PARTE I
A MÚTUA INCLUSÃO: DIREITOS ANIMAIS NÃO-HUMANOS E HUMANOS
Nascemos humanos. Defender direitos animais pode ser, para alguns, uma forma egoística por não se enxergar os direitos de forma mais abrangente e inclusiva porque supostamente estaríamos desprezando a garantia dos nossos próprios direitos humanos fundamentais durante nossa existência neste mundo. Ocorre que a nossa vivência neste mundo não implica a necessidade de violentar e exercer o domínio de alguma forma sobre o outro ser vivo, ser humano ou não-humano, sobre outras tantas espécies que aqui já estavam quando nascemos e que também dispõem de sua senciência, de suas percepções sensoriais e de graus de consciência similares ou não às nossas ou até mesmo de outras formas de inteligência.
Não existe nenhum código de conduta humana que expresse, taxativamente, a obrigatoriedade em se extrair benefício qualquer de corpos e vidas alheias, no entanto, o modo de vida antropocêntrico aliado ao sistema patriarcal trouxe consigo um nefasto poder tirânico que tratou de sabotar o desenvolvimento do respeito genuíno pelos demais seres vivos, pela natureza e pelo feminino.
Nos últimos anos, temos sido crescentemente confrontadas com os mesmos aspectos fundamentais que dizem respeito à sobrevivência e à conservação da vida neste planeta, não só das mulheres, das crianças e da humanidade em geral, mas também da vasta diversidade da fauna e da flora. [Ecofeminismo, de Maria Mies e Vandana Shiva]
A dignidade humana será capenga enquanto não encararmos um juízo de alteridade animal que coloque de lado nossos vícios exploratórios e abusivos de modo a considerarmos atitudes éticas em nossas relações com os demais indivíduos e com o nosso planeta para uma coexistência harmoniosa, ao invés de pilharmos os seus recursos biológicos em desprezo à natureza e ao feminino.
É disso que o veganismo trata: um posicionamento constante e prático em oposição à violência, ao sofrimento desnecessário e à matança dos nossos semelhantes animais; a luta pelo fim de todas as formas de exploração animal por meio da abstenção de suas práticas; o entendimento de que não há paz e justiça social possíveis de serem alcançadas tão somente para a família humana, devendo ser incluída toda a diversidade e imensidão do reino animal, no qual a humanidade é representada por apenas uma espécie – a homo sapiens; o reconhecimento de que todos nós estamos inseridos em uma relação de interdependência com a conservação do meio ambiente natural.
Tanto a animalidade quanto a vida constituem e excedem tudo aquilo que chamamos de humano. O ponto não é encontrar a tipologia certa, mas entender onde o pensamento tipológico desmorona. (Judith Butler apud Brian Massumi). Onde o pensamento tipológico de separações categoriais desmorona será encontrada a necessidade – e a oportunidade – de empreender o projeto positivo de construir uma lógica de mútua inclusão diferencial dos modos de existência, e das eras da natureza, ou seja, mais para o escopo do animal-político. [O que os animais nos ensinam sobre política, de Brian Massumi]
O movimento pela libertação animal é inclusivo, não violento, não discriminatório que passa pela transformação humana individual de cada pessoa que até então participava ativamente da exploração animal em seus hábitos pessoais e políticos de consumo, diversão, sistema de crenças etc, para valores morais elevados de justiça, compaixão, verdade, igualdade, solidariedade, fraternidade, cooperação.
Podemos dizer que o veganismo (que não se confunde com o bem-estarismo) ou movimento abolicionista pelos Direitos Animais, em um contexto político mais amplo, se situa dentro de um segmento progressista ou não conservador e é um movimento uno porque voltado à emancipação dos animais não-humanos, ainda que composto por diferentes pessoas humanas, sendo absolutamente salutar e obviamente desejável a diversidade de culturas, de etnias, de gênero, de matizes socioeconômicas etc. cuja premissa é a libertação dos animais não-humanos da violência e exploração humana, ou seja, o fim de toda e qualquer prática especista.
Veganos não exploram a vida animal e a capacidade reprodutiva das fêmeas, não violentam, não subjugam, não maltratam, não matam, não consomem, não escravizam outros seres, não se divertem e não lucram com o sofrimento dos animais não-humanos.
