🎞️ Cinema: Crannog (2018)

Alexis Fleming em companhia de um cachorro com várias aves em volta em um asilo para animais doentes na Escócia
Alexis Fleming com animais em seu asilo na Escócia

O documentário curta-metragem Crannog (2018), de Isa Rao, mostra a vida de Alexis Fleming numa espécie de asilo, na Escócia, para animais em fase terminal. É algo bem parecido com alguns santuários que temos no Brasil, mas com um propósito um pouco mais específico por conta da característica comum dos animais. Vemos, basicamente, uma mulher que não quer que animais abandonados ou rejeitados morram sozinhos, então os resgata e presta cuidados para terem conforto e cuidado paliativo até o fim. Somos confrontados com uma situação bastante sofrível do ponto de vista emocional e de muita devoção. Ela conta que deu início a esse tipo de atividade quando ela própria não pôde estar com sua cachorra em seus últimos momentos. Há também o fato de Alexis ter sido diagnosticada, em 2015, com uma doença que supostamente lhe permitiria ter apenas algumas semanas de vida, dada a gravidade da situação. Com essa notícia terrível diante de si, a opção foi por se engajar pelos animais fazendo com que o seu pouco tempo de vida que ela teria entre nós fizesse sentido. As semanas, os meses e os anos se passaram e Alexis continua viva e, apesar das fortes dores que sente todos os dias, continua cuidando dos bichos.

Nesse pequeno fragmento de vida de uma mulher em companhia dos animais tão comumente explorados pelas indústrias, vemos as dificuldades de uma ovelha que parece muito doente e que, apesar dos cuidados, não consegue se recuperar, apesar da atenção e dos cuidados que ela recebe serem permanentes. Também vemos uma galinha ser enterrada num pequeno cemitério e sua sepultara ser marcada com pequenas pedras empilhadas. Mais adiante vemos um grande porco que também aparece recebendo tratamento e cuidado. São vários os animais, todos muito comuns em fazendas, apesar de também haver acolhida de cães no asilo.

Não só por ser um curta-metragem e haver, portanto, pouco tempo de duração, mas não há muita margem para momentos engraçados como em uma entrevista dada à BBC que foi feita depois do êxito do documentário em festivais que premiam este tipo de produção. A parte cômica, geralmente, fica com o comportamento dos animais que não sossegam e se aproximam dos jornalistas e equipe deixando-os atrapalhados – eis a graça. Quero crer que este momento, na entrevista, aparece para atenuar a temática (animais esquecidos à beira da morte), pois o papel de alívio cômico é persistente na cobertura jornalística quando há animais envolvidos. Há um nítido contraste, vale ressaltar, entre o documentário e a entrevista: um é melancólico, como o luto, e a outra, alegre, como se um luto tivesse sido superado.

“Segundo um estudo realizado pelo Canadian Veterinary Journal, 50% das pessoas que perderam seu animal de estimação dizem que a sociedade não avalia que essa morte seja digna de um processo de luto. ‘Nem todo mundo tem um animal de estimação e isso dificulta que as pessoas tenham empatia em relação a esses casos, e também porque se subestima o vínculo emocional que a pessoa pode ter com o animal’, acrescenta [Sandra] Sánchez.” (Luto pelos animais de estimação pode ser tão penoso quanto o luto por outras pessoas?, por Mônica Parga para o jornal El País)

Ademais, outros bichos parecem mesmo procurar a presença de Alexis e se aproximam em busca de atenção e carinho. Apesar de alguns desses animais não serem “de estimação” e não receberem a mesma consideração que cães e gatos e irem parar no prato de bilhões de pessoas ou servirem de joguete em eventos ditos tradicionais ou encontrarem a morte ao serem “sacralizados” em diversos rituais das mais diversas religiões pelo mundo, eles também são carinhosos e desejam o mesmo que todos os outros: viver.

Alexis encara, então, uma série de lutos a cada perda – e pelo que podemos deduzir não são poucos. Ela mesma enterra os animais em um ritual particular de despedida. Vemos apenas duas, mas como os animais estão doentes, o ciclo de vida deles não será completo e tende a ser abreviado por serem vítimas da severa exploração humana. Os animais que Alexis recebe foram abandonados ou rejeitados de algum modo; são seres com “defeito” e que não servem mais aos interesses humanos. Mas a diretora Isa Rao consegue, em momentos muito delicados, e mesmo com pouca luz, registrar o olhar deles e suas tentativas de permanecerem vivendo suas vidas. A luta deles é muito similar a da própria Alexis.

Algo bastante curioso é registrado: um pequeno grupo de ovelhas, que parecem estar um pouco melhores de saúde, ficam curiosas com a situação da ovelha mais adoentada. Elas, atrás de uma cerca, acompanham a tentativa de recuperação daquele ser que interage com outro, de outra espécie, numa relação que aparenta ser solidária e de cuidado. E, a partir dessa cena, penso que as nossas palavras e linguagem não servem para explicar o que pensam os outros animais, mas com algum grau mínimo de aproximação, dada a nossa animalidade (é sempre bom lembrar que também somos animais apenas instituídos de uma outra linguagem a qual cultivamos e aprendemos), é notável que as ovelhas não se afugentem com a situação crítica da outra ovelha que mal para de pé; elas não sentem ameaça alguma ali e não veem perigo na aproximação e contato de Alexis.

