🎞️ Cinema: Ilha dos cachorros (2018)


Muito se disse sobre a animação (que não é para crianças, vale dizer logo) Ilha dos cachorros (2018) e, ao mesmo tempo, pouco se disse sobre o filme Ilha dos cachorros. E somos nós, do projeto Saber Animal, que vamos tentar situar este, e tantos outros filmes (jogos, músicas, séries etc), de outra forma: sob um olhar animalista!

Pelas críticas ao filme indicadas ao final deste texto, ficamos sabendo uma série de coisas: as manias do diretor Wes Anderson; as escolhas dos dubladores (atores muito famosos em HollyWood: Bryan Cranston, Bill Murray, Edward Norton, Liev Schreiber, Jeff Goldblum, Bob Balaban e Scarlett Johansson); a técnica de produção da animação; o orçamento milionário, as temáticas abordadas diretamente e indiretamente etc. Mas parece que algo, que não era só um detalhe, ficou de fora: os animais da história, isto é, os cachorros!

Ou melhor, a relação dos animais com as pessoas, que parece a parte principal do filme, ficou limitada aos interesses dos humanos (como parece ser a regra na indústria cultural do ocidente).

Um resumo do filme poderia ser algo mais ou menos nessa linha: milhares de cachorros, depois de contraírem uma espécie de gripe que os deixa doentes, mas não os mata, foram enviados a uma ilha para ficarem isolados do resto das pessoas que moram no Japão. Essa questão se escora no autoritarismo do prefeito de uma cidade que identificou nos cachorros os potenciais causadores do caos sanitário que viviam. Ao banir os cachorros, o primeiro a ser enviado, via teleférico(!), é o cão que tem a função de guarda-costas do sobrinho do prefeito. Injuriado com isso, o menino chamado Atari tenta resgatá-lo, indo até a ilha num avião que parece ter sido fabricado por ele mesmo (um engenheiro precoce), para tentar encontrar seu cão, Spot, na companhia de outros cães igualmente banidos, quase todos solidários com a história do menino humano.

Trata-se de uma trama bem articulada que vamos entendendo melhor ao decorrer do filme, pois intrincada, que têm muitas pausas para explicar o aconteceu, acontece e que pode acontecer com todos presentes nela. Há um eco de “O Pequeno Príncipe” aqui, sem dúvida, menos eloquente e sem relação direta com as viagens cósmicas e cheias de imaginação do menino mundialmente conhecido por falar com uma raposa e uma flor. Só lembra um pouco…

Os bichos nos entendem, apesar de tudo

Os animais no filme com alguma atividade relevante são, basicamente, só cachorros, já que os gatos aparecem apenas na sua condição de animal mesmo – sem a linguagem e as ambições humanas -, são representados como nas fábulas: eles falam, em inglês, entre si, só que eles parecem não entender os humanos que falam japonês (e se você que viu ou vai ver o filme, e também não fala japonês, ficará igualmente sem saber o que os falantes de japonês dizem, porque esses momentos não foram propositalmente traduzidos, pois desnecessários, já que é possível entendê-los a partir do contexto e não deixa de ser um artifício do diretor para tornar as coisas ainda mais peculiares).

A visão de que as fábulas ressurgiram no século XVII como uma forma velada de crítica política tem sido adotada por muitos pesquisadores . (…) a inserção nessa tradição [literária] permitiu também que esses escritores pudessem atribuir aos animais o poder da palavra e da razão, descrevê-los como criaturas sensíveis e inteligentes e realçar as fragilidades das fronteiras entre humanos e não humanos. Os autores de fábulas mostraram-se imensamente contrários à tendência experimental e mecanicista [de Descartes] que levava à subjugação e ao abuso sistemático de animais pela ciência, ainda hoje em vigor.”

As vozes dos bichos fabulares: animais em contos e fábulas, de Lucile Desblanche1

Outros animais também aparecem nesta animação para ser justo, mas apenas na condição de… comida. Geralmente esse é o papel principal dos animais nos filmes e demais histórias que contamos. A cena do sushiman preparando uma refeição é extremamente brutal, mas nem parece tanto com a sequência quase hipnótica que nos é apresentada: o peixe, o caranguejo e o polvo são esquartejados ainda vivos com golpes precisos e limpos; eles, apesar de fatiados, ainda vivem por alguns instantes. A animação torna tudo até agradável de ver: o enquadramento lembra até o desses programas de culinária.

Sushiman preparando uma refeição com animais vivos

Um boi e uma vaca também aparecem, mas apenas representados em embalagens: no que parece ser uma vasilha de ração e uma vaca numa possível caixa de leite.