A cegueira moral fincada nos padrões antropocêntrico, patriarcal e especista ignora as violências contra outro ser vivo, suas implicâncias e desdobramentos em outras formas de opressão e violências que são pautadas em relações de poder e tirania sobre outros sujeitos, sobre tudo o que é vivo, sobre quem se julga inferior ou indigno de acolhimento moral e de direitos. Onde há exploração animal e destruição da natureza, há a presença significante da figura humana masculina, daí porque o patriarcado promove a cultura especista.
Para nós, snail darter [caracol existente no Tennessee] deve ser considerado ao mesmo nível das necessidades hídricas de uma comunidade, a toninha e o apetite de atum e as criaturas em cima de quem o Skylab pode cair. (…). Vemos, com uma preocupação feminista, a devastação da Terra e dos seus habitantes pelos guerreiros empresariais e a ameaça do extermínio nuclear pelos guerreiros militares. É a mesma mentalidade machista, que nos negava o direito aos nossos próprios corpos e à nossa sexualidade, que depende de múltiplos sistemas de domínio e do poder de estado para obter o que pretende. [Ecofeminismo, de Maria Mies e Vandana Shiva]
Isso nos leva a pensar que, se é possível observar uma predominância de gênero masculino dentro das mais variadas facetas da exploração animal (pecuaristas, fazendeiros, carroceiros, charreteiros, cavaleiros, peões de rodeios, exploradores “rinheiros” etc), evidência que também é verificável na sistemática violação dos corpos de fêmeas para a produção leiteira, produção de ovos e contínua reprodução de vidas na atividade pecuária, o mesmo não se pode afirmar quanto à questão de classe e de “raça”, já que a composição desses últimos grupos sociais é bastante heterogênea e assim participam ativamente da exploração / escravização dos animais não-humanos, em maior ou menor grau, estejam na condição de oprimidos ou opressores dentro das estritas relações humanas.
De acordo com uma observação mais cuidadosa, ricos e pobres, nacionais e estrangeiros e toda a diversidade humana que não é praticante do veganismo, explora, violenta e mata sem necessidade outros seres vivos em todos os continentes do planeta, salvo os chamados povos indígenas ou originários (pelo menos a sua maioria), também conhecidos como os povos da floresta, onde vivem e caçam exclusivamente para sua subsistência. Volto a essa questão na parte III.
PARTE II
A VEZ DOS SEM VOZ?
Se o capitalismo nos trouxe a um estado lastimável de destruição levando a exploração animal, humana e ambiental a níveis alarmantes, parece intuitivo afirmar que o veganismo, por si só, é uma luta anticapitalista ou antissistêmica, o que não significa afirmar que o movimento abolicionista pelos direitos animais só pode caminhar se estiver de mãos dadas com outros setores progressistas, haja vista nenhum deles estar aberto, ainda, à causa dos animais, isto é, a consideração dos animais como sujeitos de direitos na esfera moral.
A construção de alianças só pode ser boa para os animais não-humanos quando eles passarem a integrar a lista prioritária e emergencial das pessoas humanas que estão nas lideranças dos mais diversos movimentos sociais a fim de que haja o fortalecimento e crescimento dos movimentos que são complementares entre si. E aqui não há nada a perder para quem defende outros direitos (humanos), muito pelo contrário! Direitos animais e humanos não são excludentes, haja vista os humanos possuírem direitos fundamentais consolidados exatamente porque são (somos) animais, somos seres animados. Os movimentos sociais que lutam por respeito aos direitos humanos (já consolidados) serão oxigenados com uma luta genuinamente revolucionária, vigorosa e potente: o movimento de emancipação dos animais não-humanos.
Integrantes de outros movimentos só tem a ganhar em vários aspectos, do ponto de vista individual, social e político, mesmo porque não se constroem alicerces em areia movediça e se a ética prática não for um pilar no combate de toda opressão, a luta por qualquer libertação se esvazia de sentido e propósito porque perde a sua força e coesão política, portanto, a sua essência revolucionária.
