpetuar) a matança de forma pragmática e bastante estratégica dos animais “de produção”, inclusive para os pobres bilionários que, claro, precisam de uma forcinha extra “vegana” para seus matadouros se tornarem “sustentáveis”… passaram-se três anos dos rumores sobre a suposta lei proibitiva do comércio da carne de cachorros em Yulin (2017), sem que o tal festival tivesse deixado de acontecer (assim como a sistemática matança de cães, gatos e tantas outras espécies de animais fora dele, mundo afora), a despeito da mobilização de ativistas na China e em diversas outras nações. E, note-se, também não terminou os protestos de “rebeldes sem causa” que seguem comendo animais de outras espécies…

Saiba mais: PORQUE AS PRINCIPAIS “ONG’S VEGANAS” E OS “PRINCIPAIS” ATIVISTAS “VEGANOS” ESTÃO TODOS ERRADOS?, por Fabio Montarroios

Também chama atenção a declaração da Humane Society Internacional, segundo o portal de notícias Terra, que vê as declarações do Ministério da Agricultura chinês como “um potencial divisor de águas no bem-estar animal” devido às tais novas diretrizes regulatórias (será que algum ativista foi atrás – ou pode ir atrás – para tentar saber do que realmente se trata?). É claro que também não se pode descartar a hipótese de uma declaração dessas ser fruto de uma eventual perseguição política, o que não parece ser o caso da bem-estarista HSI, ainda mais pelo fato do movimento em defesa dos direitos animais ser politicamente inexpressivo na China, tal qual no Brasil e em outros países.

Será que as tais diretrizes, se existentes, preveem alguma regulamentação para que o festival de Yulin seja legalizado, transformado em comércio devidamente reestruturado, “limpo” e “humanitário”, tirando a imagem negativa e os holofotes da imprensa estrangeira?

Fazendo um paralelo, é como se alguma dessas ONG´s bem-estaristas no Brasil elogiasse uma política do governo Bolsonaro em suposta defesa dos direitos animais que, como todos sabem, não só é absolutamente improvável como suas decisões são exatamente o oposto da defesa animal!

Nesse mesmo sentido, o fim do festival de Yulin não parece estar no radar de preocupação do governo chinês (tampouco a suposta extensão de uma proibição do consumo de cães em outras regiões da China, onde realmente há essa tradição, conforme divulgado).

Uma vez cientes do contexto político da China (onde sequer há partido de oposição), entendemos porque é óbvio que o governo local de Yulin também nada faz para impedir esse (ilegal?) festival.

Voltando à primeira pergunta deste artigo, a notícia sobre uma eventual “reclassificação legal” dos cães “de consumo” para cães “de estimação” pela China (tal qual a tentativa de “atribuição de senciência” para uns animais e outros não, no surreal PL “animal não é coisa” em trâmite aqui no Brasil) infelizmente não é uma premissa válida para a proibição do festival de Yulin onde se mata, se comercializa e se consome cães (e gatos) e nem para se pôr fim ao consumo de cães em outras cidades, pois de uma situação não decorre a outra. Ativistas precisam lutar com esperança mas sem perder a noção da realidade, ou no mínimo, buscar conhecê-la sempre que possível.

Portanto, a citada “reclassificação” chinesa para os cães, de animais “de consumo” para animais “de estimação”, não se deu para garantia de direitos, nem como sinal de uma atitude compassiva ou evolução social, mas talvez como um meio da China seguir ludibriando aqueles que se opõem ao festival de Yulin, ao mesmo tempo que apresenta respostas devido às pressões internacionais por conta da pandemia da Covid-19, sendo comum o hábito de tomarem medidas emergenciais “para inglês ver” e logo depois que as cobranças se assentarem, voltarem atrás. Assim foi com o mercado de animais silvestres em 2003, o que já citei aqui neste outro artigo.

O ativismo animalista requer engajamento constante e aquisição de conhecimento fora da “bolha vegana” para a construção de ações articuladas e estratégicas (para beneficiar as pessoas não humanas e não o mercado, evidentemente), que pode ser obtido com pesquisas, estudos e diversas maneiras.

Por isso, considerando ainda a torrente miséria e o massacre avassalador de todos os animais que não nasceram humanos, acredito que uma das melhores contribuições que podemos oferecer no ativismo (para quem vai além da prática do veganismo) é não se afastar da lucidez e da prudência, amigas inseparáveis de uma luta mais potente que é, antes de tudo, questionadora, que, preferencialmente, se adianta aos acontecimentos previsíveis e não que apenas corre atrás deles para tentar minimizar seus funestos impactos, que tenta evitar o trágico destino dos animais não humanos. E isto eu coloco de uma maneira geral porque penso serem dicas úteis a se considerar, não me referindo a alguma situação em específico, tampouco ao festival de Yulin, já que muitos poucos compreendem as questões político-jurídicas nacionais, que dirá as estrangeiras.