Vasilha cheia de comida estragada e um boi na ilustração
Atari deitado sobre o que parece ser uma caixa de leite

Para os humanos, então, eles são só cachorros com a linguagem corporal e os latidos de sempre: o herói do filme os trata como cães, apesar de ter mais habilidade em “falar” com eles. Para quem assiste, porém, os cachorros do filme são como nós: todos eles têm personalidades humanas, aspirações humanas, fazem piadas humanas, dominam o inglês, usam armas criadas por humanos para eles (dentes, que quando expelidos, explodem), usam equipamentos de comunicação etc. Este último é o mais curioso: um aparelho usado por Spot e Atari os interconectam de modo muito eficiente até uma certa distância. Spot, vale dizer, é o cão guarda-costas, e não um pet como os outros cães que estão na ilha e que depois fazem companhia ao menino em sua jornada; apenas um não é de estimação, porque vivia nas ruas e, por tal motivo, tem outro estilo e modo de agir. Essa relação: protegido e protetor não é nova, especialmente no cinema americano de massas, porque quem não se lembra do meloso O guarda-costas (1992)?

Os cães do filme também agem de modo ritualístico, bélico e formam gangues. Aqui entram outras referências que o diretor faz, como ao filme Os sete samurais (1954), de Akira Kurosawa. Talvez o diretor apenas quisesse dizer o quão parecido nós somos com os cachorros, na verdade, já que buscamos alianças, território, comida, laços… Bom, não é possível saber se o diretor não disser a que veio e o que nos resta é apenas especular quanto a isso.

Dentro do filme estão, sim, diversas questões sendo abordadas de modo metafórico que apontam para problemas humanos: a comparação com os procedimentos dos nazistas ao tratamento dado aos cachorros, por exemplo, na crítica de Wallace Andrioli, no site Plano Aberto, não é equivocada, mas circunscrita ao sofrimento do homem no passado e no presente. O filme é, também, visto assim, como um alerta para a história que pode se repetir. Bom, trata-se de uma fábula e fábulas têm uma moral a ser passada adiante (as fábulas educam). Só não parece ser uma fábula qualquer.

De forma engenhosa e intrigante, a animação demonstra, por exemplo, a eficiência de uma vacina em testes, para a cura da tal gripe canina que assola todos os cães banidos, puramente eletrônicos num maquinário colorido e barulhento bem ao estilo japonês. Fica claro aí que os animais não são necessários nos testes dessa vacina: nitidamente o aspecto futurista aponta para como as coisas podem ser sem os animais como cobaias. Nada sobre isso é dito no filme; você precisa apenas perceber. Já as críticas não-animalistas, claro, não deram conta desse ponto e não falam nada sobre isso, por justamente terem outras preocupações em perspectiva (já citadas no começo deste texto).

O cientista e sua assistente
Vacina sendo testada eletronicamente
Vacina sendo testada eletronicamente
Vacina sendo testada eletronicamente

A ilha para a qual os animais foram enviados é, na verdade, um lixão e ao sul, há um sinistro laboratório abandonado que realizava teste em animais. Ele foi desativado por conta de um tsunami. Esses cachorros dessa parte da ilha aparecem mais adiante na história e são importantes no seu desenlace. A cena dos testes da vacina no moderno laboratório contrasta com aquilo que já foi, um dia, um local de ciência e, naturalmente, tortura e sofrimento para os animais. Os bichos que sobreviveram aos testes e foram abandonados depois do tsunami, visivelmente sequelados, surgem como esperança na trama ao engrossarem o grupo da resistência (sim, ela existe e representa o lado político do filme) ao ato autoritário do prefeito.

Quais eram os planos com esses cachorros “danificados” é difícil saber e de que modo eles afetaram a compreensão do público que viu o filme, menos ainda. De parte da crítica de cinema, como se pode ler e ouvir a partir das referências que damos mais abaixo, não afetou em nada, mas disso trato mais adiante. Pode ser que esses animais nem tenham sido notados como vítimas de experimentos humanos: é tudo tão ágil no filme, que isso pode ter passado desapercebido mesmo. A animação amarra a trama, mas os detalhes você precisa perceber com atenção redobrada.

Há até ativistas da causa animal nesse enredo e o papel deles, todos adolescentes e jovens carismáticos que ficam inconformados com a situação e com a perda de seus próprios animais, agem pela resolução do problema ao tentarem dar ênfase aos esforços de Atari como sendo o único a se lançar na ilha em busca do seu cão. Atari é o herói, mas ele conta com muita ajuda e de formas variadas. A principal ajuda que ele recebe é dos cachorros, mas os ativistas também contam! Eles também evidenciam o esforço de cientistas em busca da cura para a gripe – coisa que eles já tinham alcançado, mas que vinham sendo sabotados pelo governo em busca de uma solução final para os cachorros.

