O respeito ao próximo, que pode ser lido “a tudo o que vive” é uma das bases da proteção dos animais no sistema jurídico que, no caso brasileiro, encontra amparo na vigente Constituição da República, a lei de maior importância hierárquica no país. E assim foi previsto que todos os animais, sem qualquer distinção, são sujeitos da proteção do Estado, individualmente considerados mediante a expressa proibição da prática de crueldade no texto constitucional.
Isto significa que todo o ordenamento jurídico existente no país deve se submeter a esse mandamento, o que nem sempre é observado pelo Executivo que incentiva o agronegócio e pelo Legislativo quando elabora projetos de leis ou leis que já nascem em desconformidade com o texto da Constituição Cidadã, a qual inclui o respeito à vida animal. Na causa animal, um exemplo dessa desconformidade é a redação aprovada do PL 6054/19 (conhecido como “animal não é coisa”) o qual já abordamos aqui no Saber Animal de forma detalhada e ora recordamos por uma questão atual de ordem prática, como veremos mais abaixo.
Quem milita na prática diária pela justiça para os animais no seu sentido mais abrangente (proteção animal através da abstenção do consumo de animais e produtos derivados, abstenção do financiamento de atividades de exploração animal ou resgate / acolhimento de animais das mais diferentes espécies cujo sofrimento é ignorado, desconhecido, pela sociedade) bem sabe que os animais não humanos escravizados pelos diferentes setores sociais e econômicos sofrem diuturnamente (não seria a escravidão / domínio ou violência que subjuga um ser vivo dotado de sistema nervoso – uns mais complexos, outros menos complexos – a própria evidência da crueldade?). Ainda que não haja necessariamente a intenção de praticar a crueldade porque o objetivo certamente não é o de ser cruel ou maltratar; fere-se, maltrata-se, violenta-se, mata-se, pois nessa velha concepção de mundo antropocêntrica, os animais são simples objetos ou mercadorias, recursos ambientais, eles são instrumentos ou meios de atingirmos determinados fins lucrativos, sociais, econômicos, científicos etc.
Nesse sistema cruel e injusto onde a vida ou o sofrimento de alguns parece não ter importância ou valia, os fins acabam justificando os meios, a instrumentalização vira a norma, a normalidade social. Somos nós, enquanto indivíduos “inconscientes” e sociedade (conjunto de indivíduos) que tratamos os animais como coisas e não a lei. (Também tratamos alguns humanos como coisas, basta um olhar mais atento para o social e uma sincera avaliação interna). A lei é uma consequência enquanto instrumento das classes sociais dominantes. E quando cito “classe dominante” não estou reafirmando aquela clássica separação entre burguesia e proletariado. Me refiro a classe dominante no sentido de um grupo de pessoas que detêm algum poder sobre as outras, seres humanos que se agrupam em uma posição verticalizada, hierárquica, na intenção de dirigir a vida de outras pessoas.
Ainda que o sistema de governo fosse socialista ou ecossocialista e não capitalista, por exemplo, não teríamos garantia de respeito aos animais (nem aos seres humanos em toda a sua diversidade) porque a ética ou a transformação do que não é ético sempre competirá aos indivíduos que se comprometem a tanto na sua própria vida e, uma vez mais conscientes, o quanto somos capazes de realizar junto com outras pessoas pelo bem coletivo, o que é bem diferente de querer controlar e manipular os outros para impor aquilo que julgamos bom ou correto, especialmente quando ocupamos posições de poder. Não existe bem individual verdadeiro que possa agredir outro ser porque estamos conectados a tudo o que existe, a todas as formas de vida, logo, fazer mal ao outro é fazer mal a nós mesmos.
Bem, voltando para a nossa sociedade atual, capitalista e pecuarista… Enquanto legislações sem eficácia protetiva (ou com eficácia desprotetiva) e respectivas assessorias jurídicas reforçarem esse sistema injusto e cruel, a tendência é tudo permanecer na mesma, ou seja, sabemos que esse mundo de exploração animal existe em pequena, média e grande escala, paralelamente à existência de alguma conquista ou direito no plano jurídico para os animais, mas como não vemos essa violência escancarada porque ela está constantemente sendo normalizada (seja através de leis especistas, seja através do discurso punitivo que aqui cumpre bem o seu papel de desviar o foco das questões centrais) é como se essa violência não existisse.
Diferentemente da repercussão nacional daquele caso da cadela Manchinha (que ocasionou mais uma alteração inconstitucional e discriminatória na legislação federal), centenas de búfalas escravizadas para produção de leite (muçarela de búfala?) e carne para fins gastronômicos que foram encontradas “descartadas” com vida em um canto numa fazenda do interior de São Paulo, já não causam grande indignação, mesmo o assunto sendo igualmente veiculado na grande mídia, porque essa tragédia é socialmente normalizada e assim acaba restrita aos interesses de ativistas e habitantes locais que presenciam e sentem os impactos dessa barbárie chamada pecuária. É como se todas aquelas cenas com potencial de nos chocar quando nos conectamos com o sentimento de amor e compaixão, não causasse a mesma impressão para a maioria adormecida e comandada pelo prazer gastronômico ou lucrativo.