REBELDES SEM CAUSA

Só aqui no Brasil, todos os dias e em diversos festivais também são servidos retalhos de animais mortos assados, em todos os cantos do país. Em 2018 tentou-se aprovar, no Estado de São Paulo, um projeto de lei que instituía a já famosa campanha “segunda sem carne”, tendo sido vetado pelo então governador Geraldo Alckmin. A simples propositura desse PL (Projeto de Lei) foi um escândalo! Pretendia-se que o Estado finalmente garantisse às pessoas (em restaurantes e refeitórios públicos, apenas) acesso a uma alimentação realmente saudável e de qualidade em um único dia da semana e apenas em locais públicos, ao mesmo tempo que se colaboraria com a redução dos impactos ambientais. Oh! Que perigo! Teve comentarista falando na imprensa que as pessoas seriam impedidas de comprar carne no açougue às segundas-feiras… um show de horror. Isso pode abrir um “precedente perigoso”, ou algo do tipo, deixou escapar Geraldo Alckmin em uma de suas declarações.

Nos festivais brasileiros, vendem e incentivam ainda mais o consumo desses animais (e de doenças, evidentemente), inclusive em espaços públicos, a exemplo do anual “festival do bacon” em São Paulo, com a diferença de que no território brasileiro o assassinato igualmente bárbaro de animais para consumo, até onde se sabe, não tem plateia, não é praticado na presença do consumidor, que terceiriza o ato de matar e assim se vê inocente, achando que não pratica nenhum mal. O mal está sempre no outro, no estrangeiro. Pura ilusão.

Festivais sanguinários e macabros com uso e morte de animais acontecem em todos os países, inúmeras cidades, mas a alienação especista é tamanha que parece só existir o festival de Yulin no mundo feliz e perfeito dessa gente que só enxerga a malfeitoria dos outros.

Repúdio, denúncia e combate à violência especista, ao consumo de animais dentro e fora de festivais mundo afora é o que fazemos diuturnamente, sem compactuar com ataques xenofóbicos que partem especialmente daqueles que só nutrem alguma simpatia ou estima por cães, dos especistas eletivos, aqueles que elegem uma única espécie animal para estima.

Xenofobia e especismo eletivo andam juntos e formam o xenoespecismo. (…). Os outros povos são vituperiados e até mesmo amaldiçoados por fazerem isso ou aquilo aos cães, os únicos animais pelos quais muita gente, aqui no Ocidente, sente algum afeto, porque pelos outros animais, vacas, ovelhas, porcas e galinhas, o único afeto ou impulso que essa gente sente é o da gula. (…). A glutonia do estrangeiro é abominável. A própria, louvável. Usam os animais como arma para atacar outros povos. Xenoespecismo. Como se dois erros fizessem um acerto. [Sônia T. Felipe, em Acertos Abolicionistas: A Vez dos Animais].

Quem nunca ouviu falar das temporadas anuais de caça às baleias, dos golfinhos encurralados e cruelmente assassinados à facadas no Japão? Das focas brutalmente massacradas com porretes, martelo e foice no Canadá, Groenlândia, Noruega, Rússia? Aqui certamente estou cometendo a falha de não lembrar ou desconhecer outros festivais de horror existentes onde abusam e massacram as pessoas não humanas. E o que dizer das inúmeras festividades religiosas regadas à crueldade contra touros, bois, cavalos e tantas outras espécies? Aliás, todas as religiões, nesse particular, são um reduto de muito amor ao próximo, não é mesmo? “Tudo que vive é teu próximo” (Gandhi), “amar ao próximo como a ti mesmo”… parece que muitos não entenderam quem são os nossos próximos na amplitude do termo.

E o festival anual da matança de cobras no Texas? Esse entretenimento bárbaro que acaba em refeição poucos conhecem porque não há a mesma indignação furiosa, não gera repercussão a depender da nossa “particular classificação” do indivíduo não humano subjugado. O massacre das cobras não provoca terror nem compaixão, pouca gente se opõe e se escandaliza, mesmo sendo realizado na presença de crianças e com participação de adolescentes.

Diz-se que comer cachorro, de fato, é uma tradição chinesa (o que estarrece aqueles que comem porcos, frangos, vacas, carneiros e toda sorte de ser senciente), porém, segundo relatos de ativistas locais, a maioria do povo chinês não consome cães, não fazendo parte da tradição chinesa o festival de Yulin, criado a partir de 2010 para promover esse consumo e que, conforme apurado pela National Geographic, é organizado por cidadãos e empresas particulares, não sendo desejado pela maioria dos chineses, ao contrário do que “rebeldes sem causa” propagam por aí.