Quem já é adepta(o) do veganismo, ou a ele adere, também ganha com a efetivação e renovação de seus próprios direitos humanos, pelo exercício da autonomia, da cidadania, da maior consciência política e muito provavelmente o desdobramento será uma maior compreensão sobre as outras formas de opressões. O fortalecimento dos movimentos que lutam pra fazer valer os direitos humanos é recíproco, os grupos oprimidos e seus militantes já possuem uma natural empatia uns com os outros, o que não acontece automaticamente com a defesa dos direitos animais, que precisa, necessariamente, do reconhecimento, da consideração e da inclusão humana para ganhar maior potência e força coletiva.
Os animais não-humanos precisam da gente, devemos a eles reparação histórica e secular. A nossa luta pela libertação animal é nada mais nada menos do que a luta por justiça, pelo que é ético, pelo correto a nível individual e coletivo. O veganismo é uma luta política onde dispomos do nosso corpo para personificar a resistência pelo outro ser que sofre, pela consideração moral dos demais animais enquanto sujeitos de uma vida, e não um movimento por “direitos aos veganos”.
Por outro lado, a transição de uma sociedade capitalista para outro sistema socioeconômico não é garantia alguma de liberdade para todos os seres, especialmente para os animais não-humanos. Até o ecossocialismo quando é propagandeado entre militantes de esquerda no meio vegano não convence, já que o foco de preocupação é a sobrevivência da vida humana no planeta ecologicamente equilibrado, com o fim do sistema industrial e intensivo de produção e não o da exploração praticada pelo homem do campo ou pelo pequeno produtor, por exemplo. Desse jeito, os pretensos revolucionários também apoiariam índios ruralistas? (Retomo a questão na parte III).
Um exemplo para ilustrar essa situação é o panfleto vegano-socialista “Bestas de Carga”, cuja autoria é desconhecida. No citado panfleto, há um capítulo que tenta explicar como seriam tratados os animais em uma sociedade comunista. Eis um trecho que resume a questão: “desacordos podem continuar surgindo mesmo na sociedade que surge com o desenvolvimento do movimento comunista e com a abolição do capitalismo ao redor do mundo. (…) A questão de como viver com outros animais pode ser resolvida de diferentes formas em diferentes lugares e épocas. A libertação animal forma um polo desta discussão. Outros podem tomar posições diferentes, argumento talvez pela manutenção de fazendas ‘éticas’, a não intensiva domesticação dos golfinhos (mesmo que isso ainda possa trazer práticas cruéis sobre estes animais, como a castração e a separação das mães de suas famílias)”. O manifesto continua nessa toada, apelando, sem muito sucesso, para a tentativa de convencimento de que, com o fim do capitalismo (e não necessariamente a abolição animal), finalmente haveria o que entendem por uma “transformação radical” na nossa relação com as outras espécies, assim explicado: o fim dos interesses da “indústria animal”, o fim das propagandas para o consumo de carne, haveria transparência e conhecimento acerca das origens dos “produtos animais” e seu “processo de produção”, haveria amplo conhecimento sobre os impactos na saúde humana e por aí vai… Os autores anônimos acreditam que a abstenção total da “produção animal” é impossível e que não se deve “condenar” os outros por não irem longe o bastante. Definitivamente, a não libertação animal não tem nada a ver com veganismo, mas é o entendimento ou a suposta proposta revolucionária desses críticos do atual sistema.
Parece importante colocarmos um ponto final em práticas e costumes predatórios e exploratórios que são pilares de tantas mortes e devastação, abandonando de vez esse modo de política humana que, quando decide agir a cada crise emergencial, busca apenas o uso de uma nova roupagem mas não promove revolução alguma porque não alcança as raízes necessárias.
Em conjunto e ao longo do tempo, geramos uma condição planetária que vai muito além das fontes de destruição específicas e das formas concretas de organização político-econômica em que ocorrem. [Expulsões, de Saskia Sassen]
Seguramente não sou a única a entender que a maior crise de nossos tempos não é o sistema capitalista em si, mas sim a nossa civilização. A humanidade como conhecemos hoje está fadada à extinção e fatalmente tudo será transformado a nível individual e coletivo. Quem viver, verá.
