🩺 A distopia dos xenotransplantes

Médicos da Universidade de Maryland transplantam coração de porco em um ser humano.

O último texto de Drauzio Varella para o jornal Folha de São Paulo, Transplantes entre animais e humanos deixaram de parecer ficção científica, é simplesmente abominável. Terminar de lê-lo não foi fácil…

E, sinceramente, não falo por mal, pois o livro Estação Carandiru, do célebre médico que relata seu trabalho voluntário no presídio com o mesmo nome da parada e que hoje não existe mais, foi muito importante na minha formação pessoal. Eu o li quando tinha por volta de 20 anos e até hoje me lembro de seus capítulos muito bem escritos. Como morador da Zona Norte de São Paulo, sempre passei de Metrô (daí o nome do livro), a caminho do Centro ou no retorno para casa, por aquele local com dezenas de pessoas penduradas nas janelas observando os vagões que passam enquanto o tempo de suas penas passavam lentamente e com muito sofrimento para elas. Era decepcionante ver naquele lugar a falência do Estado em lidar com nossos problemas sociais já tão bem conhecidos, encarcerando e matando gente (principalmente a população negra) que poderia ter outro destino. Não à toa, foi justamente por conta do massacre dos 111 presos do Carandiru, em 1992, que surgiu uma das maiores facções criminosas deste país, o Primeiro Comando da Capital (PCC). Pode ser que se tivéssemos, em especial as autoridades paulistanas, nos sensibilizados com as palavras de Varella desde o lançamento do livro, em 1999, as coisas poderiam ser bem diferentes no sistema prisional e na nossa sociedade.

Mas se o lado humanista do doutor nos impacta, sua insensibilidade para com os animais praticamente anula totalmente esse efeito. Pude ver isso na repercussão que ele dá em sua coluna, com entusiasmo, ao texto da revista científica Nature (Progress towards solving the donor organ shortage, por Douglas J. Anderson & Jayme E. Locke) sobre os avanços no uso de órgãos de animais em transplantes, os xenotransplantes, para pessoas, graças às novas técnicas genômicas e drogas específicas para esse tipo de procedimento médico. Vale acrescentar que essa mesma revista inglesa também coloca em seu ranking anual das dez pessoas que mais ajudaram a moldar as ciências em 2022 (mais um ano de negacionismo exacerbado no Brasil, diga-se), o cirurgião Muhammad Mohiuddin, por ter feito um xenotransplante de coração de porco em uma pessoa. E chamo a atenção para este nome, pois o cirurgião afirma em vídeo que usando animais “há menos questões éticas envolvidas” e esse é um ponto crucial. Ambos os médicos celebram que esses procedimentos ajudarão a diminuir a fila de espera por transplante de órgãos.

O cirurgião Muhammad Mohiuddin. Fonte: Nature

A manipulação genética dos animais (especialmente os porcos) é indispensável nesse processo. Daí entra em cena a técnica CRISPR/Cas (que rendeu o prêmio Nobel de Química, em 2020, a Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna), pois sem ela seria praticamente impossível seguir com esse procedimento, conforme indica Varella: “O surgimento da técnica Crispr-Cas9, nos anos 2010, tornou possível modificar genes com mais facilidade, não apenas o que codifica alfa-gal, mas os que codificam outras moléculas envolvidas no mecanismo de rejeição. Porcos transgênicos com múltiplas alterações genéticas estão sendo desenvolvidos em várias companhias de biotecnologia, nos Estados Unidos e na Europa. O animal que doou o coração para o primeiro transplante na Universidade de Maryland, por exemplo, foi submetido previamente a dez manipulações: quatro de seus genes foram modificados e seis genes humanos foram introduzidos em seu genoma para induzir tolerância imunológica, evitar inflamação e a coagulação do sangue no interior do coração transplantado.”

O resultado disso já nem é mais o porco que conhecemos, pois ele possui agora também informação genética humana em seu organismo! Algo similar já foi feito com a mistura de células humanas com a de macacos na China pelos cientistas Juan Carlos Izpizua e Ji Weizhi, com êxito, e “assustou” a comunidade científica. Alerta sobre os limites éticos de tais experimentos foi dado por algumas pessoas na Europa, mas parece que eles não importaram. Sem falar que, quando se diz “limite ético”, não se trata de questionar o uso dos animais em si, mas dos possíveis resultados quiméricos da união de células humanas com a dos animais (seja a de porcos ou macacos). Que tipo de resultado poderia se obter é o que preocupa a comunidade científica, pois não parece ser possível (ainda) controlar os rumos dessas combinações (essas células poderiam se tornar neurônios humanos em animal, por exemplo), então a possibilidade de um ser híbrido surgir e o desejo de sair da ficção científica seria alcançado com uma nova espécie sendo criada. Nesse caso, contudo, a desculpa para os experimentos de Juan Carlos Izpizua e Ji Weizhi, é a mesma: criar órgãos em porcos capazes de serem transplantadas em humanos e acabar com o problema da falta de órgãos para transplantes em pessoas.

