Em primeiro lugar carrego comigo a gratidão pelas mulheres que jamais se curvaram e que lutaram desde a violação de seus direitos inatos para que hoje eu, que também habito um corpo de mulher, possa exercê-los e então possa seguir adiante nesse movimento contínuo perante a sociedade e para todos os seres que necessitam de igual respeito e consideração através da parte que me cabe.
Felizmente temos ainda muitas oportunidades pela frente que podem nos levar à conscientização acerca de nossos deveres éticos e de nossa corresponsabilidade pela concretização do que se entende por justiça, a nível individual e coletivo. Que estejamos receptivos a isso. Dados históricos e empíricos também nos indicam que essa trajetória nunca foi fácil, mas de um jeito ou de outro, caminhamos, evoluímos. E caminhando vamos aprendendo, pelo amor ou pela dor, a caminhar com melhores escolhas. Se não acreditasse na transformação das pessoas e no despertar do ser humano para o essencial, não estaria aqui escrevendo. Muitas curas podem surgir quando passamos a usar da sinceridade conosco mesmos.
Se o homem é agente do caos, carregamos o mesmo potencial para sermos agentes de uma revolução nos modos de sentir e ver o mundo e “os outros”, o que significaria fazermos escolhas ordinárias que sejam mais condizentes com a paz para todes, onde eu e você estamos nessa conta, incluindo e integrando no círculo moral não só nós, humanos de diferentes gêneros, etnias, nacionalidades, orientações do modo de ser etc., mas também os animais e a natureza.
O sofrimento das vacas, das galinhas, das porcas, das cabras, das búfalas e tantas outras fêmeas do reino animal, cujo homo sapiens é mais uma espécie, também importa. As suas respectivas proles, também importam. Não para a economia como faz o homem (o masculino) na sociedade contemporânea, mas a vida importa por si só para aquela/e que a experencia.
Como sustentar os movimentos feministas quando estes também alimentam sistemas de exclusão e opressão, quando não contemplam a dor das outras fêmeas e de sua prole? Por que não questionam as consumidoras (e consumidores) acerca das vidas que haviam antes de serem transformadas em produtos, mercadorias, em maquinários reprodutivos, se essa exploração diz muito sobre a objetificação das mulheres e subjugação do feminino?
(…) a libertação da mulher não pode ser alcançada isoladamente, mas tão somente enquanto parte de uma luta mais vasta pela preservação da vida neste planeta. (Ecofeminismo, por Maria Mies e Vandana Shiva).
O tratamento dispensado às mulheres no que se refere ao controle de suas vidas e de seus corpos tem muito a dizer do tratamento que até hoje dispensamos aos animais. Ao desprezar o feminino que habita cada ser vivo, desprezamos a nós mesmos, independentemente do sexo biológico desse ser opressor, pois o feminino e o masculino tudo habita. Como entendiam as nossas sábias ancestrais, somos natureza e a violação a este princípio básico universal é conduta que caminha no sentido inverso da evolução humana, é conduta que cria e aprofunda a desigualdade, a nossa separação, a fragmentação do mundo, a inconsciência de que todos e cada um de nós somos integrantes de uma coletividade complexa, de um único sistema vivo que é, por natureza, interdependente.
Saiba mais: Mensagem para 2021, por Vanice Cestari.
No domínio da sociedade patriarcal, o discurso feminista do final do século XVIII em prol dos direitos das mulheres teve semelhante resistência que a reivindicação pela libertação dos animais encontra na sociedade atual. Essa defesa por direitos se inter-relaciona na medida de suas congruências, sendo a cultura patriarcal algoz de ambos, embora as mulheres também não estejam isentas de reproduzirem o sexismo e mais ainda o especismo, prática que vigora e ainda se perpetua entre a humanidade antropocentrizada.
A filósofa e escritora Mary Wollstonecraft, umas das precursoras do movimento feminista, certamente agradou e desagradou a sociedade de sua época com suas ideias “revolucionárias” de igualdade entre homens e mulheres. Relata Peter Singer, nas páginas iniciais de seu livro (Libertação Animal, 2010) que, pouco depois da publicação da obra feminista intitulada A Vindication of the Rights of Woman (Uma Defesa dos Direitos das Mulheres), um conhecido filósofo de Cambridge, Thomas Taylor, publicou uma obra satírica cujo título traduzido para o português é “Uma Defesa dos Direitos dos Brutos”.
Era como muitos compreendiam a luta feminista. O feminino taxado de irracional, tolo, estúpido, sem sentido. A defesa dos direitos das mulheres seria um tipo de reivindicação inútil, absurda e despropositada, tal qual hoje é visto o movimento que clama pela libertação dos animais.
Era o que pensava e, de certo modo, ainda pensam aqueles que, ainda hoje, não suportam a ideia da completa emancipação feminina, um movimento incessante que atravessa séculos. É inegável que avançamos na “conquista” de direitos, influenciados pelas diferentes ondas feministas, embora as mulheres continuam sofrendo violências terríveis para além do âmbito doméstico e familiar. Já as inúmeras formas de opressão contra os animais continuam praticamente inquestionáveis pela humanidade, pela maioria dos homens e das mulheres, sendo a defesa da libertação animal motivo de zombaria e descrédito… a história se repete.
É inconcebível, para mim, que certa parte de minha identidade possa se beneficiar com a opressão de outra. Eu sei que meu povo não vai se beneficiar com a opressão de qualquer outro grupo que esteja também na busca pelo direito de existir em paz. (Audre Lorde em Pensamento Feminista – conceitos fundamentais, Org. Heloisa Buarque de Hollanda).