Há relatos de que na China a oposição ao consumo de carne de cachorro vem crescendo particularmente entre os jovens, o que é um ótimo sinal, possivelmente resultado do ativismo em defesa dos direitos animais que também é presente no país, lembrando que o acesso à informação não chega para os chineses do mesmo modo que chega para nós aqui no Brasil.

Como em qualquer país, alguns respeitam os direitos fundamentais alheios e reconhecem os animais como sujeitos portadores de interesses próprios, ao passo que a vasta maioria (ainda) não. Até hoje muita gente ainda se opõe aos direitos humanos e não precisamos ir longe para essa constatação!

Ativistas locais contrários ao festival de Yulin alegam que muitos desses animais foram abandonados nas ruas e outros tantos cães parecem ser roubados (na verdade, furtados) de casas e fazendas, vindo a ser enjaulados dentro de caminhões para serem transportados e posteriormente executados nas regiões onde o seu consumo é mais popular.

Não é “só” o suposto furto (sequestro?) de cães e gatos que possuem tutores, o seu transporte em gaiolas exíguas e a brutalidade do modus operandi que ceifa a vida dos animais que deveria nos incomodar, o que sem dúvida são adicionais de crueldade, mas deveríamos nos incomodar pela matança mundial sistemática de animais para comilança humana para além de um específico festival anual na China, pela redução de seres vivos sencientes, dóceis, inteligentes à retalhos consumíveis, pois não há mais tempo de tergiversar sobre a libertação dos animais de toda exploração humana.

A humanidade precisa aprender com os seus erros no que diz respeito à nossa relação com os indivíduos de outras espécies. A situação ambiental e sanitária em que agora nos encontramos é um sinal evidente dessa urgência de novos modos de viver.

Veganos, ativistas animalistas que lutam pela libertação de todos os animais (e não só de cães!) desse consumo insano e abjeta violência no Brasil, na China, nos Estados Unidos e no mundo todo são coerentes em seu discurso ético e por isso não aceitam (não aceitamos) de bom grado a forma como é feita essa oposição pela grande maioria das pessoas ao festival de Yulin. Além dos festivais horrendos que exemplifiquei há pouco, a pesca e preparativos de consumo de peixes e crustáceos, por exemplo, é regada da mesma covardia. Pense na lagosta! Quantos desses furiosos críticos estão dispostos a parar de matar seres vivos igualmente portadores de interesses próprios, sencientes e conscientes?

E os porcos!? Paradoxalmente considerados até mais inteligentes do que os cães e crianças humanas jovens, são vorazmente consumidos com o nome de bacon, bisteca, salame, presunto, linguiça, paleta, costela, lombo, pernil, tender, torresmo e os ditos pertences (!), orelha, rabo, focinho, joelho de porco… Eles são atirados em tanques de água nos matadouros industriais para serem escaldados, fervidos vivos, até o esvair de suas brutalizadas vidas, dentre outras etapas brutais que superam de longe o pior filme de terror. A mesma barbárie pode ser dita com relação às vacas, bezerros, ovelhas, galinhas, búfalas, cavalos, pintinhos e tantos outros indivíduos não humanos que são degolados, esfaqueados, picotados, desmembrados, triturados vivos, executados “humanitariamente” ou não… O que é humanitário? Matar quem tem desejo de viver? Assassinar com um tiro certeiro quem implora pela sua vida?

Em um primeiro momento, podemos olhar as cenas de violência explícita de um festival de carne de cachorro e ficarmos chocados, perplexos com tamanha “maldade” daqueles comerciantes e consumidores. Por outro lado, apesar da evidente brutalidade com aqueles cães (e gatos), podemos interromper nosso pensamento julgador por alguns segundos para tentar entender o ponto de vista daquelas pessoas e então, veremos que cães e gatos representam para elas o que bois, vacas, porcos, galinhas, aves, cavalos e tantos outros animais representam para brasileiros, americanos, ingleses, suíços, franceses e outros povos que consomem outros animais não humanos. Comida. Nada além de comida. Animais “de consumo”, não “de estimação”. Culturas diferentes, a mesma crueldade, a mesma barbárie, a mesma injustiça. Será que Paul McCartney tem razão?

O vídeo da Vox (com legendas em português), de março de 2020, trata do consumo de animais silvestres na China e sua relação com o espalhamento de vírus de um ponto de vista histórico, inclusive.