Os animais imaginados

Essa animação, se fosse um filme normal (live action), provavelmente teria que ser repensada por completo. Mesmo com muitos efeitos, os animais se envolvem em situações perigosas e de violência. A certa altura de Ilha dos cachorros, os animais passam por dentro de um processador e compactador de lixo! Eles também se envolvem em lutas na qual um deles perde um pedaço da orelha. Caem numa espécie de córrego e por aí vai. Essa última cena em particular pode até lembrar a primeira vez que um animal chamou tanta atenção pelos maus-tratos que a famosa expressão “nenhum animal foi mal tratado neste filme” precisou ser cunhada pela American Association’s (AHA) Film and Televison Unit. No filme Jesse James (1939), um cavalo é arremessado de um penhasco(!) junto com o ator humano e ambos caem na água. Tem até um replay a partir de outro ângulo neste filme, tamanho o entusiasmo sádico dos diretores Henry King e Irving Cummings com a triste ideia.

O cavalo e o homem em queda em cena do filme Jesse James (1939), de Henry King e Irving Cummings
Os cachorros e a criança em queda na cena da animação Ilha dos cachorros (2018), de Wes Anderson

Não foi, claro, o primeiro filme que explorou um animal, porque os animais já podiam ser vistos em filmes mudos como O gabinete do Dr. Caligari (1920), com um macaco preso a um acordeon e cumprindo seu papel de atração, assim como as demais atrações da feira expressionista imaginada por Robert Wiene, ou mesmo antes do cinema, com a invenção do zoopraxiscópio pelo inglês Eadweard Muybridge, que registrou, ainda no século XIX, o movimento de um cavalo galopando pela primeira vez na história – e que depois serviu para registrar tantos outros animais e humanos em movimento em situações bem complicadas, especialmente para os animais.

The Horse in Motion, 1878. Feito de Eadweard Muybridge

“Para satisfazer nossas questões sobre os animais e para saciar nosso apetite por vê-los em sua velocidade, graça e poder; para responder tanto às nossas indagações idiotas (todos os cascos saem do chão simultaneamente?) quanto às nossas reflexões mais profundas, o trabalho de Muybridge nos pôs diante de animais, como criadores de novas tecnologias para ‘capturar’ a sua animalidade e, depois, reproduzir e projetar tudo que capturamos.”

Animais no cinema: a ética do olhar humano, de Randy Malamud1

Se o pastor-alemão, este de verdade, do filme Quatro vidas de um cachorro (2017) já causou comoção (cães e gatos costumam causar, os outros animais nem tanto como bem se sabe, já que seu papel principal nos filmes costuma ser o de comida no nosso prato) ao ser forçado a nadar quando nitidamente não queria, visto numa cena de making-of, e quase se afogando, imagine o que não passariam os cães desta animação. Daí que isso faz pensar que a ficção seria o lugar mais seguro para os animais “interagirem” conosco (todos, sem exceções), ou seja, estando longe deles fisicamente e fora das nossas produções culturais presencialmente. Mas desde quando passamos a representá-los pela arte rupestre, há mais de dez mil anos, eles já figuravam como presas, literalmente, nas próprias representações e também, talvez, como divindades. Aquilo, sem dúvida, era só o preâmbulo do que eles iriam passar em nossas mãos seja na ficção ou na dura realidade…

A crítica da crítica

É compreensível, até certo ponto, que a crítica de cinema tradicional (e seus leitores tradicionais) esteja basicamente mais preocupada com os aspectos mais diretos de produção e consumo dos filmes por ser ela também muito ligada ao mercado e, em grande medida, depender dos meios de comunicação para poder refletir e pensar de modo remunerado. Mas não tem mais como deixar passar algo tão importante, como é o caso da relação de exploração que nós humanos temos com os animais (e isso inclui também os pets, que são fonte de entretenimento, distração, alívio emocional, terapêutico, ostentação, lucro etc) desde o início da escravização a qual demos o nome eufemístico de domesticação. Ter os animais ao nosso lado é uma opção hoje que pode ser facilmente erradicada ao capricho ou descuido dos humanos – que chamam de pragas as outras espécies, mas se esquecem dos danos que causam globalmente – inclusive aos animais que chamamos de pragas, afinal se eles se “transformam” em pragas, isso tem a ver com o que fizemos com o ambiente que eles ocupavam ou passaram a ocupar por nossa causa.

Um exemplo de crítica especista é o episódio que trata do filme Ilha dos cachorros do podcast Cinemático. Seus participantes, em momento algum, se preocupam com o que se passa com os cachorros na história! Fazem pouco caso da trama na maioria das vezes e as observações de todos estavam limitadas às temáticas humanas, aos dubladores, ao estilo do diretor etc. Apesar de ser uma fábula e termos os cachorros metidos em questões humanas, os cachorros ainda são cachorros e também tem ambições, digamos, caninas: querem abrigo, criar seus filhotes, precisam comer e ficarem livres de sofrimento.