As bases opressoras continuam as mesmas, a objetificação, a violação, o estupro, o assassinato, o controle, a dominação brutal (agora sim, o termo adequadamente empregado) dos corpos, sobretudo dos corpos femininos.
E quem disse que a obra feminista mais conhecida de Mary Wollstonecraft, por exemplo, se limitaria a uma chacota sexista-especista? No século seguinte, em 1813, Percy Shelley, considerado um dos mais importantes poetas românticos, publicaria o ensaio vegetariano intitulado A Vindication of Natural Diet em uma referência à obra da filósofa inglesa e, segundo Carol J. Adams (A Política Sexual da Carne, 2018) há nele uma insinuação de que a defesa da dieta vegetariana também pode ser portadora de um discurso feminista.
A igualdade não é uma ideia; é uma prática. Nós a exercemos quando não tratamos como objetos outras pessoas ou outros animais. (A Política Sexual da Carne, por Carol J. Adams).
A propósito, Carol J. Adams, ao longo de sua obra, apresenta conexões muito interessantes acerca da ideologia dominante patriarcal sempre presente ora para violentar mulheres, ora para violentar animais.
Os aspectos culturais do consumo de carne se refletem como símbolos de uma superioridade, subjugação e virilidade, em uma dinâmica de superposição entre os corpos das mulheres e dos animais. A saída está em reconhecermos a nossa participação na sustentação dessas dinâmicas opressoras e fazermos diferente, tomarmos outro rumo que seja melhor para nós, para as mulheres, para os homens, crianças, enfim, para os seres humanos, para os animais e para a natureza.
São muitas as abordagens trazidas pela escritora estadunidense na composição desse sistema vigente: o papel da publicidade, dos ativistas, das feministas, da cultura patriarcal, da política, do comércio etc.
Um dos capítulos dá a tônica do entrelaçamento desses temas, “estupro de animais, retalhamento de mulheres”, onde é apresentado o conceito de “referente ausente”.
Nós, seres humanos, comemos animais porque dispomos de instrumentos para tal. Quem caçaria apenas com o uso das mãos? É o retalhamento, argumenta Carol J. Adams, o ato facilitador por excelência para o consumo de carne, ato em que os animais, uma vez desmembrados, tornam-se referentes ausentes.
“Some” o animal para que a carne exista e daí por diante outros fatores passam a “viver” no lugar do animal: a linguagem que empregamos se encarrega de renomear esses retalhos, as metáforas que criamos para nomear outras violências se fazem presentes (mulheres que alegam “sentir-se um pedaço de carne” por sofrerem assédio verbal, por exemplo), ou seja, quando as mulheres são ou se sentem vítimas, o tratamento dado aos animais é lembrado sem que estes estejam presentes, enfim, toma-se o lugar do animal, do ser vivo que é/foi assassinado e ninguém percebe, ninguém percebeu.
Esse é um exemplo de “referente ausente” cuja violência opressora que sofre o ser individualmente considerado é camuflada e invisibilizada, independentemente se estamos enxergando apenas vítima mulher ou animal. Em outras palavras, estamos vendo só o que vêm à superfície, uma fração da realidade.
Por meio da função do referente ausente, a cultura ocidental constantemente converte a realidade material da violência em metáforas controladas e controláveis. (A Política Sexual da Carne, por Carol J. Adams).
A escritora feminista-vegana advoga pelo estabelecimento de conexões, aborda questões raciais e entende que não devemos sobrepor ou polarizar sofrimentos, pois o sistema de dominação patriarcal funciona melhor numa cultura de fragmentações e desconexões. Compartilho desse mesmo pensamento.
Impossível abordar aqui mais detalhes bastante relevantes da obra A Política sexual da carne, mesmo porque também não é a minha intenção, mas o livro é leitura obrigatória para os movimentos feministas e antirracista, além do movimento antiespecista (vegano), é claro. E assim, espero ter criado ao menos um entusiasmo para a leitura desse livro fundamental e de outros aqui citados em breves passagens.
Março, considerado o mês das mulheres em extensão a este dia 8, é uma boa oportunidade para reflexão dessas imbricações que existem entre seres vulneráveis e marginalizados que necessitam de respeito e garantia dos seus direitos de existência, de vida digna, de liberdade, de integridade física e psíquica.
Se nós, apesar dos pesares, continuamos nosso legado de lutas e glórias (considerando os avanços e retrocessos) nos opondo firmemente contra o abusivo e segregador sistema patriarcal para a nossa libertação e libertação das (outras) mulheres, esse movimento só poderá ser pleno se integrado com a libertação conjunta de todos os demais seres vivos sem qualquer restrição, isto é, todos aqueles que são vítimas das velhas ideias e crenças, incluindo também os homens que estão com o masculino adoecido e, por estarem profundamente feridos, possam vir a ferir as mulheres, assassinar os animais, destruir a natureza, como se assim fizessem na negação do feminino.
Se não devemos reproduzir aquilo que intencionamos combater, na medida em que nenhuma diferença haveria entre opressores e oprimidos, o enfrentamento de um ativismo fragmentador e separatista está fadado ao fracasso. É momento oportuno para irmos além dos sentimentos menores de vingança na busca por uma “justiça” inexistente porque isto não possibilita a real transformação do que precisa ser transformado, libertado.
Se nós, mulheres, pretendemos nos libertar e vermos a libertação das outras mulheres (tal como dos animais e da natureza), precisamos nos movimentar na desconstrução do nosso eu-opressor que é dirigido para os outros ao nosso redor, especialmente aos animais.