⚖️ Breve relato sobre um caso criminal, crimes, visões e sentires

De um lado o confinamento humano chamado prisão e de outro o confinamento animal chamado economia. Semelhanças? Autoria das fotos desconhecida.
De um lado o confinamento humano chamado prisão e de outro o confinamento animal chamado economia. Semelhanças? Autoria das fotos desconhecida.

Encontrei uma parte deste artigo em meus arquivos digitais de anos atrás e então o concluo, publicando aqui. A forma como tratamos alguns grupos sociais, como as pessoas que, por algum motivo foram privadas de sua liberdade física (ou às vezes sem motivo algum, o que também pode acontecer) tem as suas semelhanças com a forma com que tratamos os animais não estimados, os chamados “animais de produção” em oposição aos de estimação, aqueles nascidos para comércio e exploração, na mentalidade de muitos.

Quem entende no coração o que é, em essência, a defesa de direitos humanos vai igualmente entender o que é a defesa de direitos animais e vice-versa. E então, a escolha consciente de cada um sobre o que fazer com isso pode acontecer. Direitos humanos, direitos dos animais, direitos da natureza, direitos naturais de todos os seres viventes e por aí vai. São muitos os pontos de convergência sobre os direitos de existência digna de tantos seres que, abordar tudo isso é quase uma missão impossível, além de desnecessária. Basta ter uma mente e um coração trabalhando em conjunto que as conexões acontecem.

Segue o texto.

Ainda que aquele rapaz acusado de tentativa de “roubo” fosse finalmente considerado culpado e condenado perante a justiça dos homens, dentro de mim acreditei na sua inocência e assim, mesmo sem experiência na área, assumi sozinha aquela defesa.

Há quatro meses largado em um centro de detenção provisória, antes do advento da lei que instituiu a audiência de custódia (lei federal n. 13.964/2019) e incluiu novo procedimento no Código de Processo Penal, era caso de uma intervenção humanitária, tamanha a falta de humanidade do Estado, representado por agentes públicos de modo geral, os quais deveriam trabalhar com maior zelo e responsabilidade em casos tais.

Quando soube da prisão através de uma pessoa que veio me contar e talvez buscar ajuda para as pessoas envolvidas nessa situação, de imediato nada julguei e isso não se deu só pelo fato de eu ser advogada, mas porque simplesmente não me senti nesse “direito”.

Depois que tive acesso aos autos do processo, entendi bem o caso e também não tive curiosidade de perguntar nada além do que estava ali, evidente para qualquer pessoa conhecedora do sistema judiciário, da sociedade e do modus operandi do estado e seus agentes. Li o que estava escrito e principalmente o que não foi escrito. Intui a verdade ao me aproximar das pessoas e dos fatos apresentados e por isso nada havia a esclarecer adicionalmente.

Logo vi que, no máximo e com bastante exagero e dramatização, alguém poderia dizer se tratar de uma tentativa de furto. Chamar um desconhecido na rua pode virar crime, a depender da aparência de quem chama. O medo crônico e fantasmagórico em que vive muitas pessoas, às vezes um medo bastante arraigado no inconsciente, pode levar algumas pessoas a odiarem outras por motivos como diferença de classe social ou cor da pele. Absolutamente nenhuma violência foi praticada com a suposta vítima, se é que devemos chamar de vítima uma pessoa que nada sofreu. Mas no processo criminal era ela a vítima, além da “sociedade”. Já o que estava se passando no centro de detenção provisória com o acusado e, junto ao dele, o sofrimento de sua mãe, eram os fatos realmente importantes para mim desde o princípio, antes mesmo de estudar o caso.

Quando me conectei com toda essa história, soube através de meu coração o que deveria fazer: tentar libertá-lo de um aprisionamento injusto e cruel, um trabalho voluntário, dadas as suas condições financeiras e de sua mãe.

Consegui a liberdade. E depois disso a audiência de instrução confirmou tudo aquilo que eu já sabia, não só pelo processo, mas principalmente por experiência na advocacia e sobretudo pela minha intuição acerca do que não estava escrito.

O rapaz que defendi sequer foi reconhecido pela suposta vítima. Eu falo suposta porque nem sempre concordo com esse termo. No sistema judiciário não tem suposta vítima, tem vítima e acusado ou suposto criminoso, que na prática está mais para condenado ou socialmente condenado, mesmo antes de qualquer julgamento. Isso é justiça?

Sem dúvida foi uma das defesas mais gratificantes da minha carreira de Advogada, até aqui. Nada extraordinário, nenhuma pompa, mas tão bela apesar dos fatos, que vale muito esse registro através dessa escrita. E esse caso depois rendeu denúncias graves  sobre o que passou o meu cliente. E a vítima nessa história certamente era ele, por tudo que fizeram com ele. Sabemos que não é o único, infelizmente não há como haver justiça alguma quando alguns escolhidos e alguns crimes seguem seletivamente na mira do Estado e de seus agentes.