Vale ressaltar que não se trata, de modo algum, de ir contra à saúde humana ou mesmo contra avanços científicos que não usam animais, porque o transplante de órgãos entre humanos é uma tarefa complexa, com muitos riscos e problemas inerentes a algo que não é natural, mais ainda assim é o único caminho ético possível para resolver um problema singularmente humano: o nosso desejo de viver, a nossa capacidade de viver mais e melhor e as nossas possibilidades de escolha. O último ponto é essencial: as pessoas podem escolher serem doadoras de órgãos no Brasil e isso faz com que uma pessoa que precise de um transplante tenha esperanças de poder continuar vivendo graças a ação voluntária de uma pessoa a qual ela desconhece totalmente quando não se trata de doação entre familiares. Quando uma pessoa morre, outra pode ter esperanças de continuar vivendo. Os animais, contudo, não podem fazer essa escolha… Dizer que eles são doadores, como dizem médicos e cientistas, nesse processo de apropriação de seus órgãos é desonestidade intelectual. Os animais não doam nada: eles são submetidos a diversos experimentos, vivem em condições controladas, são assassinados e têm seus órgãos removidos.

Porco geneticamente modificado permite que seu órgão, no caso da ilustração um rim, seja aceito pelo organismo humano em um xenotransplante[1]. Fonte: A CRISPR Way to Block PERVs — Engineering Organs for Transplantation, de Daniel R. Salomon, M.D.

O animal que doou o coração para o primeiro transplante na Universidade de Maryland, por exemplo, foi submetido previamente a dez manipulações: quatro de seus genes foram modificados e seis genes humanos foram introduzidos em seu genoma para induzir tolerância imunológica, evitar inflamação e a coagulação do sangue no interior do coração transplantado. [Drauzio Varella]

Fomentar essa situação vai, certamente, fazer a doação entre humanos, que vem de uma escolha de seus cidadãos e que não envolve nenhum tipo comércio entre paciente e doador (não no Brasil, pelo menos), perder o sentido. O uso de animais, por outro lado, resultará na compra de órgãos, seja pelas pessoas ou pelo governo, e certamente quem puder pagar mais terá o melhor tratamento e medicamentos. Aquela fila que não abria exceções às pessoas, independente do status social delas, ficará obsoleta. “Transplantes de células e órgãos de porcos transgênicos para seres humanos deixaram de parecer ficção científica”, arremata Varella. Mas ele se esquece de que isso nos levará direto a uma distopia em que transplantes de órgãos entre humanos poderá ser deixado de lado ante um novo mercado que irá se estabelecer: o de venda de órgão de animais híbridos.

E não só para quem está na fila de transplante esses órgãos de animais serão destinados, obviamente. Qualquer um, mesmo não precisando de um transplante por questão de vida ou morte, da mesma forma que faz cirurgias plásticas, poderá optar, de antemão, por trocar de órgão por achar que isso será melhor de algum modo, de que isso fará com que ela possa viver mais, desempenhar melhor em algum esporte, ou apenas ser mais um símbolo de status entre nós.

Outro aspecto medonho desse processo é que para contornar dilemas éticos e controles governamentais, xenotransplantes estão ocorrendo em pacientes com morte cerebral. Ou seja, esses pacientes, que não poderão mais viver uma vida consciente e que se encontram em estado vegetativo suportado por máquinas, servem de cobaias para ver o quanto esses órgãos são aceitos em corpos humanos. Pode ser que esses pacientes, com morte cerebral, tenham topado fazer parte desse tipo de experimento quando ainda tinham chance de escolher, mas não dá para cravar isso.

A única ressalva de Varella quanto ao procedimento se refere a quantidade de animais mortos: “A aprovação de xenotransplantes em seres humanos depende das agências reguladoras internacionais (FDA e Agência Europeia). Os obstáculos são a exigência de estudos com grandes números de animais. Não parece muito lógico, porque a resposta imunológica em outras espécies é diferente da nossa. Drogas que impeçam a rejeição num primata não humano podem não agir em humanos.” Ele parece se preocupar com o uso excessivo de animais, mas o uso de apenas um único ser nesses procedimentos já deveria ser inaceitável pela comunidade científica.

Ou seja, muitos animais precisarão morrer antes que tudo seja permitido e aprovado e, depois, milhões de outros animais se juntarão aos animais assassinados pela pecuária que os transformam em alimentos numa cadeia de exploração que apenas cresce e se diversifica. A ironia nisso tudo é que de tanto comer animais, uma pessoa pode precisar de um transplante de coração e receber o coração de um porco. Os porcos pagarão duas vezes por nossas (más) escolhas.

A fila de transplantes, conforme relato do UOL, cresceu 30% (são 50 mil pessoas esperando) no Brasil, especialmente por conta da pandemia e as restrições que ela provocou no sistema de saúde. A matéria deixa claro que a doação entre humanos precisa ser aperfeiçoada e ser melhor distribuída no nosso território. Então, por que não se investe nisso? Será que essas operações só dão prejuízo aos governos e empresas? Comprar órgãos e novos medicamentos é o melhor caminho? Para mim é evidente que o uso de animais não vai fazer as filas de espera por transplantes diminuir, ao contrário, elas aumentarão exponencialmente, pois tudo girará em torno de quem tiver capacidade de bancar por esses órgãos geneticamente modificados e os medicamentos necessários. E sabemos que a desigualdade social está longe de ser eliminada aqui e no mundo. Na verdade, a comunidade científica só fará esse fosso aumentar.

Nota

[1] “Porcine endogenous retroviruses (PERVs) can infect human cells and therefore represent a risk associated with xenotransplantation (Panel A). Yang et al.3 used the CRISPR (clustered regularly interspaced short palindromic repeats)–Cas9 method to target and inactivate the 62 active PERV sequences embedded in the pig genome and observed a dramatic reduction in the level of PERV production. In theory, this method could be used to engineer pigs that are genetically modified so as to suppress the production of PERVs (Panel B)”.