“Não há, a priori, qualquer razão para que a comunicação com o animal seja mais simples do que a que estabelecemos com outros seres humanos, ou com uma maioria de seres humanos. Ela pode, muito simplesmente, ser diferente. E mesmo que fosse mais simples, nada prova a veracidade do ditado que diz que quem mais pode menos pode neste caso específico. Em geral, estamos aptos a reconhecer que a nossa vida não é inteiramente transparente para nós e que existem numerosas ações que efetuamos sem o ter desejado ou sem saber quais as razões que realmente as desencadearam.” (As origens animais da cultura, por Dominique Lestel).

Podemos cogitar que aquelas ovelhas agem assim apenas por serem “domesticadas” e estarem, há milênios, acostumadas com a nossa presença (geralmente opressora) mas, mesmo assim, resta alguma margem para considerarmos que eles, os outros animais, nutrem interesse uns nos outros (nos de sua própria espécie, no caso). Vemos comportamentos complexos em vários tipos de animais (elefantes, pinguins e golfinhos, por exemplo) e a tendência é subestimá-los ou vê-los como se se comportassem como humanos (antropomorfismo). Não parece o caso. É um outro universo, inacessível a nós e que por essa e por muitas outras razões que apenas nós humanos podemos considerar, deveriam ser deixados em paz e nunca terem se tornado as maiores vítimas de todos os tempos de domínio relativo do homo sapiens na Terra.

O afeto que Alexis prioriza nas ações de cuidado com todos os animais sob seus cuidados são, de algum modo, “retribuídos”. Está aí outra característica subjetiva que surge na expressão animal. Num breve momento, a ovelha reage aos cuidados e se põe a mover e andar um pouco já com algum equilíbrio e resistência, como era o desejo de Alexis para a sua, mesmo que momentânea, recuperação. Dentro do universo das nossas representações e simbolismos, fica difícil ver outra coisa além de “gratidão” pelos cuidados no gesto fugaz do animal que perambula quando poderia permanecer quieto, a espera da morte que eles, como bem sabemos, pressentem. Muitos animais se isolam quando sentem que vão morrer…

“Outras formas de comunicação devem ser contempladas, e torna-se necessário colocar em suspenso, nesse sentido, a hegemonia do signo verbal linguístico como única via de comunicação possível.” (Desenjaular o animal humano, por Álvaro Fernández Bravo em Pensar/Escrever o animal).

É tão oportuno, portanto, que a diretora tenha optado pelo prolongado silêncio das vozes humanas na maior parte do tempo do filme. Ouvimos, sim, algumas falas de Alexis seja na interação com os animais ou dando alguma explicação sobre sua rotina, mas predominam os sons dos animais e do ambiente pacato do asilo. A diretora, propositalmente ou não, deu mais espaço a eles do que as infindáveis narrativas humanas que soterram a vida e até mesmo a expressão dos animais. O direito de expressão, que em sociedades ainda democráticas como a nossa é considerado quase sagrado, quase nunca se estende aos animais – mesmo porque não encaramos que eles tenham esse direito, ou melhor, é provável que a maioria das pessoas não ache que eles tenham qualquer direito, lamentavelmente. Outros documentários seguem um caminho parecido, como é o caso de Kedi (2016), de Ceyda Torun.

Não é o caso, contudo, o que acham certos pensadores, especialmente os conservadores e sua infinita mesquinhez:

“Foram poucos os filósofos que se excederam a ponto de afirmar que árvores têm direitos. Não estou convencido de que devemos atribuir ‘direitos’ sequer aos animais, mesmo quando fazemos tudo para salvaguardar os seus interesses.” (Filosofia Verde, de Roger Scruton).

E apenas uma coisa que pode parecer imprecisa: o documentário nos leva a crer que Alexis vive sozinha e faz tudo por conta própria, mas não é o caso. Ela tem um parceiro que, presumo, a ajuda de algum modo. O documentário não mostra esse lado e, talvez, não devesse mesmo, dando mais espaço aos animais e as ações de Alexis, mas creio que num pequeno momento ou apenas insinuando que há mais alguém com ela, seria menos penoso imaginar que se trata de uma pessoa isolada.

Alexis e seu parceiro Adam com o cão Osha sentados numa gramado
Alexis e seu parceiro Adam com o cão Osha

Por aqui, no Saber Animal, torcemos para que mais produções assim surjam e ampliem a noção da necessidade de estabelecer que não só vidas humanas precisam de dignidade e acolhimento em seus últimos momentos.


Veja aqui (em inglês) uma lista de reportagens indicadas pela diretora Isa Rao que falaram sobre o asilo de Alexis Fleming:

Inside Scotland’s heartbreaking hospice where terminally ill animals go to die in comfort

DOGNITAS Photoshoots, story-time and favourite sweets on the day they die: inside the animal hospice for terminally-ill turkeys, sheep and other pets

‘I faced death, now I care for 90 animals’

Experience: I run a hospice for animals

“It still breaks my heart every time”: Alexis dedicates her life to helping terminally ill pets at her animal hospice

🎞️ Cinema: Crannog (2018)
Não coisifica os animais
10
Permite amplas reflexões
10
Desvia do lugar-comum
10
Compreensão do contexto
6
Pontos positivos
Mostra algo desconhecido
Feito com sensibilidade
Não apela para o humor
Pontos negativos
Restrito à vida de Alexis
Algumas cenas escuras
9