As causas que nos trouxeram a esse estado de coisas parecem muito mais complexas de serem enfrentadas do que apenas migrarmos para outros arranjos socioeconômicos já conhecidos, esperando que assim todos possamos, de fato, viver bem e felizes, como se a desigualdade e a justiça social fossem resolvidas num passe de mágica com a queda do capitalismo, como se fôssemos naturalmente justos, equânimes, respeitosos e pacíficos. Parece um tanto ingênuo acreditarmos no sucesso dessa suposta empreitada sem antes começarmos, aqui e agora, uma transformação profunda de nossos valores humanistas e sistemas de crenças.
A estrutura da política humana não é tudo que há em vigor. Há uma sobra de política animal, um excesso residual disso que se move no fundo do poço, na tendência autotransbordante que preenche o campo do continuum da natureza (…). Comoções vitais microagitam a estrutura. É sempre esse o caso. Sempre há movimentos de fuga incipientes até mesmo na estrutura mais humanamente impermeável, esburacando-a com minifissuras, ameaçando miná-la como um dique de vazamentos. [O que os animais nos ensinam sobre política, por Brian Massumi]
PARTE III
VOZ PARA OS SEM VEZ
Ativistas em defesa dos animais atuam cotidianamente em várias frentes e como não poderia ser diferente, também aproveitam as brechas nos acontecimentos trágicos que causam certa comoção pública para alertar e tentar despertar os demais humanos sobre o holocausto ou massacre dos animais em nossa cultura antropocêntrica e especista, estando, assim, mais para a política animal e menos para a política humana.
Os incêndios florestais que agora devastam a Austrália em decorrência do aquecimento da Terra que se intensifica ano a ano, dia após dia (cujos inocentes são aqueles que, ao contrário de nós, coexistem equilibradamente com o habitat natural e os demais seres vivos, não fosse a desastrosa e irracional intervenção humana), também trouxeram consigo o anúncio da sumária execução de 10.000 (dez mil) camelos, não atingidos pelo fogo e nem pela fumaça, mas com uma chuva de projéteis vindos de helicópteros no território de uma comunidade aborígene, em uma quase inacreditável iniciativa do governo local. Será que nem mesmo os aborígenes na Austrália guardam o respeito pela vida animal? Como falamos no episódio #000 do podcast Saber Animal, eles também não se importam e não veem problema algum matarem cangurus na Austrália para auxílio à economia do país!
Saiba mais: OS BRASILEIROS MATAM MUITO MAIS ANIMAIS QUE OS INCÊNDIOS NA AUSTRÁLIA, por Fabio Montarroios
A Austrália é um lugar inusitado, ‘o único país que come o seu brasão’, diz Phil Duncan, um corpulento ancião do povo Gomeroi, sentado em sua sala na Universidade Macquarie, em Sydney. (…) A solução que ele propõe é simples: que o povo original da Austrália tenha a última palavra no manejo dos cangurus. Afinal, eles fizeram isso muito bem por milhares de anos. ‘Se você quer abater cangurus, deve existir um ramo da economia para isso’, diz. Mas esse ramo deve ser monopolizado pelos aborígenes. ‘Nós faríamos tudo com compaixão. Deem-nos as licenças [para matar cangurus]. Deixem por nossa conta’. [Um símbolo amado vira uma praga, reportagem da National Geographic Brasil, fev. 2019]
Teriam os aborígenes australianos sido corrompidos pelo funesto contato com o homem branco? O “crime” cometido pelos camelos, cuja pena é a morte, é sentirem sede e buscarem saciar sua necessidade vital em local que não lhes é permitido. E qual a outra grave acusação dirigida aos cangurus para terem o mesmo destino, a morte implacável? Assim como os camelos, os cangurus também tem o azar de se deparar com a espécie homo sapiens.
Não é de hoje que australianos tratam determinados animais como “pragas”, sejam nativos ou não, sejam cangurus, gatos ou camelos. Já comentamos sobre essa denominação incabível e especista no referido episódio do podcast Saber Animal. Em todos os cantos do globo terrestre, os outros animais são tidos ora por pragas, ora por recursos. Humanos não destroem o meio ambiente, não se proliferam demasiadamente. Imagine! Humanos deixam escapar o artifício de sua racionalidade e superioridade quando se recusam a lidar com questões simples e éticas, afinal só o homo sapiens é capaz de causar tanto estrago ao longo dos séculos, escolhendo a carnificina como solução prática e “limpa” sempre que lhe convêm. Mas até os aborígenes?! Como visto, se também estão envolvidos na matança dos cangurus, agora porque não estariam na dos camelos? Os camelos não viviam na Austrália e ao contrário dos cangurus não são animais nativos. Nenhuma consideração com nenhum deles.