As características básicas que reconhecemos nos cachorros estão todas lá: fidelidade, companheirismo, manias, rosnados, mordidas… Tirando a fala humana, os cachorros são cachorros a maior parte do tempo: eles não usam roupas como as nossas ou andam nas duas patas como na animação “O Fantástico Sr. Raposo”, também do diretor Wes Anderson. Em certo momento, um dos participantes do podcast Cinemático diz que não conseguiu sentir empatia por nenhum dos personagens. Nenhum! Alguns dos cachorros aparecem sequelados por testes de laboratórios: eles estão nitidamente mutilados pelas experiências e sobreviveram de modo traumático depois de abandonados à própria sorte na parte remota da ilha – inclusive apelando ao canibalismo… Se isso não tem capacidade de gerar uma empatia mínima que seja, o que mais poderia gerar?

Laboratório que fazia testes em animais
Cachorra sequelada
Cão sequelado
Representação dos animais sendo usados em experimentos

É difícil saber, mas esse tipo de crítica especificamente, mais próxima do que comumente se identifica como cultura nerd, é, basicamente, uma amálgama de egocentrismo, tiradas supostamente engraçadas e consumismo desenfreado. Obviamente não haveria empatia também pelos animais usados para servirem de alimento (aqueles destroçados ainda vivos) já que nem os cachorros conseguiram tocá-los… Outro participante observa que ficou muito pensativo depois de sacar que o nome original do filme, “Isle of Dogs”, é um trocadilho para “I love dogs”. Mas parou por aí.

Neste mesmo episódio do podcast Cinemático, ainda um outro participante, ao comparar a animação de Wes Anderson com outra, Wall-E (2008), de Andrew Stanton, justamente por conta do lixão que serve de pano de fundo para o robô que habita a Terra desolada e para os cachorros de Ilha dos cachorros, diz que percebeu mais a emoção no robô Wall-E, que tem uma barata (um inseto) como amiga, do que nos cães. Ora, não é nada improvável que, do jeito que caminhamos, os robôs da Boston Dynamics tenham mais direito “à vida” do que os animais, sendo que o estofo emocional da turma é bem pouco sensível à causa animal. Essa geração, tão ligada aos recursos tecnológicos que enchem nossos dias de informação (muitas delas falsas), tem, de fato, criado laços tão fortes com seus aparelhos eletrônicos que, de algum modo, os gadgets conseguiram mais valor que os seres vivos (incluindo aí, talvez, até os seres humanos).

Em Ilha dos cachorros, os robôs, inclusive, são apresentados como solução para a ausência dos cachorros verdadeiros: uma empresa desenvolve cães que podem ser armas, mas também ao mesmo tempo dóceis companheiros. Algo parecido com o Aibo, da Sony, misturado com um T-800, do filme Exterminador do futuro (1984), de James Cameron.

Mesmo a fábula sendo, nas palavras de La Fontaine, uma forma de educar crianças (pelo conhecimento da natureza e pela ética), os jovens adultos no século XXI filiados ao mundo nerd estão em nível de infantilização que subestimamos apesar das evidências do contrário. Se não se tem capacidade de compreender ou se sensibilizar minimamente com uma fábula, por mais rocambolesca que ela seja, há algo de bem errado numa geração com tantos recursos tecnológicos, mas sem empatia ou inteligência emocional.

A crítica da crítica da crítica…

Não será, todavia, uma preocupação primeva desta seção do site Saber Animal falar de outras críticas, apesar de parecer crucial, às vezes, mencioná-las, porque críticas especistas são a quase totalidade da crítica cultural atual – em qualquer área da cultura, diga-se. Mas elas servem como uma amostra de como pouco ou mesmo nenhuma importância se dá aos animais (mesmo quando eles são o assunto principal de uma história, seja ela qual for ou em qualquer gênero), são ou ignorados (como neste caso) ou postos em segundo plano, como algo acessório à trama. Os animais precisam de mais atenção e isso inclui aquilo que vemos também no cinema.


Críticas lidas ou ouvidas

Referência bibliográfica

1 Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica, de Maria Esther Maciel (org.)

🎞️ Cinema: Ilha dos cachorros (2018)
Estilo da animação
10
Ritmo da narrativa
8
Participação dos animais
9
Alcance de público
7
Pontos positivos
Boas piadas
Boas metáforas
Trama complexa
Pontos negativos
Tudo muito rápido
Baixa presença feminina
Animais são vistos como comida
8.5