Portanto, se não gostamos de ver búfalos e animais sofrendo horrores, é emergencial que façamos a nossa parte. E qual é a nossa parte? Certamente a consciência de cada um pode dizer (o que acaba levando muita gente ao veganismo). Já as pessoas públicas podem e devem fazer bem mais do que postagens de ódio nas redes sociais, pois abandonar animais para uma morte cruel, lenta e dolorosa parece ser comum quando a atividade exploratória deixa de ser lucrativa para o fazendeiro.
Em outra reportagem sobre esse caso dos búfalos (há notícia de que foram encontradas 335 fêmeas e 332 filhotes – 667 vivos – e mais 22 animais mortos em uma vala), o site que só trata de questões do agronegócio informa ainda que “não é o primeiro caso noticiado esse ano, com a seca prolongada e alta dos insumos, alguns pecuaristas preferiram deixar os animais do rebanho morrendo de fome do que comercializar eles ou buscar ajuda para manutenção do rebanho.“
Interessante observar que comoção pública não é, nem de longe, garantia de proteção animal porque, quando acontece, acaba caindo naquele populismo de sempre onde a única solução encontrada pelas mentes pequenas é a mesma: cadeia, pena de prisão para quem maltrata animais. Essa comoção pública casa perfeitamente com as iniciativas preguiçosas, falaciosas e marqueteiras da grande maioria dos políticos brasileiros.
Nesses casos, a real comoção pública deveria acontecer apenas como um bom motivo para transformação individual no sentido de não sermos uma pessoa a mais causando o mal para os animais e para o meio ambiente (natureza), bem como uma forma de obtermos mais consciência sobre o nosso poder de escolha enquanto consumidores, eleitores, cidadãos, enfim, nos diversos papéis que exercemos na vida, para que talvez possamos contribuir naquilo que modestamente nos compete para que emerja aos nossos olhos um mundo melhor onde todos os seres tenham a chance de existir neste planeta e de serem felizes.
Na sociedade que vivemos, penso que o Estado ou poder público, em especial os servidores que dispõem de maior poder decisório e força política, com mandato parlamentar ou não, integrantes de quaisquer dos três poderes constituídos (legislativo, executivo e judiciário) são os maiores responsáveis, não pela condição dos animais até aqui, porque essa grande responsabilidade é de todos nós, mas porque com vontade e propósito verdadeiro podemos transformar qualquer realidade a nível estrutural. A começar pelo respeito à dignidade humana. Só podemos respeitar o outro, o próximo, quando respeitamos verdadeiramente a nós mesmos.
Não entendo por justo o discurso ativista de culpabilizar pessoas que consomem os animais e “produtos” derivados pela completa miséria dos animais como a dessas búfalas, por exemplo. É claro que quem se alimenta de carne, leite, ovos e derivados é também bastante responsável por situações como esta e outras crueldades semelhantes porque colabora ativamente na manutenção desse sistema, mas o público consumidor não é o único.
Por uma questão de justiça, precisamos considerar que essa consciência compassiva não está ainda desperta para a maioria das pessoas. Tenho refletido que, quando esse discurso prevalece, acabamos retirando a responsabilidade do Estado e da sociedade ou sistema como um todo (empresários, cientistas / comunidade acadêmica e políticos – as tais classes dominantes que trabalham incansavelmente para manter essa escravidão), pois estes lidam com os animais como se fossem números, mercadorias ou commodities, então a responsabilidade é de todos e não somente ou exclusivamente de quem consome. Transferir a responsabilidade apenas para o consumidor é cometer injustiça.
Tudo o que queremos mudar no mundo precisamos ter a coragem de mudar dentro de nós mesmos. Então se não queremos um mundo opressor (aí fora) precisamos fazer as pazes com nosso opressor interno que pode ser um aspecto da nossa personalidade que talvez sequer tenhamos percebido.
Sofremos com as cenas de animais sendo comidos vivos por moscas e urubus, definhando até a morte? Sofremos por sabermos que não é caso isolado e que coisas tão horrendas quanto essa acontecem no país e mundo afora com os animais? Então cobremos também atitudes e providências dos representantes eleitos e das autoridades públicas brasileiras para que encontrem meios de dar aplicação ao texto constitucional que protege a vida dos animais e proíbe a crueldade. Parar de apoiar políticos ou projetos de leis oportunistas que favoreçam o agronegócio pode ser um bom começo.
Quando decidirmos viver em um futuro com mais justiça, precisaremos no momento presente caminhar com criatividade e coragem que nos levará ao encontro de meios íntegros para transformarmos o que é preciso em nós (sermos menos egoístas, por exemplo) e consequentemente na sociedade. Não sejamos seduzidos pelo falso discurso político de que libertaremos os animais quando os seus algozes forem presos ou sofrerem violação de direitos, ou por outro lado, não vamos nos acomodar em nossa zona de conforto, desrespeitando a vida dos animais (e do planeta) consumindo tudo o que julgamos ter direito à espera de que políticos ou empresas cuidem de tudo.