O homo sapiens é o ser dito racional, que se reproduz descontroladamente, vai se espraiando pelos territórios e destruindo as frágeis vidas que encontrar pelo caminho, tal qual costumamos chamar de… pragas! Pragas são os outros. Como ficamos com decisões governamentais desse tipo? A população global de 7,7 bilhões de humanos continua a crescer vertiginosamente, a despeito de estarmos caminhando para a escassez de serviços ecossistêmicos e colapso ambiental planetário, quem decidirá quem pode viver e quem pode morrer? Alguém terá consideração conosco?
Saiba mais: QUEM NOS SALVARÁ DE NÓS MESMOS?, por Vanice Cestari
Há milhares de anos os camelos foram domesticados pelo homem e introduzidos na Austrália em meados do século XIX para serem explorados como transporte. Findo há muito o período colonial, a sociedade “desenvolvida e civilizada” resolve exterminar os novos indesejáveis após iniciativa de aborígenes, sem dó nem piedade. A minoria estridente, como alude o repórter da National Geographic Brasil ao se referir à parcela da população que se opõe a esse extermínio, precisa aumentar, assim como a compreensão de que ora são os cangurus, ora os camelos, ora os gatos… e independentemente de qual seja a espécie animal, não temos o direito de matar e explorar outras vidas.
Aqui um “parênteses” para falar dos javalis e dos jumentos no território brasileiro. Por aqui fazem o mesmo com os javalis (foram introduzidos no Brasil, não para serem explorados como meio de transporte, mas para o apetite gastronômico que não vingou e também passaram a serem taxados de “pragas” pelos ruralistas, proprietários de terras e governos que ora se resumem às mesmas pessoas) e com os jumentos nordestinos, que vagueiam à própria sorte depois de terem sido abandonados sem a menor piedade por humanos ingratos que se beneficiaram de seu dócil corpo, escravizados como meio de transporte no desenvolvimento do Nordeste brasileiro. Os jumentos, porém, não chamados de “praga” porque se tornaram recurso econômico. Mais uma vez a ganância do homo sapiens entrou em cena; articularam-se possibilidades mais interessantes para o governo brasileiro: resolveram dar fim a vida dos jumentos enviando-os para matadouros com fins de exportação de seus restos cadavéricos para o mercado chinês.
Para ouvir o episódio #002 do Podcast Saber Animal no qual tratamos da matança dos jumentos, clique aqui.
Os camelos na Austrália também tiveram seus corpos forçados ao trabalho escravo no transporte de pessoas e mercadorias por longa data (assim como os jumentos, os cavalos e tantos outros) e os que não estão nas miras das armas de helicópteros na Austrália, assim continuam sendo explorados e sofrendo em algum canto por aí, escravizados por turistas, sob a mira de caçadores, sob a guarda de todo tipo de gente alheia e insensível ao seu sofrimento.
Segundo o portal de notícias DW, nos territórios aborígenes da Austrália se domam e vendem camelos, no entanto essa atividade econômica tornou-se insustentável devido ao grande número de camelos que se agrupam em escassas fontes de água. Essa revelação é bem curiosa porque, justamente por ocasião desses terríveis incêndios, agora é oportuno se livrar desses inocentes sedentos… o plano perfeito, não fosse já terem feito isso antes, em 2009. Parece que não é novidade por lá o massacre de camelos por helicóptero e, por mais que tentem justificar o injustificável, já é tarde demais.