A outra pessoa que também havia sido presa junto do rapaz que defendi também conseguiu a liberdade, movimentando tudo o que estava parado depois que eu entrei no caso.

O processo seguiu seus trâmites normais. Houve sentença absolutória para o meu cliente, ficando provada a sua inocência, mas depois um promotor de “justiça”, não se conformando em perder (isso infelizmente é bem comum na justiça criminal) e sem qualquer embasamento, contrariando a prova dos autos e tudo o mais, a não ser ressuscitando os dados do inquérito, resolveu recorrer pedindo a condenação de um inocente. E assim foi feito. Advogadas e advogados criminalistas que pegam casos como tais merecem todas as honras, pois lidar com esse sistema de injustiças absurdas não é tarefa para qualquer um. Foi para mim, naquela ocasião, quando abracei a causa da compaixão, da justiça… Muda-se a atuação, os interesses, mas os valores essenciais permanecem e assim deve ser.

À época, depois que a Promotoria recorreu, encaminhei um novo recurso ao Superior Tribunal de Justiça e finalmente consegui fazer que ele (o recurso) fosse conhecido e então não pude mais acompanhar.

Um só processo, algumas poucas pessoas envolvidas e muitos aprendizados para mim, mas os aprendizados estão sempre disponíveis para todos e é sempre opcional. Um só caso criminal que aponta para muitos outros similares, pois a injustiça é também sistêmica. O julgamento do outro é uma grande ilusão, mais do que mera hipocrisia. Nós mesmos nos julgamos corriqueiramente, às vezes até nos condenamos, nos punimos e muitas vezes tudo sem perceber. Depois fazemos tudo isso com os outros das formas mais cruéis possíveis.

Todos nós fazemos coisas ou coisinhas que aos nossos olhos ou aos olhos dos outros podem ser reprováveis. Será mesmo reprovável? Por que ou para quem? O sistema judiciário criminal me parece bastante reprovável, por exemplo. No mínimo tem muito o que se transformar, mas essas reformas só funcionam se as pessoas que compõem as instituições também caminham para a própria transformação, revendo conceitos, pré-conceitos, julgamentos, juízos de valor e principalmente, se reconectando ao sentir. De que adianta mudar leis quando na realidade é o mundo interior de quem faz e trabalha com as leis que precisa mudar em primeiro lugar?

Não sei se uma reforma transformadora nesses sistemas judiciais vai acontecer ou se simplesmente as coisas vão começar a ruir por si só quando as verdades reais começarem a aparecer por todos os cantos na sociedade a ponto de ser absolutamente impossível ignorá-las.

Amar ao próximo e a si, sem mentira, sem faz de conta, sem utopia. É sobre isso as mais profundas, reais e duradouras transformações. Onde não há amor não pode haver justiça.

A justiça não é um conceito abstrato ou intangível, como podem argumentar alguns filósofos, mas é um conceito muito profundo que precisa ser vivenciado em nosso cotidiano, em nossos atos mais simples da vida; muitas vezes quem trabalha com a Justiça não sabe o que é justiça porque não a vivencia, não a experiencia em suas vidas.

O que você pensaria caso alguém te dissesse que o crime não existe? Pois é. Para alguns, o crime é uma invenção humana para controlar e segregar alguns em “benefício” de outros, basicamente é isso, ou seja, o conceito de crime já nasce sob uma base de injustiça.

Nils Christie, um renomado sociólogo e criminólogo norueguês trouxe essa definição de crime (a sua inexistência) ao sustentar que o que existem são atos e o modo como classificamos os atos é uma construção social. E eu concordo com essa visão que traz uma compreensão muito simples e profunda sobre vontade política, interesses políticos, sistema educacional, social, cultural…

As escolhas e decisões político-sociais, econômicas, culturais que determinam o que vemos ou não como crimes, o que elegemos ou não como crimes.

Explorar ou matar animais para consumo humano sem a menor necessidade (ou pagar para os outros matarem, que é o que acontece no capitalismo), quando existe acesso a fontes de alimentos vegetais não é crime, mas talvez pudesse ser, não? Perguntemos a opinião de defensores dos direitos animais. Trabalho escravo é crime, mas se quem trabalha forçadamente é o ser vivo senciente não humano (cavalo, boi, vaca, galinha, golfinho, elefante etc…) não é crime.

Crime é nada mais nada menos que uma conveniente invenção de quem pode inventar, cabendo a quem não pode, apenas obedecer. Percebe?

Sem justiça não existe liberdade e também não existe verdade. E a liberdade é um direito fundamental de todos os seres e nas mãos de homens e mulheres que agem com injustiça, embora tenham um certo poder, ela não pode prevalecer.

Mas por mais que se tente ignorar ou desviar desses valores, eles voltam, eles retornam, eles ressurgem, porque essa é a lei da vida. A justiça, a liberdade e a verdade andam juntas, são fortes valores superiores que transcendem os convenientes desejos humanos e assim, em paz finalizo esta escrita.