Escrevo aqui sobre normas, normalização, legalidade… então podemos criar normas na nossa vida particular de maneira muito simples quando escolhemos não mais causar mal a ninguém. E nem a nós mesmos! Que o bem prevaleça e seja a nossa norma, o bem individual e coletivo. Que isto seja normalizado! Que tenhamos a coragem de fazer essa verdadeira revolução.
O DIREITO
Todos os animais são (ou deveriam ser), por força da Constituição, protegidos pelo Estado, mas como o Direito é, por natureza, uma criação humana e historicamente age na defesa primordial dos interesses socioeconômicos (segundo a normalidade vigente), os direitos dos mais vulneráveis pode ficar comprometido, especialmente quando o assunto é acionar mecanismos jurídicos visando proteger os animais e a natureza, já que colocamos “do outro lado” os interesses dos seres humanos, como se estivéssemos separados de tudo o que é vivo e nos interessássemos apenas pela economia, crescendo e crescendo, não sabemos bem para que e para aonde.
A lei civil que está abaixo da Constituição retratava e retrata os interesses humanos e suas relações jurídicas (incluindo o direito de propriedade que nesse sistema recai sobre os animais), enquanto que a legislação animalista protetiva (que no Brasil é secular, cuja base foi recebida pela Constituição) jamais tratou os animais como seres descartáveis ou destituídos de direitos, mesmo porque não faria sentido por uma questão de coerência lógica “proteger e desproteger” no mesmo ato.
No início do texto citei o projeto de lei n. 6054/19 porque neste caso dos búfalos “descartados” para morrerem de inanição em fazenda no interior de SP é um caso que exemplifica bem a importância de conhecermos o básico da legislação vigente, se desejarmos defender direitos para os animais, antes de apoiarmos indiscriminadamente qualquer proposta que aparentemente possa melhorar a vida dos animais (tentar resguardar os direitos de pets, assim considerados cães e gatos domésticos ou de estimação, criando-se mais uma separação, definitivamente não é legislar sobre direitos animais).
Se no nosso sistema jurídico é possível adotar qualquer medida judicial para socorrer os búfalos nesse episódio, por exemplo, concluímos dois fatos fundamentais: primeiramente, constata-se que realmente eles possuem o direito de não serem maltratados ou tratados com crueldade e por isso não são considerados objetos pela lei (por mais paradoxo que seja, já que são explorados na pecuária).
Outra evidência bem importante: além de serem sujeitos desse direito fundamental, possuem o amparo judicial quando violado o direito, o que apenas pode acontecer nesse caso dos búfalos porque a lei de crimes ambientais (9605/98) permanece inalterada nesse quesito, na medida em que o PL “animal não é coisa” retira essa possibilidade se for sancionado.
Saiba mais: CARTA POLÍTICA ANIMALISTA, por Vanice Cestari
Portanto, numa hipotética situação semelhante, a exclusão dos animais “de produção” da tutela jurisdicional como dispõe a proposta legislativa em questão que altera a lei vigente pode significar o total desamparo jurídico de búfalos e outros animais em similar situação que mais necessitam de visibilidade social e intervenção do sistema legal protetivo. Qualquer direito sem a garantia de acesso ao Judiciário é enfraquecido na medida em que perde-se mecanismos de garantia desse direito.
Nós que sempre pedimos consciência aos outros que sejamos então os primeiros a nos conscientizar sobre o que pode ser mais transformador para a vida dos animais, ao invés de gastarmos energia na defesa de direitos pets (onde geralmente também não há inovação protetiva para além do que já existe) nos iludindo com uma falaciosa transformação social.
Podemos considerar o que já existe de concreto nas possibilidades atuais, tais como muitas decisões judiciais favoráveis aos animais e especialmente a nossa legislação protetiva de base constitucional para que nossos representantes políticos saibam o que esperamos deles enquanto defensores dos direitos animais, traçando-se um caminho para que todos os animais comecem a ser tratados com igualdade e com menos discriminação especista.
Cobrar as autoridades públicas para que se empenhem em políticas de proteção a todos os animais conforme determina a Constituição pode ser mais eficaz do que esperar punição penal que não vai acontecer, ou eleger supostos veganos / vegetarianos, ou pior, apoiarmos medidas parlamentares equivocadas que colocam em risco o socorro ou mínimo auxílio às búfalas e seus filhotes, para exemplificar com este caso recente, onde dificilmente receberiam ajuda de ativistas e voluntários locais se não fosse mais possível buscar socorro no Judiciário, como (felizmente) ainda é permitido na legislação vigente.
Focar efetivamente nos direitos dos animais e também nas organizações sociais que seriamente se dispõem a prestar assistência a esses animais, as quais precisam de parcerias e incentivos (ao invés dos incentivos aos pecuaristas), e não nos agressores ou em promessas políticas arriscadas que pouco a pouco enfraquecem a Constituição e retiram direitos, pode ser realmente transformador.
Atualização sobre o caso das búfalas: em 02.12.21 o Ministério Público do estado de São Paulo noticiou a instauração de inquérito civil para apurar maus-tratos aos búfalos. Para mais informações, visite: https://bufalasdebrotas.com.br/.