E por falar em aborígenes australianos indiferentes com a matança de animais, por aqui já temos até índios ruralistas! Ou índios pecuaristas, como preferir! Infelizmente não se trata de fake news e nem foi determinação (ainda) do governo Bolsonaro! E olha que ele também quer! Sei não… Não é fácil defender os direitos animais, tampouco é fácil manter a solidez na defesa dos direitos humanos com uma esquerda pra lá de conivente com saqueadores de direitos, discriminatória, exploradora e especista. A ambição dos ruralistas e seus asseclas políticos, todos exploradores da vida alheia, parece também ter convencido indígenas em território brasileiro a uma temerária aliança!
Esse acontecimento surreal só se deu com o apoio de setores da esquerda – cada vez mais acossada politicamente – e merece um estudo à parte, porque isso certamente não foi ideia dos povos indígenas, mas há lideranças e lideranças… Por ora, destaque-se a seguinte frase dita pela tuxaua (cacique) Leidimar Silva, segundo reportagem: “Os irmãos falam que é pacto com satanás”. E não é que os outros indígenas talvez estejam certos, mesmo? E sobre a proposta de emenda constitucional que libera o arrendamento de terras indígenas (PEC 215, vista como ameaça pela comunidade), ela diz: “Querem exterminar nossas terras. Onde já se viu? Onde nós vamos botar nossos gados?”
A essa altura nada já parece tão surreal assim. Direita e esquerda, há muito, falam a mesma língua: a linguagem da exploração, pilhagem e destruição. Como não se indignar com essa turma toda? Não à toa contribuíram, mesmo que indiretamente, para a ascensão de um governo de extrema-direita enquanto sugeriam “resistência” com infindáveis memes ou celebrações festivas.
Aproveito para emprestar um pouco mais da minha escrita para falar mais um pouco sobre a vida infernal dos camelos, aqueles que sobrevivem aos atiradores dos helicópteros ao serem condenados por sentirem sede. Falo dos camelos, mas você que me lê pode substituir por outro animal de sua preferência que, por ventura, nutra mais simpatia. Quase todos os animais não-humanos possuem uma vida desgraçada neste planeta, o que muda é a variação e intensidade do grau de sofrimento.
Segundo matéria da Vice Brasil, de 2013, turcos se comprazem com uma luta de camelos em nome de uma alegada tradição de quase três mil anos. Além da barbárie e da evidente crueldade e maus-tratos narrada na matéria, o jornalista acha tudo muito engraçado e, para uma mulher que lê as suas peculiares interpretações do que seria o comportamento dos animais durante a luta, as suas colocações são enojantes e até um pouco assustadoras “os machos se babam, sexualmente frustrados”. Só no topo da arrogância especista e machista para se chegar a uma conclusão dessas…
Só homens são capazes dessa tara sexual desmedida quando se envolve animais não-humanos e mulheres. A luta de camelos é uma diversão de homens e apreciada por homens e o churrasco não falta. Basta darmos uma olhada nas fotos e observarmos a narrativa do jornalista, acrítica, que destoa do jornalismo de denúncia, em uma demonstração de gozo pelo bizarro, pela subjugação de quem está dominado e não dispõe de meios de defesa, pela violência banalizada.
Onde existe uma virilidade (ansiosa) se encontrará o consumo de carne. [A política sexual da carne, de Carol J. Adams].
No Quênia, a diversão especista fica por conta da corrida anual de camelos que atrai turistas de vários países. No vídeo acima é possível observar a crueldade rolando solta com chicotadas e outros instrumentos para forçar os animais a correrem, enquanto são obrigados a carregarem pessoas em suas costas.
Tem crueldade pra todo gosto: os camelos são mortos para humanos comerem a sua carne, são usados para transporte, turismo e diversão humana. Das camelas, exploram também a sua maternidade. Escravas do comércio de leite na Europa e em substituição, ou de modo complementar, às vacas no Quênia, com incentivo do governo Holandês.
ATENÇÃO: TODAS as reportagens jornalísticas, produzidas por empresas que desconhecem e/ou não adotam a filosofia vegana ou animalista e que falam de animais, são narradas e editadas com linguagem especista, ou seja, discriminatória em prejuízo dos animais, o que significa dizer que não informam sob a ótica dos Direitos dos Animais, reforçando, assim, uma ideia errônea ou equivocada de naturalidade e/ou bem-estar quanto ao uso ou presença dos animais nas mais diversas atividades humanas e exploratórias. Não se pode aferir que os animais são felizes e/ou bem tratados nesses conteúdos, ainda que especialistas sejam consultados, pois o parâmetro a ser levado em consideração jamais poderá ser o de seus opressores e/ou profissionais a estes ligados.
Atenção: o vídeo está disponível e pode ser visto ao clicar, acima, na frase “assistir no Youtube”.
No vídeo é possível ver o instante em que é negado ao filhote, o legítimo “proprietário” do leite de sua mãe, o direito de se nutrir para que possa crescer saudável. E assim, recebe de herança uma vida de sofrimento ante seu debilitado estado de saúde, explorado até a morte. Exatamente como os camelos na Austrália, privados de beber água, exatamente como os bezerros e demais animais escravizados mundo afora na atividade pecuária. A nenhum animal explorado são assegurados os direitos que lhes cabem. Camelos são escravizados como meio de transporte e para corrida com pessoas montadas em sua corcova em outros países. Ora o serviço, ora a diversão que, forçadamente oferecem, não os poupam de serem retalhados para também servirem de alimento.
No deserto do Saara, turistas de todo o mundo fazem safari ou cavalgadas com camelos. No Catar, a corrida de camelos é um negócio milionário que garante somas vultosas nas contas bancárias dos poderosos sheiks, que são donos de fazendas e também possuem a propriedade sobre esses animais que valem uma fortuna.
O equipamento de tortura não é mostrado como tal, propositalmente camuflado, ao passo em que se procura desenvolver um discurso cômico para esconder o horror. É a política humana da barbárie. Se os camelos nas mãos desses bilionários recebem tratamento que seres humanos entendem por uma “vida boa” (piscina, spa, fisioterapia, centro de treinamento etc), é evidente que os animais não precisam de nada disso em vida livre, não pediram por isso em troca de uma vida de escravidão. Além de que isto não se dá em respeito ou consideração ao animal, e sim porque cada um vale uma pequena fortuna de um milhão e meio de dólares e é preciso cuidar bem do patrimônio, tal como se faz com os demais animais usados para turismo mundo afora. Ou alguém, em sã consciência, acha normal e saudável um camelo ser forçado a nadar?
O aparato (robô) na corcova do camelo que não tem outro fim senão dar choques no pobre animal para que saia em disparada, onde a suposta obediência por comandos de voz de seu algoz, via rádio, parece só mais uma piada, não fosse trágica toda a situação. Dizem que antes do aparelho, usavam crianças para a função (como acontece no Egito). Os grupos de defesas de direitos humanos precisam perceber que os camelos são como as crianças humanas (veja aqui) levando ao término toda tradição violenta. A exploração de vulneráveis, seja de crianças humanas, de crianças não-humanas e também de mulheres, é corriqueira para esses homens cruéis.
Camelo utilizado em corrida com um robô na função de jóquei Hambúrguer de carne (de camelo) com ouro 24 quilates servido em restaurante de luxo
E como nesse mundo o apetite humano ainda é insaciável, camelos também são servidos nas mesas do mundo árabe, em partes, como se fossem cortes do corpo de um boi ou até mesmo inteiros em festas de casamento, segundo blog de uma brasileira que mora em Abu Dhabi. É possível vermos carne e embutidos de camelo, salsichas de camelo, salames de camelo, hambúrgueres de camelo com ouro. Sim, ouro 24 quilates. Leite de camela e laticínios derivados também são produzidos de forma abundante nesses países.
O tormento dos animais por meio das mais variadas formas de exploração, violência, subjugação, massacre e crueldade os tornam autênticos escravos da humanidade, seja para o transporte, seja para o apetite, seja para a diversão, o lucro etc, até mesmo por parte dos povos que foram ou são explorados e ter clareza desses fatos nos dá forças para continuarmos a defender os mais indefesos e vulneráveis, humana e historicamente injustiçados e que, a bem da verdade, também são os legítimos seres originários desta Terra, estando aqui há muito tempo antes de nós, homo sapiens de todas as diferentes etnias e condições. Defender os direitos de todos os animais não-humanos e os direitos da nossa mãe Terra não é nada mais do que a obrigação de qualquer ser humano digno e justo, que se nega à incivilidade.